segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Ho-ba-la-lá.


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Fotografia de Wendy Carlos
 
 
 
Olha aí esse luarão, Bebel… Em verdade, não é um luarão, mas um eclipse de solzão. E vai para muitos meses que eu tenho esta história para contar. Para Bebel e Miguel, e também para António, moço muito amigo que foi com Bebel até Campinas e agora, consta na cidade, está de partida para os Estados Unidos, em temporada larga de mais para a minha saudade. Antes da partida do António e do Paulo e nesta alvorada do Novo Ano tinha mesmo de sair a história, que é algo triste e misteriosa. Como misterioso e triste é um dos seus personagens, João Gilberto. Ho-ba-la-lá.  

Teve por aí um alemão, Marc Fischer, que andou fazendo muitas perguntas sobre João. Saiu de Berlim de coração destroçado e aterrou no Galeão em demanda de João. De João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, João de Juazeiro, João Gilberto. Bem, o livro não é bem sobre João Gilberto, mais sobre a sua obsessiva procura. De João, que a minha ignorância saiba, não existe biografia completa, a ele só dedicada. O grande Ruy Castro, que elogia Fischer, escreveu a história da Bossa Nova no maravilhoso Chega de Saudade, que fala de João em toda a página, pois toda Bossa é João. Mas não é «a» biografia do músico de excepcional timbre e ouvido, raiando o génio. De Antônio Carlos Jobim, possivelmente por já ter desaparecido do reino dos viventes, existem, pelo menos, dois livros, gordos volumes, ambos bons, cada um à sua maneira: de Sérgio Cabral, um (Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1997); de Helena Jobim, outro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996). Os títulos? Antônio Carlos Jobim, pois claro, ou não se tratassem de biografias de Tom Jobim. Jobim vem de onde? De Jovim, freguesia de Gondomar, de onde é originária a família. Isso não dizem as biografias do mestre, mas contou-me pessoa amiga que é rigorosa e muito sabedora nestas matérias.

Aqui chegados na conversação, somos de modesto parecer que Ho-ba-la-lá. À procura de João Gilberto, de Marc Fischer (São Paulo, Companhia das Letras, 2012), é livro merecedor de boa nota, que se lê com o maior prazer e desfrute. As páginas viram-se sozinhas, como um policial, na busca de resposta à central questão: o alemão viu ou não João? Em torno de João giram muitas lendas e mitos, histórias de assombração. Que vive sozinho, recluso como um eremita, não gosta da luz do dia nem de ver pessoas humanas. Dizem que fala só com gatos e com mortos (mas com mortos também Tom falava, não é coisa de especial). Dizem que João uiva para a lua. Que toca dez horas por dia, sempre vestido de pijama. Que cobra – e nisso não é doido – um milhão de dólares por dois ou três concertos. Bilhetes vendidos com meses de antecipação, salas lotadas, tremenda excitação: no final, João cancela a prestação. É bondoso e generoso, contam, mas consigo transporta uma maldição. Muitos dos que se conseguem aproximar dele acabam enlouquecendo.
 
João e Bebel, 1972
 
Com o alemão passou-se o mesmo. Virou o Brasil do avesso na pista de João Gilberto. Queria que João tocasse Ho-ba-la-la para ele, em trinado privado. Vasculhou o Rio à procura do menor indício do músico. Esteve na lendária loja de discos e livraria Toca do Vinicius, falou com o dono, e, claro, no antigo Veloso, hoje chamado Garota de Ipanema. Foi aí que, há precisamente cinquenta anos, Vinicius e Tom avistaram a musa da canção, a adolescente Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto. A actual Helô Pinheiro era na altura uma menina lindíssima nos seus quinze anos, por sinal descendente de antigas linhagens portuguesas. Garota de Ipanema, rezam as crónicas, é a música mais tocada em todo o mundo (de facto, não há elevador de hotel que não trauteie sozinho que coisa mais linda…). Porém, Fischer erra. Um erro comum, mas um erro. É muito vulgar dizer-se que foi ali, nas mesas do Veloso, que a música foi escrita e composta por Vinicius e Tom. Até na biografia canónica de Vinicius, da autoria de José Castello, esse erro é cometido (cf. O Poeta da Paixão. Uma biografia, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 245). Não é verdade. Ali, no Veloso, corria o ano de 1962, os dois génios apenas viram a graça de Helô, que entrava amiúde no bar para comprar gelados para ela ou cigarros para sua mãe. No bar, não houve composição, só o sopro da inspiração. Depois, cada qual foi para sua casa: Jobim, na Rua Barão da Torre, nº 107; Vinicius no nº 106 da Rua Paulo César de Andrade, no Parque Guinle. Vem tudo explicado e contado noutro livro de Ruy Castro: Rio, Bossa Nova. Um roteiro lírico-musical (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2011). Livro lindíssimo, talvez um pouco turístico, que faz toda a geografia da Bossa e conta a história do Veloso nas páginas 168-169. Já antes, em Ela é Carioca. Uma Enciclopédia de Ipanema (3ª ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, pp. 382ss), Castro contara a história do Veloso, sem jamais dizer que foi aí que a lendária canção foi escrita e musicada. E também o dissera antes ainda: vem tudo explicado em Chega de Saudade (São Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 316ss). Conta Ruy Castro que a música não tinha como título original «Garota de Ipanema», mas sim «Menina que Passa». Curioso é também o nome do Veloso. Foi aberto no ano de 1945 por um português pacato de nome Raul Veloso. Era uma mercearia comum, que vendia tudo, até pinga e cerveja. Logo acorreu a freguesia, ruidosa. Entre a clientela, muitos alunos do capoeirista Sinhozinho. Briga a toda a hora, está visto. Avesso a essas confusões, o portuga Raul Veloso passou o estabelecimento em 1950, mas o nome estava dado eternamente. E Tom nunca gostou que, em 1967, tivessem mudado a designação do botequim para o nome da sua canção, continuando sempre a chamar-lhe «Veloso». Hoje há turistas que perguntam se se trata de alguma homenagem a Caetano… O velho Veloso, que em crónica de 1960, o grande Carlinhos Oliveira evocava assim, como que profetizando a aparição de Heloisa:

«Este é um bar encantador, porque todos os fregueses se conhecem. Há poucas mesas e, às vezes, as lindas moças dão o ar de sua graça. O vento do mar passa naquela calçada, agitando-lhe os cabelos. Ali é nada menos que o quarteirão mais ilustre – literariamente falando – de todo o Rio de Janeiro. Quem não mora lá está sempre nas imediações, e mais cedo ou mais tarde há de instalar-se ali»

                    (José Carlos Oliveira, O Homem na Varanda do Antonio’s. Crônicas da boemia carioca nos agitados anos 60/70. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004, p. 25).  

 
Bar Veloso, Ipanema, anos 60
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Sobre a música, há quem classifique a sensualidade da letra da Moça do corpo dourado… como mera «tesão light» (cf. Rodrigo Faour, História Sexual da MPB. A evolução do amor e do sexo na canção brasileira, Rio de Janeiro, Record, 2006, p. 187). Certa ou errada esta apreciação indecorosa, Garota de Ipanema foi um estrondo geral: o LP Getz/Gilberto, disco onde figurava The girl from Ipanema na voz de Astrud Gilberto, esteve 96 semanas no 2º lugar da hit parade da revista Billboard e ganhou quatro Grammies (derrotando os Beatles e Elvis Presley…), Recentemente, as últimas contagens davam mais de 200 gravações da música, de Frank Sinatra a Ella Fitzgerald, passando por Louis Armstrong ou Oscar Peterson, entre tantos e muitos outros. É a música mais gravada do mundo, a seguir a Yesterday. E Getz/Gilberto foi um dos 25 discos mais vendidos do ano de 1964, a crer na informação do (fraco) livro de Ricardo Cravo Albin, O Livro de Ouro da MPB (Rio de Janeiro, Ediouro, 2003, p. 234).
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Helô, anos 60
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A história de Helô Pinheiro já foi contada vezes sem conta, não adianta repetir. Menos conhecido é o facto de existir um Helô masculino, um garoto de Ipanema. Melhor dizendo: Caetano Veloso inspirou-se num rapaz de verdade, o surfista José Artur Machado, de petit-nom Petit, para escrever a canção Menino do Rio, em 1980. Tinha o rapaz 22 anos à época: criado em Ipanema, surfava, praticava artes marciais, era modelo nas horas vagas. Dava corpo a uma canção, cantada por Baby Consuelo, que em 1980 explodia nos écrans televisivos, na novela «Água Viva», da Globo.  Água viva, vida boa. Em 1987, um acidente de moto deixou-o com sequelas traumáticas. Os médicos acreditavam na recuperação, mas para isso era necessária paciência e persistência. Petit, sôfrego de vida, não aguentou a espera. Enforcou-se com um cinto de judo, aos 32 anos de idade. Contei aqui a trágica história de Petit para ter pretexto de falar noutro texto, este um livro maravilhoso de belo, que fala do menino do Rio na página 246. Chama-se Orla Carioca, foi escrito por Claudia Braga Gaspar e editado em 2004 pela Metalivros. Na capa, Helô Pinheiro, num anúncio dos anos 60. 
         
 
José Artur Machado, Petit

 


Heloisa, Helô, anos 60

 





Gerald Laing, Glide, 1968





Ho-ba-la-lá… já quase nos esquecíamos do livro do alemão. A capa é linda, feita a partir de uma tela de Gerald Laing (e não Lang, como se diz na ficha técnica...). O título original? Hoblala: Auf der Suche nach João Gilberto. Poético, não? Na sua demencial pesquisa, Marc Fischer foi até falar com um homem baixinho e grisalho, dono do restaurante Couve-Flor, cozinheiro a quem Tom e Vinicius deram o nome de Garrincha, como o futebolista, e que durante anos a fio serviu João, na maior discrição. João ligava para a churrascaria onde Garrincha cuidava dos grelhados, o restaurante Plataforma, perguntava pela família, longa conversa de quase uma hora, queria saber de tudo quanto havia para comer, mas no final encomendava sempre o mesmo steak ao sal, que um rapaz ia deixar na porta do seu apartamento. 

Convites para sua casa? Raríssimos. Por lá passavam o enorme Tim Maia, a ex-mulher de João, Miúcha, a filha de ambos, que com o pai cantou. O seu nome? Bebel. O professor de viola e produtor de songbooks Almir Chediak trabalhou com João Gilberto durante três anos, transformando em partituras as complexas harmonias do mestre. Em três anos de trabalho juntos, Chediak nunca viu João: chegava semanalmente à porta do apartamento, trocavam de partituras pela frincha da porta. Almir entregava as novas, João devolvia as já corrigidas pelo seu ouvido ímpar. Para o livro Chega de Saudade, aqui tantas vezes citado, João aceitou ser entrevistado por Ruy Castro. Nunca se viram. João falou ao telefone, durante horas. Aliás, João é viciado no telefone, que, além da música, é o seu único meio de comunicação com o mundo. Não comemora aniversário, mas sabe de cor as datas de aniversário das filhas de Garrincha, o mestre do steak ao sal. Não comemora o Ano Novo. Há uns anos, teve uma filha, Luís Carolina, de Cláudia Faissol, filha de um amigo antigo, o seu dentista. Foi um escândalo na família de Cláudia, família tradicional. Cláudia queria fazer um documentário sobre João e apaixonou-se pelo objecto de estudo. Daí nasceu Luísa Carolina, Lulu, que o pai vê aos fins-de-semana. Durante a semana, não pode ser. João é perigoso. Deixa a criança acordada a noite toda, para ouvir os pássaros na madrugada. É difícil João entender que a sua filha precisa de aprender a ler e a escrever. Recentemente, abriu uma página no Facebook com o seu nome, que conta com uma legião de seguidores. Mas parece que não é dele a página, sendo feita pelo filho de um amigo, garantiu Cláudia a Marc Fischer.

E o mar? Toda a Bossa é um hino aos oceanos. Vinicius nadava, menino ainda, na Ilha do Governador (antes da poluição). Tom fazia o mesmo na Lagoa Rodrigo de Freitas (antes da poluição) e mais tarde nadava do Arpoador até ao Leme. Menescal era campeão de caça submarina, as músicas que fez com Bôscoli (O barquinho; Nós e o mar; Ah! Se eu pudesse; Você; A morte de um deus de sal) falam amiúde do mar, como nos diz Ruy Castro, sempre ele, em A onda que se ergueu no mar. Novos mergulhos na Bossa Nova (São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 73). João Gilberto? Consta que nem nadar sabe… O mais perto que o viram do mar foi no areal de Copacabana, vestido dos pés à cabeça, a tocar viola em velhos retratos. Há décadas que não vê o sol.
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João Gilberto e Tom Jobim
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Conversando com Roberto Menescal, este avisou Marc Fischer: «João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. (…) De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para sempre». Havia um japonês, desses que vivem no Japão, chamado Toshimitsu Aono, que era doido por João. Ouvia os seus discos em vinyl, para não perder uma nota só. Foi em casa dele, em Tóquio, que Marc Fischer ouviu pela primeira vez os acordes de Ho-ba-la-lá, ficando enfeitiçado para todo o sempre. No Japão são doidos por Bossa. Outro japonês, um produtor musical de sucesso, conseguiu levar João ao Japão. Casas cheias, o público aplaudindo de pé durante intermináveis 25 minutos, sem parar. Mas João sempre fazendo mil e uma exigências (onde quer que se apresente, os microfones têm de ser da marca austríaca AKG, modelo C414…). A tournée foi um êxito e Menescal, que tinha sido o intermediário, ligou para Tóquio a felicitar o japonês. Tentou várias vezes, acabou por conseguir falar com a mulher do produtor. Logo após a partida de João, o marido tinha tido um enfarte, tornou-se alcoólico assim que lhe deram alta no hospital. Hoje é um trapo que vagueia nas ruas de Tóquio. É o que dá chegar perto de João. «A loucura dele é uma loucura suave, quietinha e, por isso mesmo, a mais perigosa que existe», disse Menescal a Marc Fischer. Às tantas, sem qualquer relação com João, um americano, com o qual Marc partilhava o apartamento, juntamente com uma troupe caótica, suicida-se ali mesmo, lançando-se da janela. Lukas von Schweitzer, a personagem principal de Jäger (2010), o segundo romance de Marc, também se suicida nas derradeiras páginas. A vertigem suicidária rondava Marc Fisher, enquanto acompanhava os passos de João Gilberto.     
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Parahamsa Yogananda (1893-1946)



Nem isso demoveu o alemão da sua busca. Às tantas, andou na pista do mestre Parahamsa Yogananda ou, melhor, da Self-Realization Fellowship, que aquele fundara nos Estados Unidos. Yogananda escreveu em 1946 um best-seller, Autobiografia de um iogue, livro que João Gilberto considera o melhor do mundo. Pelo menos, assim o referiu um dia a Nelson Motta, seu amigo de sempre. Em Noites Tropicais, Motta não conta o episódio, mas fala de algo muito importante para compreender João. Algo estranho, inesperado. João só pode cantar assim, naquele timbre baixinho envolvente, graças a uma coisa simples: o microfone. Pode parecer bizarro, mas faz sentido. João sempre desdenhou os que cantavam alto, fazendo do potencial vocal o seu trunfo. Eram exibicionistas, dizia, e arte não é exibicionismo. João canta em voz contida. Assim como a Bartoli, na Casta Diva, a responder ao coro, na mais delicada contenção vocal, dessas coisas que se ouvem e ficam impressas eternamente perto do coração selvagem. Para conseguir aquele jeito, João treinou horas e horas a fio na casa-de-banho da casa da irmã, em Diamantina, onde se refugiou uma temporada larga de oito meses\, João era capaz de estar dez horas seguidas a tocar a mesma nota: o eco vidrado dos azulejos nas paredes devolvia, na acústica perfeita, os acordes repetidos à exaustão. Escusado será dizer que a vizinha do andar de cima acabou doida. Acontece a muitos que são afectados pelo «joãogilbertianismo radical», expressão que Caetano, também ele viciado em João («meu mestre supremo», «redentor da língua portuguesa»), usa várias vezes na sua autobiografia, Verdade Tropical (São Paulo, Companhia das Letras, 2002). João cantava baixinho, para não acordar a sobrinha, filha da irmã Dadainha, e, sobretudo, para não abafar o som do violão. Nas gravações nos shows ao vivo, só o microfone garantia a transmissão daquele tímido ciciar, que nos finais de 50 alguns tinham por desafinado e – note-se – efeminado. Diz Nelson Motta:


«Como João Gilberto, parecia que Chet Baker tinha descoberto a existência real do microfone. Antes deles, parecia que os outros – até mesmo Sinatra e Elis – usavam o microfone só para amplificar o volume de suas vozes, mas continuavam cantando como se estivessem no palco. Eles não: cantavam ali ao seu lado, no seu ouvido. A tecnologia os libertava da tirania da força vocal e do volume, eles podiam criar uma nova expressividade, mais económica e precisa, mais suave e elegante; novos ambientes sonoros para novos tempos. Com eles a música saía menos dos pulmões e mais do coração.»

(Nelson Motta, Noites Tropicais. Solos, improvisos e memórias musicais, Rio de Janeiro, Objetiva, 2009, p. 36).

       

João fugiu entre os dedos do alemão, como o amor quebrado que levara Marc em busca do músico excêntrico. Marc dava tudo no mundo – até a vida! – para ouvir João cantar para si Ho-ba-la-lá. Já no final da fatigante jornada, pronto a embarcar para a Alemanha, toca o telefone do alemão. Altas horas, madrugada entrada. Do outro lado da linha:

 

Dip, n’diu
Bop n’bo
Diu, n’diu
Nbop n’bo

 

É amor o ho-ba-la-lá
         Ho-ba-la-lá uma canção
         Quem ouvir o ho-ba-la-lá
         Terá feliz o coração

 

O amor encontrará
Ouvindo esta canção
Alguém compreenderá
Seu coração

 

Vem ouvir o ho-ba-la-lá
Ho-ba-la-lá
         Esta canção

 
 

O telefone desligou no ponto e o alemão, estremunhado de sono, nunca soube se era mesmo João ou sua alucinação. A dado passo do seu caminho, Marc Fisher conta que a história de um disco lendário de João. Chama-se João Gilberto mas é mais conhecido como «álbum branco», devido à capa, que mimetiza os Beatles e o seu LP de 1968. Foi gravado numa cave em Manhattan, em 1973, e, para muitos dos seus fãs, é o melhor disco de João, melhor até que Chega de Saudade, a sua grande estreia.

João Gilberto, João Gilberto («álbum branco»), 1973


The Beatles, The White Album, 1968




João Gilberto foi gravado numa altura em que o músico se encontrava no auge do seu misticismo yogi. A época também era propícia a esses devaneios e o disco tem letras delirantes, estranhos silêncios, pouco a nada a ver com a luminosidade ingénua dos alvores da Bossa. Agora, estávamos num território estranho e sombrio. A produção esteve a cargo de Wendy Carlos, por razões que desconhecemos. Um ano antes, Wendy era Walter. Um ano antes, João descobrira Yogananda. O resultado foi o «álbum branco», LP mítico. O encontro entre Wendy e João correu bem. Tinham muitas afinidades, além da música. O gosto pela noite e pelos espíritos, a inclinação tenebrosa. O apreço por gatos. E, sobretudo, uma intransigência da perfeição, ao modo como cada qual a via. Estranhamente, ao falar com Marc Fischer, Wendy Carlos nega sequer ter algum dia conhecido João: «Eu lamento, mas o senhor está equivocado. Não conheço esse João Gilberto nem jamais tive coisa alguma a ver com ele», assim respondeu Wendy a um e-mail de Marc Fischer.

Mundo bizarro, este. Na sua página na Net, Wendy Carlos diz que foi ela que produziu o disco de João, o «álbum branco»:  


«(…) it's true that I recorded him and his wife at the time on an album of his own wonderful Brazilian music. Rachel Elkind-Tourre, who was my producer for a dozen years, also worked with a few other artists during the time we had a studio up in her former Upper West-side brownstone. Most of the time I tried to bow out of the way, to be of as much assistance as I could be, but not to interfere with the artists and Rachel, as they assemble their albums. So in several cases I was the main audio engineer, ran the console and sessions, and provided musical help only when called upon.

With Joao, who's older and more experienced with music than me, I felt it was a fine learning experience, to observe him at work, the way an album would come together. I found his skills on acoustic guitar amazing. Also he has such control I needed only to position the microphones with care, and set levels once, then let him go. He did all the rest. We brought the mikes in really close, for a very intimate sound, knowing he'd keep it all in perfect balance and consistency, no false sounds or bumping into microphones mere inches away. Everything went down at one time, aside from an occasional percussion instrument, although those were more often recorded along with him, not overdubbed.

Joao is a nocturnal artist, and being the same, the hours suited me just fine. We'd usually set up in the early evening, and then he'd arrive, Rachel and he would discuss the current pieces and then we'd head downstairs to the studio and begin laying down tracks. It wasn't much pressure on me, quite straightforward. I found him to be modest, rather high-strung, a bit wary of other people, strangers. I tried not to upset him, just smile and blend in. He seemed very appreciative, and loved the way the album was coming out.»


Como pôde Wendy negar o facto a Marc Fisher? E como não viu Fischer o site de Wendy Carlos, onde lá está tudo, assumido de pleno, até com boa recordação de João?
 
 
Walter Carlos


 
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Wendy Carlos
 


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Também eu mandei e-mails a Wendy Carlos, meses a fio. Não recebi resposta alguma. Algo parecido ao sucedido entre João Gilberto e Marc Fischer. Mas não perdi a esperança. Talvez Wendy me responda em noite de luarão. Wendy define-se aqui como coronófila. Tem paixão de eclipses. Se houver eclipse, tanto melhor. Aí, Wendy fotografa, é dela a imagem que está lá em cima. Colecciona luarões eclipsados. Wendy nasceu Walter. Em 1939, em Pawtucket, Rhode Island. Aos seis anos de idade já tocava piano, vejam que precocidade. Estudou música e Física na Universidade Brown, de Nova Iorque. Aos poucos, Walter foi ganhando a forma de Wendy e tem fotos em que parece mesmo uma professora de música de um colégio de elite, exclusivo para raparigas de altas classes. Pelo meio desta travessia de género, Walter/Wendy fez música de sintetizador. Brincou com Bach, foi das primeiras a experimentar o sintetizador inventado por Robert Mogg e até lançou em 1969 The Well-Tempered Synthetiser, uma paródia ao cravo bem-temperado. No ano anterior, Switched on Bach, um álbum da sua autoria, vendeu meio milhão de cópias e ganhou três Grammies.  Mas chega de Wikipedia que o meu propósito é tão-só dizer que Wendy compôs a banda sonora de A Clockwork Orange (1971). Fez também a música de The Shining, mas essa o Kubrick não quis usar, o mesmo sucedendo com a Disney, no filme Tron. Quando David Bowie se apresentou andrógin@ em 1973, com o Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, utilizou a versão da 9ª Sinfonia de Beethoven concebida por Wendy.  
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Do site de Wendy Carlos sobressai alguém amargo, zangado com a vida. Deu uma entrevista à Playboy, em 1979, assumindo a mudança de sexo, mas arrependeu-se logo de seguida. Agora, inclui a revista numa viperina listagem do seu site, a que chama «Shortlist of the Cruel». O azedume dos seus comentários mostra alguém que convive mal com a efemeridade das suas criações. Na verdade, o rock sinfónico e outros delírios electrónicos estão bastante enterrados, guardados no sótão dos futurismos techno. Em 1998, Wendy processou o músico Momus, devido à canção satírica Walter Carlos, que sugeria que, se Wendy pudesse voltar atrás no tempo, casar-se-ia com… Walter. O músico aceitou retirar a música do álbum The Little Red Songbook.
 
 
 

Com Kubrick, génio estranho, não parece que as coisas também tenham corrido bem. Nas 544 páginas de The Stanley Kubrick Archives, editado pela Taschen, existe apenas uma, uma só, referência a Walter/Wendy Carlos, na pág. 414. Outro livro reúne ensaios sobre A Clockwork Orange. Coordenado por Stuart Y. McDougal, publicado em 2003 pela Cambridge University Press, contém escassas alusões ao criador da música do filme, apesar de conter um escrito apenas dedicado à banda sonora (Peter J. Rabinowitz, «A Bird of Like Rarest Spun Heavenmetal: Music in A Clockwork Orange»).  Aliás, há um livro que trata só da música nos filmes de Kubrick: Listening to Stanley Kubrick: the music in his films, de Christine Lee Gengaro, que concede a devida relevância ao papel de Wendy e à impressionante abertura do filme, com a adaptação de Music for the Funeral of Queen Mary, de Henry Purcell. A música é essencial para a perturbação que o filme causa nos espectadores. À controvérsia gerada pela violência do filme, Kubrick, que detinha o controlo total sobre a distribuição, respondeu drasticamente: por sua decisão, o filme não foi exibido no Reino Unido durante décadas, de 1974 a 2000. Só seria mostrado em público após a morte do realizador.   
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A Clockwork Orange, 1971
 
 
 
 

A raridade das menções a Wendy Carlos suscita uma questão: terá querido Stanley Kubrick apropriar-se de tudo quanto estava na sua obra-prima? Talvez… O certo é que mesmo com o autor do livro, Anthony Burgess, as coisas não acabaram bem. Há pouco foi publicada entre nós, pela Alfaguara, a edição comemorativa do 50º aniversário da publicação de A Laranja Mecânica. Nesta nova edição, muito cuidada, conta-se na introdução os primeiros amores e os subsequentes desentendimentos entre Kubrick e Burgess. O livro faz 50 anos em 2012. Já que falamos em aniversários, este é também o ano em que se assinala o 60º aniversário da primeira cirurgia de mudança de sexo: em 1952, o militar George Jorgensen foi até à Dinamarca e regressou aos Estados Unidos como Christine. Vinte anos depois, Walter Carlos faria o mesmo, tornando-se Wendy.     
 
De George a Christine (tríptico de 1975)
 

         Como artista plástica, as obras de Wendy são um pavor. Nem vale a pena mostrá-las. Como compositora, teve uma época, o auge do psicadelismo que hoje nos parece algo kitsch e datado. Edições recentes, de 2005 e por volta disso, vêm mostrar na íntegra os trabalhos que fez para Kubrick, para a Disney, etc.

Quanto a João Gilberto, nascido em Juazeiro, na Bahia, a 10 de Junho de 1931, continua recluso no seu apartamento, vivendo de noite. Em 2007, o «álbum branco» foi considerado pela Rolling Stone um dos melhores 100 discos de música brasileira de todos os tempos. Em 2011, João Gilberto pôs termo a uma das maiores querelas imobiliárias do Rio de Janeiro: devolveu à condessa ítalo-brasileira Georgina Brandolini o apartamento queocupava no Leblon e que aquela reclamava nos tribunais. O imóvel, que tinha sido comprado nos anos 70 pelo príncipe francês Jean-Louis de Faucigny-Lucinge, foi entregue pelo músico em óptimo estado de conservação. Entretanto, prosseguem notícias várias sobre as excentricidades de João Gilberto.  
 
Marc Fischer (1970-2011)
  

Sem saber se tinha ouvido João, ou não, Marc Fischer regressou à Alemanha. Suicidou-se em Berlim, aos 41 anos. Uma semana antes da publicação do seu livro.

Ho-ba-la-lá.

 
António Araújo   

Um Bom 2013, com Ribeiro Gourmet.

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Tenha um réveillon requintado. Casino da Póvoa? Salão Cristal com septuagenárias enfrascadas a fazer comboizinhos? Não, nunca, por favor. Seja mais selectivo e exigente. Não se misture com os forrós abrasileirados das classes médias. Em Ribeiro Gourmet, a Benfica, filial lisbonense do Fauchon, poderá passar a meia-noite na companhia de bananas gourmet. € 0,99 o quilo. Para voos mais ousados, tem ao desfrute o abacaxi-também-gourmet, uma especialidade Ribeiro, já um pouco mais avantajada nos preços -  € 1,45. Mas uma noite não são noites. Para os amantes de delicatessen, para palatos exquis, Ribeiro Gourmet fornece trufas brancas do Périgord. E, claro, a bela da mandioca. Preços excelsior, um pouco apimentados: € 1,65kg/mandioca-gourmet. Acha caro? Prefere mais em conta? Então não seja gourmet, só Ribeiro. Com Ribeiro Gourmet, um Bom Ano de 2013.