sábado, 31 de março de 2012

Vingança e Direito (1).



lupus est homo homini
Plauto – Asinaria










1.     A disciplina da vingança

A citação que encabeça este texto é frequentemente atribuída à imaginação de Thomas Hobbes. Foi este autor que a popularizou como máxima de uma antropologia política marcadamente pessimista quando, na dedicatória da sua obra De Cive, refere:

To speak impartially, both sayings are very true; That Man to Man is a kind of God; and that Man to Man is an arrant Wolfe. The first is true, if we compare Citizens amongst themselves; and the second, if we compare Cities.[1]

Thomas Hobbes


Contudo, tal como acontece com o primeiro dos dizeres, que também não é uma originalidade de Hobbes, mas antes uma remissão directa para Séneca[2], o segundo remonta à peça Asinaria (194 a.C.), de Plauto:

Mercator: Fortassis. sed tamen me

numquam hodie induces, ut tibi credam hoc argentum ignoto.

lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novit.[3]



Em Hobbes, como refere a lição de Paulo Merêa, “[os] homens são naturalmente egoístas e desconfiados uns dos outros. O semelhante é o inimigo, ou pelo menos pode bem sê-lo – homo homini lupus –, e quem o seu inimigo poupa às mãos lhe morre”[4].




A imagem lobo[5], tanto na mitologia do estado de natureza de Hobbes, como, por exemplo, nos antigos costumes germânicos[6], procura representar a inimizade, a vingança. Estes são os elementos que mais intensamente ressaltam na forma de lidar com os delitos nos tempos mais remotos, e isto tanto aconteceu entre os povos germânicos como entre outros povos, pelo menos nos tempos mais primitivos.

Ao contrário do que defenderam alguns autores inseridos na tradição académica alemã do século XIX, que via o Direito germânico medieval como uma expressão remota do seu volkgeist, há que admitir, como ponto de partida, que em todos os povos, incluindo nos costumes germânicos prévios ao contacto com os romanos, a primeira e mais antiga fase da repressão criminal consiste na vingança[7].

Esta, contudo, não é eterna. Com o tempo, da mesma forma que o homem supera esse estado de natureza ficcionado pelo filósofo inglês em favor do “deus mortal ao qual os homens devem a paz e a protecção”[8], as instituições jurídicas dos vários Estados procuraram desde logo disciplinar o exercício da contenda e, assim, limitar e, até mesmo, combater os ciclos de vingança e contra-vingança que lhe eram intrínsecos. A proibição da vingança, não obstante, corresponde já a um momento posterior da evolução dos sistemas penais. As primeiras normas que lidam com a vingança privada não são, por isso mesmo, interdições, mas, antes, limitações ao seu exercício.

A primeira dessas limitações centra-se no exercício da vingança e foi imposta pela ideia de equivalência na represália, expressa, por exemplo, na conhecida passagem bíblica da Lei de Talião[9]:

Se um homem ferir mortalmente outro homem, será condenado à morte. Aquele que ferir mortalmente um animal, pagá-lo-á vida por vida. E se alguém fizer um ferimento ao seu próximo, far-se-á o mesmo a ele: fractura por fractura, olho por olho, dente por dente; conforme o dano que tiver feito a outro homem, assim se lhe fará a ele.[10]

Esta importante limitação, aparentemente, introduz um segundo nível de limitação, ao parecer impor que a vingança seja exercida apenas contra o corpo do agressor. Assim ela aparece expressa nas formulações da Lei de Talião contidas nas passagens do Levítico, como a atrás citada, e do Deuteronómio[11]. Diferentemente, no livro do Êxodo, a limitação da vingança ao agressor parece menos evidente:

Não te prostrarás diante dessas coisas [ídolos] e não as servirás, porque Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus zeloso, que castigo o pecado dos pais nos filhos até à terceira e à quarta geração, para aqueles que me odeiam.[12]

Também as primeiras formulações deste princípio de equivalência nas Leis da Mesopotâmia não limitavam a vingança ao corpo do ofensor, prescrevendo, por exemplo, que a mulher do violador poderia ser violada pelo marido da mulher violada[13].

Outra questão que interessa colocar a propósito desta máxima, prende-se com as restrições em função do estatuto do agressor e da vítima[14]. Tratam-se aqui de limitações à vingança que tinham em consideração o estrato social a que os intervenientes pertenciam ou que tinham em conta a natureza de homem livre ou de escravo do ofendido. Um bom exemplo desta situação surge no livro do Êxodo, em que, caso a vítima seja um escravo, ao invés de se prescrever a retaliação pura, determina-se que:

Quando um homem ferir a vista do seu escravo ou a vista da sua escrava, e a destruir, deixá-los-á partir em liberdade pela sua vista. E se fizer cair um dente do seu escravo ou um dente da sua serva, deixá-lo-á partir em liberdade pelo seu dente.[15]

Disposições de natureza relativamente semelhante podem ser encontradas em praticamente todas as antigas codificações, como a de Ur-Namma (entre 2100 e 2050 a.C.)[16] e a de Hammurabi (cerca de 1790 a.C.)[17].

Uma outra limitação imposta em função da natureza do ofendido, tinha a ver com a restrição dos alvos da vingança, determinando que esta não poderia ser exercida contra determinados grupos como as mulheres, as crianças e os idosos[18]. O seu fundamento era simples: todas estas pessoas eram vistas como alvos impróprios para a retaliação por não serem considerados iguais em força a um homem adulto. Também a possibilidade de compensação e, em alguns casos, a imposição desta, desempenharam um papel de limitação da vingança e da inimizade.

João Pina, série Gangland, 2009

Durante a Idade Média, os monarcas, um pouco por toda a Europa, procuram introduzir por via legal este tipo de limitações ao exercício da vingança privada[19]. A Lei de Talião, originalmente desconhecida pelos costumes germânicos, aparece em vários Estatutos germânicos, como o Stadtrechte de Viena de 1221[20]. A limitação da vingança ao corpo do agressor surge, por exemplo, numa lei na Polónia, onde aqueles que pretendiam exercer o seu direito de vingança estavam, também, obrigados a notificar as autoridades públicas das suas intenções[21].


(Continua)


David Teles Pereira













The originality of species, de Ian McEwan.

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Man of Science (1839). Autor desconhecido
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In June 1858 a slender package from Ternate, an island off the Dutch East Indies, arrived for Charles Darwin at his country home in Down, Kent. He may well have recognised the handwriting as that of Alfred Wallace, with whom he had been in correspondence and from whom he was hoping to receive some specimens. But what Darwin found in the package along with a covering letter was a short essay. And this essay was to transform Darwin's life.




Francesca Woodman (1958-1981).

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Francesca Woodman. Nascida em 1958, fez a sua primeira exposição em 1976, quando tinha 18 anos, e suicidou-se em 1981, antes de cumprir 23. Retrospectiva no Solomon R. Guggenheim Museu, Nova Iorque, até 13 de Junho. Um ensaio sobre a sua obra, da autoria de Antonio Muñoz Molina, aqui. Outro excelente texto, aqui. 

sexta-feira, 30 de março de 2012

Os nossos feriados.




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Ainda sabemos pouco (falo por mim) sobre a complexa configuração jurídica e a efectiva observância, até 1910, do regime dos feriados na Monarquia – que eram, basicamente, os dias santos de guarda ou de preceito. Note-se que o próprio descanso semanal, dominical ou outro, não era ainda muito respeitado em Portugal na primeira década do século XX, nem sequer obrigatório por lei civil em numerosas profissões e actividades privadas, problema que só começou a solucionar-se com um decreto de João Franco em 1907 e, depois, com a legislação da República em 1911.



Moisés exibindo o exemplar original da lei do descanso
em dias santificados (instantâneo de Rembrandt).




A abstenção de trabalho e comércio aos domingos e dias santos de guarda, sempre acoplada ao cumprimento dos respectivos deveres religiosos, foi durante séculos complicada matéria que começava por ser do foro canónico: os papas estipulavam o calendário e os preceitos, os bispos transmitiam ou adaptavam, cominando penas de excomunhão para os infractores, pedindo a intervenção judicial, concedendo dispensas. A autoridade real em geral aprovava, depois de ouvida pelo canal adequado. Os magistrados, tribunais, municípios e governos civis mandavam (ou não) aplicar, os contratadores de trabalho cumpriam (ou não). Por numerosas pastorais de bispos, avisos régios, sentenças de tribunais, recursos, petições, etc., ficamos a saber que a efectiva aplicação da cessação de actividade nos dias definidos pela autoridade eclesiástica era frequentemente denegada na prática ou objecto de interpretações, contestações, dispensas, querelas e negociações entre diversas entidades e autoridades, sobretudo no período da Monarquia Constitucional.

Houve um célebre ministro da Justiça e Cultos (que foi mais tarde ordenado sacerdote, depois nomeado bispo de Betsaida, arcebispo de Calcedónia e novamente ministro da mesma pasta, de seu nome António Ayres de Gouveia) que em 1865 emitiu uma portaria na qual – sustentando que a abstenção de trabalho nos dias santificados não era ordenada na lei civil, nem o respeito da religião do Estado envolvia o dever de observar os preceitos dessa religião – instruía os magistrados do ministério público, seus subordinados, para que não requeressem processos criminais por violação do preceito da guarda dos dias santos, excepto quando se demonstrasse que os actos praticados o tivessem sido com o propósito de ofender a religião do Estado. Extraordinária directiva esta, vinda de um ministro que era lente de Direito Eclesiástico em Coimbra, embora fosse conhecido como defensor da primazia do poder régio sobre a esfera eclesiástica. Em parêntese, refira-se que este governante, deputado, presidente da Câmara dos Deputados, professor, poeta, polemista e bispo foi também destacado membro da Maçonaria, pelo menos até ingressar na carreira eclesiástica. É apontado como um dos principais inspiradores do projecto de abolição da pena de morte para crimes civis, aprovado como lei em 1867. 



O Estado não tinha que observar os preceitos religiosos,
segundo o Dr. António Ayres de Gouveia (na imagem já bispo).





É comum dizer-se que a República jacobina fez tábua rasa dos antigos feriados religiosos e civis da Monarquia. Não é totalmente verdade, se bem entendo o significado da expressão tábua rasa. Uma semana depois da revolução republicana, em 12 de Outubro de 1910, foram criados por decreto do governo provisório dois novos feriados: o do 5 de Outubro, baptizado dia dos Heróis da República, e o do 31 de Janeiro, crismado dia dos Precursores e Mártires da República. Ao todo, passou então a haver cinco feriados nacionais, porque três antigos feriados foram mantidos: o do 1.º de Janeiro (festa religiosa da Circuncisão, rebaptizada dia da Fraternidade Universal por imitação do calendário republicano brasileiro de feriados instituído em 1890), o do 1.º de Dezembro (agora dito da Autonomia da Pátria Portuguesa) e o de 25 de Dezembro (anteriormente Natal, agora feriado “consagrado à Família”). Os antigos feriados religiosos – nada menos que catorze “dias santos de preceito”, a fazer fé no historiador Fortunato de Almeida – deixaram de ser observados pelo Estado. Um novo decreto da República (26 de Outubro) determinava que os dias anteriormente considerados santificados, à excepção do domingo, passavam a ser considerados “dias úteis e de trabalho” para todos os empregados e assalariados do Estado (escolas, tribunais, repartições públicas, corporações administrativas e locais, etc.). Obviamente, deixava também de ser possível exigir judicialmente a observância dos dias santos por qualquer empregador em todo o país. Como se disse, o decreto republicano dos feriados manteve duas datas de dias santos, ainda que com denominações seculares. Manteve também o 1.º de Dezembro, talvez um dos nossos primeiros feriados civis, que tinha sido criado na segunda metade do século XIX por proposta da anti-iberista Comissão Central 1.º de Dezembro, mais tarde Sociedade Histórica da Independência Nacional. A legislação da jovem República ocupou-se ainda dos feriados concelhios (um por ano por concelho), que aqui não considero.



O Governo Provisório (Afonso Costa na Justiça)
que decretou a lei dos feriados de Outubro de 1910



O 3 de Maio, convencionado como dia da Descoberta do Brasil, foi acrescentado aos feriados nacionais pela 1.ª República em 1912. Era outro feriado copiado do referido calendário de feriados brasileiro de 1890. Diga-se que o 3 de Maio era um dia santo muito antigo, designado “Invenção da Santa Cruz”. Passou a haver seis feriados nacionais. A República, imitando a realeza, decretou também feriados excepcionais em várias ocasiões (como no segundo aniversário da Lei de Separação, em 1913). 

O 10 de Junho (Memória de Camões), foi elevado a feriado municipal de Lisboa em 1911. Este feriado antecipava-se três dias ao 13 de Junho, dia de Santo António, antigo dia santo de guarda na área do Patriarcado. A Ilustração Portuguesa chamou então ironicamente a Camões “o novo santo de Lisboa”. Desta competição, porém, o novo feriado municipal não saiu vencedor absoluto na mente do povo, que continuou a festejar o santo popular como dantes. O 10 de Junho foi também – muita gente não o sabe – declarado Festa Nacional em 1925, ainda em plena 1.ª República, embora sem descanso obrigatório. Posteriormente, em 1929, o general Ivens Ferraz, chefe de um governo da Ditadura Militar, fez dele feriado nacional com cessação de trabalho, continuando a chamar-lhe Festa Nacional. A Ditadura Militar não mexeu nos outros feriados nem nos respectivos nomes, excepto o 1.º de Dezembro, que foi nomeado dia da Restauração da Independência. Passou assim a haver sete feriados nacionais.


General Ivens Ferraz, criador do feriado nacional do 10 de Junho


Ao leme desde 1932, Salazar mostrou sempre escasso interesse por feriados, fossem de carácter civil ou religioso. Nem mesmo parecia ralar-se muito com eles depois de assinada a Concordata de 1940, com que o Estado português se comprometera, aliás de forma ambígua, perante a Santa Sé, em matéria de dias festivos: “O Estado providenciará no sentido de tornar possível a todos os católicos, que estão ao seu serviço ou que são membros das suas organizações, o cumprimento regular dos deveres religiosos nos domingos e dias festivos” (art.º 19). Imagino que terá sido Salazar quem redigiu este artigo, que parece referir-se só aos servidores do Estado, mas não há a certeza.

Passaram os tempos difíceis da segunda guerra mundial. Em 1947, sete anos volvidos sobre a Concordata, o deputado cónego Luís Mendes de Matos apresentou na Assembleia Nacional um projecto de lei, propondo: 1) que fosse “restabelecido” o antigo feriado de 8 de Dezembro, dia da Padroeira de Portugal, 2) que o dia de descanso semanal obrigatório fosse o domingo em todo o país, salvo excepções a autorizar pelo governo, e 3) que o governo revisse o calendário dos feriados, ajustando-os aos “dias santos preceituados pela Igreja Católica” – algo considerado implícito na Concordata – e “às grandes datas da história nacional”. Ou seja, a Assembleia Nacional abdicava expressamente de rever ela própria os feriados, incumbindo o governo de Salazar de os reformular.


O deputado cónego Mendes de Matos, proponente
da lei que restaurou o feriado do 8 de Dezembro



O projecto deste deputado, que por sinal já não foi reeleito para segundo mandato, seria aprovado pela Assembleia em 1948, sendo então restabelecido o feriado de 8 de Dezembro, sem nome oficial, embora toda a gente soubesse que era o dia da Padroeira de Portugal para uns, da Imaculada Conceição segundo outros. Os restantes feriados continuaram iguais, nas datas e com os nomes que vinham de trás. Passou a haver assim oito feriados. O domingo foi pela mesma lei declarado dia obrigatório de descanso semanal, salvo autorização governamental em contrário (na prática, continuou a haver muitas infracções impunes). Salazar, porém, não cumpriu a incumbência de revisão geral do calendário dos feriados, de que a lei da Assembleia o “encarregara”. A culpa não era dele, segundo asseverou pessoalmente ao seu amigo cardeal Cerejeira.

Em 1949, o Cardeal Cerejeira decidiu submeter privadamente a Salazar um mapa com um plano de “revisão dos feriados”. Queixoso, o Patriarca dizia cautelosamente na carta que acompanhava o documento: “A demora na solução do caso (que, pelo que no Natal disseste, não é da tua culpa) está causando reparos.” Cerejeira falava da consciência católica magoada e da dramática necessidade de impedir que se “acabe de todo com o que resta de costumes cristãos no povo”. Propunha a elevação a feriados nacionais com “repouso obrigatório” de nada menos que os dez dias santos que haviam sido definidos pelos papas Pio X e Pio XI para o mundo católico. Ora, dos oito feriados que já existiam em Portugal, cinco eram civis e três “comuns” (civis e religiosos), pelo que 10+5=15. Se o total de quinze feriados podia parecer excessivo, o Patriarca argumentava que na Argentina eram dezassete! Não obstante, acrescentava Cerejeira, em Portugal “alguns dos [feriados] civis podiam ainda ser suprimidos”. Assim, dos existentes, propunha a extinção do 31 de Janeiro e, a medo, do 5 de Outubro (esta data figurava timidamente a lápis e com um ponto de interrogação no mapa feito a tinta que enviou a Salazar). Quanto ao 3 de Maio, ao 10 de Junho e ao 1.º de Dezembro, o cardeal alvitrava a sua despromoção a meros “dias festivos” sem cessação de trabalho, apenas “com hastear da bandeira nos edifícios nacionais, comemoração nas escolas, iluminação dos monumentos, concertos nos quartéis, etc.” (sic).
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Cardeal Cerejeira: “Na Argentina há 17 feriados”.



Aquela ideia de dias festivos sem cessação de trabalho agradava a Salazar, mas o número de feriados religiosos que o Patriarca pedia era uma exorbitância, e nem sequer incluía o feriado concelhio, que Salazar se apressou a acrescentar de sua mão sobre o plano. O mapa de Cerejeira foi para a gaveta e, durante mais três anos, continuou tudo como estava.

A questão arrastou-se até 1952, ano em que Salazar decidiu finalmente cumprir a lei e fazer a vontade, até certo ponto, à Igreja. O Decreto n.º 38.596, de 4 de janeiro de 1952, que só foi revogado depois do 25 de Abril, restabeleceu três antigos feriados de carácter religioso: a festa móvel do Corpo de Deus, a Assunção (15 de Agosto) e o dia de Todos os Santos (1 de Novembro). Como era grátis, mudou também o nome do 1.º de Janeiro para Circuncisão, o do 8 de Dezembro para Imaculada Conceição e o do 25 de Dezembro para Natal. A Igreja Católica (Santa Sé) tinha acordado, após negociações, em reduzir as suas pretensões de dez para seis feriados religiosos – o próprio preâmbulo do diploma o declara. Este mesmo decreto acabou com os feriados republicanos do 31 de Janeiro e do 3 de Maio, enquanto o 5 de Outubro e o 1.º de Dezembro passavam a feriados festivos, isto é, sem obrigatoriedade de cessação geral de trabalho (artigo 3.º). Deste modo, ficaram só sete feriados nacionais com cessação obrigatória de trabalho, isto é, seis feriados católicos e o 10 de Junho – oficialmente Dia de Portugal (Salazar chamou-lhe Dia da Raça, mas não a lei).  Os feriados eram pagos aos assalariados, mas os empregadores privados podiam aumentar as jornadas imediatamente anteriores e subsequentes à data até duas horas por dia, para compensar integralmente essa remuneração. Os funcionários públicos eram ainda dispensados de comparecer ao serviço no dia 24 de Dezembro e na parte da tarde de quinta-feira santa. Era a invenção da “tolerância de ponto” para o funcionalismo, que futuramente faria carreira.


Reduziu de 8 para 7 o número de feriados com descanso obrigatório.



Dois dias depois da revolução de Abril de 1974, foi criado pela Junta de Salvação Nacional o feriado do 1.º de Maio. A criação, a quente, do feriado e a organização, dias depois, da mega-manifestação do 1.º de Maio contribuíram de forma muito eficaz para colocar politicamente o país, desde os alvores da liberdade, em plano inclinado para a revolução socialista. Sob o Estado Novo, o 1.º de Maio era apenas festejado informalmente, com alvoradas de foguetes privados, piqueniques, jantares de confraternização, bandas de música, manifestações dispersadas pela polícia e algumas greves. Na Igreja ainda não se tentava então conotar a data com “S. José Operário”, como hoje sectores católicos pretendem (veja-se o discurso homónimo do reitor do santuário de Fátima em 1 de Maio de 2010 e a reacção de O Militante). O regime de Salazar não imitou o Estado Novo de Getúlio Vargas, que institucionalizou o 1.º de Maio (já feriado no Brasil desde 1924) como uma festa-emblema do “trabalhismo” do seu regime, por altura da qual eram anunciadas medidas que beneficiavam os assalariados, desarticulando assim a tradição de “dia de luta”.  




Criou um feriado e chamou-lhe Dia de Portugal



Em 18 de Abril de 1975 o governo de Vasco Gonçalves instituiu o feriado nacional do 25 de Abril, por ele denominado, à revelia do 10 de Junho, Dia de Portugal. Dois meses depois, o mesmo governo transferiu a tradicional tolerância de ponto da tarde de quinta-feira santa para todo o dia de sexta-feira santa (ou segunda-feira de Páscoa) e manteve a do dia 24 de Dezembro. Como novidade, este decreto-lei permitia (em português: incentivava) que as empresas públicas e privadas fizessem o mesmo. Era meio caminho andado para a criação do feriado nacional de sexta-feira santa.




D.-L. 292/75, de 16 de Junho de 1975



Ainda em 1975, foram restabelecidos pelo governo de Pinheiro de Azevedo o 5 de Outubro e o 1.º de Dezembro como feriados nacionais com cessação de trabalho, ditos “obrigatórios”. Em 1976 o republicano, socialista e laico Mário Soares elevou a sexta-feira santa a “feriado nacional obrigatório” e a terça-feira de carnaval à categoria oficial de “feriado facultativo”, categoria escorregadia teoricamente dependente da boa vontade e de um decreto anual de cada governo. Soares ainda manteve a denominação do 25 de Abril como Dia de Portugal em 1976 e 1977, acabando por revogá-la em 1978, passando então oficialmente a Dia da Liberdade. A esta mudança não terá sido estranho o CDS, ao tempo parceiro de coligação dos socialistas.


O criador do feriado nacional de sexta-feira santa.


Ficaram assim a vigorar até hoje doze feriados obrigatórios. Não considero o redundante “feriado” de domingo de Páscoa.

Em suma, a era pós-25 de Abril manteve os feriados de Salazar-Cerejeira, restabeleceu dois feriados obrigatórios da 1.ª República (um vinha já da Monarquia) e criou mais três, um deles religioso, sem falar dos “feriados facultativos” e “tolerâncias de ponto”, incluindo a subespécie das popularmente chamadas “pontes” do funcionalismo público.

Chegámos assim à troika e ao governo Passos Coelho, que pretende voltar a suprimir os feriados civis de 5 de Outubro e 1.º de Dezembro, esperando que a Igreja acorde pacificamente em reduzir em igual número os feriados católicos. Sobre os feriados atípicos, tolerâncias e pontes pende agora o espectro da extinção. Voltar-se-ia, assim, aos oito feriados de 1948.

A Concordata revista em 2004 prevê que a alteração do calendário dos feriados religiosos se tenha de fazer por acordo com a Santa Sé, o que permite que as negociações se arrastem, como se tem verificado. Não é fácil imaginar que a Igreja abdique alegremente das suas reconquistas de 1948 e 1952, tanto mais que em matéria de manutenção de feriados pode colher apoio expresso ou tácito entre os trabalhadores de todas as crenças e tendências políticas. Em contrapartida, os bispos não podem pretender obter um tratamento privilegiado em tempo de crise e já se mostraram de acordo com a redução equitativa dos feriados civis e religiosos. O que se prevê, assim, é que a Igreja acabe por se conformar com a colocação da festa do Corpo de Deus num domingo, como acontece em muitos países católicos, e algo de semelhante para a festa de Todos os Santos, que atrai mais pessoas aos cemitérios do que às igrejas.


                                                                           José Barreto


Fontes consultadas:

Legislação da 1.ª República, Ditadura Militar, Estado Novo e pós-1974.

Torre do Tombo, AOS/CP-47, p. 2.1.9/8 (pasta de correspondência pessoal de Manuel Gonçalves Cerejeira para António de Oliveira Salazar).

Luís Reis Torgal, declarações à Lusa em “A história dos feriados: do mais antigo ao mais recente”, Diário de Notícias, 27 de Novembro de 2011. http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=2151741&page=-1

Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, t. IV, nova edição (Porto e Lisboa: Liv. Civilização, 1970).

Maria Isabel João, “Dia de Camões e de Portugal - Breve história de uma celebração nacional (1880-1977”, em I. Peiró Martin e G. Alares López (coords.), Dossier: Pensar la Historia, celebrar el pasado, Revista de historia Jerónimo Zurita, n. 86, 2011, pp. 19-34. http://ifc.dpz.es/recursos/publicaciones/31/87/04joao.pdf

Ernesto Castro Leal, “Religião Cívica na I República Portuguesa”, Actas do Colóquio «Poder Espiritual/Poder Temporal. As relações Igrejas-Estado no tempo da República (1910-2009»), 15 e 16 de Outubro de 2009, Lisboa, APH e CHUL.

Ernesto Castro Leal, “República portuguesa, secularização e novos símbolos (1910-1926)”, Revista da Faculdade de Letras – História,  Porto, III Série, vol. 11, 2010, pp. 121-134.

Paula Borges Santos, A Questão Religiosa no Parlamento, vol. III, 1935-1974, Lisboa: Assembleia da República, 2011.