domingo, 31 de março de 2013

Assim, não.

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Alegada imagem de Angela Merkl quando jovem e outra, mais recente, da chanceler alemã



 
Começou  há pouco a circular a toda a brida na Internet uma imagem que, supostamente, é de Angela Merkl, quando jovem, praticando nudismo. Quem publica a imagem (aqui, por exemplo) não parece estar muito seguro de que se trate sequer da actual chanceler alemã. E, mesmo se for, a pergunta impõe-se: será legítimo publicar esta imagem? Era crime ou reprovável praticar nudismo? Ainda ontem recebi um mail de um grande advogado, pessoa que muito estimo e admiro, sobre esta curiosidade excessiva – e nociva – em torno das juventudes de pessoas hoje famosas. Que temos nós a ver com esses passados, sobretudo se nada têm de ilícito ou censurável? Há dias, na linha da Reductio ad Hitlerum de que falava Leo Strauss, ou da famosa Lei de Godwin, um artigo de opinião de um catedrático de Sevilha, saído no El País, comparava Merkl a Hitler. Foi retirado horas mais tarde, felizmente. Não é assim que se critica Angela Merkl e a sua política. Para quem quiser algo mais construtivo e saudável, recomendo muito um livrinho de Ulrich Beck que saiu há pouco entre nós: A Europa Alemã. De Maquiavel a «Merkievel»: Estratégias de Poder na Crise do Euro. Discutível em muitos aspectos, mas lúcido e com argumentos racionais.
 
 
António Araújo

Shenandoah National Park.

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Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida

Boa Páscoa.

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Fairhaven, ao entardecer.
Fotografia de Onésimo Teotónio de Almeida.

The Red Shoes (1948).

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Lermontov: Why do you want to dance?
Vicky: Why do you want to live?
Lermontov: Well, I don't know exactly why, but... I must.
Vicky: That's my answer too.


 

Boa Páscoa.

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Imagem de A Matter of Life and Death (1946),
de Michael Powell e Emeric Pressburger

sábado, 30 de março de 2013

Monticello.

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Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida




 
Notas Bárbaras (diário ocasional)
 
24 de Março
Acabou a sorte do bom tempo. Se bem que frio, o azul no céu bate o cinzento a léguas. A concomitante baixa de temperatura é compensada pela luminosidade que nos acende os interiores. Havia neve anunciada para hoje com aviso de que podia complicar-nos o voo de regresso, como aliás acabou acontecendo, pois o nosso voo ficou adiado para amanhã já mesmo depois de as malas estarem a bordo. Por causa da neve? Qual quê! O avião levantaria. Mas no pequeno aeroporto de Charlottesville a maquineta-guindaste que faz a limpeza da neve nas asas do avião (de-icing) ficou sem fluido. Incrível, mas verdadeiro. E hoje é domingo. Por isso houve que arranjar hotel para pernoitarmos e arrostar com todas as inconveniências dos atrasos de um dia. O importante, porém, foi o passeio até Monticello, o “pequeno monte” ao lado de Charlottesville onde Thomas Jefferson construiu a sua famosa casa, mais propriamente uma mansão.
Impossível registar aqui a imensidade de novos dados que aprendi sobre o autor da Declaração da Independência dos EUA (pelo menos do rascunho que acabou sendo o texto-base), um feito notável para um jovem de apenas 33 anos. Admirador de há muito de Jefferson (presidente dos EUA de 1801 a 1809), fiquei a conhecê-lo melhor quando me embrenhei na reedição da correspondência dele com o Abade Correia da Serra (The Abbée Corrêa in America, 1812-1820). The Contributions of the Diplomat Philosopher to the Foundations of Our National Life, que era um extenso trabalho do historiador Richard Beale Davies (uma longa introdução seguida da correspondência do Abade com Jefferson e outros “pais da pátria” norte-americana) perdido num volume da revista Transactions of the American Philosophical Society. Transformei as cem largas páginas da revista num volume de 375 porque solicitei um prefácio ao historiador da Brown, Professor Gordon Wood, Pulitzer Prize e especialista no período da formação dos EUA, e um posfácio ao Prof. Léon Bourdon, da Sorbonne, que havia publicado também um volume com correspondência do Abade. (A FLAD patrocinou a tradução portuguesa a sair em breve.) A minha admiração foi crescendo quando fui tomando conhecimento do seu interesse pelos ideais da modernidade, mas também pela sua visão poderosamente larga, o seu insaciável desejo de aprender (I cannot live without books, dizia ele depois de, no final da vida e para saldar dívidas, ter vendido os sete mil que tinha em casa, a ponto de depois reconstruir uma biblioteca com mil). Lá estavam na parede da sala principal, o parlor, quadros com retratos das figuras que mais admirava. Numa, o trio Francis Bacon (foi obviamente nele que Jefferson bebeu o lema Knowledge is power que escolheu para a Universidade da Virginia), Isaac Newton e John Locke, para ele os mais brilhantes espíritos do pensamento. Por sinal, noutra parede está um quadro de Fernão Magalhães ao lado de Colombo.
Nessa mesma sala está o seu exemplar de uma camera oscura, para o tempo já muito aperfeiçoado da câmara fotográfica em voga na época (vinte anos mais tarde Karl Marx iria usar metaforicamente esse engenho para exemplificar a formação das ideologias na mente, pois a camera oscura inverte as imagens do real). Jefferson não era inventor, todavia interessava-se por novas invenções e depois trabalhava-as melhorando-as. Fazia mesmo gala disso. Aconteceu assim com uma engenhoca interessantíssima de um inglês: um aparelho assente sobre a escrivaninha com um espaço para folhas e duas canetas. Qualquer movimento de uma delas era reproduzido fidedignamente pela outra. Assim, era possível escrever o que quer que fosse e, em simultâneo, reproduzi-la ao lado. Foi assim que guardou cópias de milhares de cartas.
Interessadíssimo em arquitectura, desenhou ele próprio a casa e foi acompanhando a construção e fazendo mudanças nela ao longo de quarenta anos. São inúmeras as curiosidades do edifício, como por exemplo um sistema de pedir e fazer subir da cave garrafas de vinho para a mesa de jantar sem os criados terem de estar presentes a escutar as conversas; ou um catavento com prolongamento para a entrada da casa de modo a permitir ver-se a direcção do vento sem ter de se ir lá fora olhar para o telhado.
Jefferson adorava receber amigos e as visitas ficavam em casa dele semanas e meses. E eram sempre muitas. Foi assim que lá ficou o nosso Abade Correia da Serra que com o ex-presidente privou imenso, conversando inclusivamente acerca dos planos para a criação da Universidade da Virginia, o último grande empreendimento de Jefferson. O Abade era o único visitante co quarto no primeiro andar e cinquenta anos depois a neta de Jeferson ainda se lhe referia como “o quarto do Abade”. Não vou repetir o que escrevi noutros lugares. Citarei apenas Jefferson, em carta a um amigo referindo-se à decisão do Abade de regressar a Portugal, afirmando que nenhum outro visitante estrangeiro deixava atrás tanto querido pesar como ele.
Esta nota continuaria em panegírico dos dois, Jefferson e o Abade, mas há que encerrá-la. Nenhuma referência fiz ainda aos imensos jardins e hortas que rodeiam a casa. Jefferson dizia Nenhuma ocupação é mais agradável para mim do que a cultura da terra, e nenhuma cultura é comparável à de um jardim (que em inglês inclui flores e vegetais). Claro que tinha a enorme ajuda de escravos. Esse capítulo negro, durante tanto tempo silenciado, está hoje, graças às revelações que ao longo das últimas décadas foram surgindo, amplamente documentado e abertamente recontado por todo o Monticello e repetido aos grupos de vinte pessoas que de dez em dez minutos iniciam uma visita guiada à casa. Inclusivamente o facto de ele ter tido uma amante negra de quem teve vários filhos. A mulher de Jefferson, antes de morrer, ainda muito jovem, pediu-lhe que não voltasse a casar. Ele cumpriu. A senhora esqueceu-se, porém, de lhe proibir tudo o mais que se pode fazer sem o casamento.
Regressando ao jardim: o nosso Abade era um botânico exímio e os dois tinham mais esse elemento em comum. Entre muitos outros, aliás. Dele Jefferson escreveu a um amigo: é o homem mais culto que conheci em qualquer país. Enfim, toda a casa de Monticello é um mimo revelador da grandeza do espírito de Jefferson, da sua curiosidade insaciável (Não há nada no mundo que não me interesse conhecer). Daí aquela grande tirada de John Kennedy quando um dia ofereceu um jantar na Casa Branca a todos os prémios Nobel americanos: Nunca nesta sala esteve reunida tanta massa cinzenta desde a última vez que Thomas Jefferson almoçou aqui sozinho.
Falta apenas acrescentar que Monticello vive apenas de donativos oferecidos à Fundação Jefferson e das entradas dos visitantes. Não tem apoios do governo.
 
Onésimo Teotónio de Almeida
 

Essas luzes do Norte.

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Já não acredito que um dia venha a ver auroras boreais. Mas gostava. Auroras boreais, para mim, só no YouTube. É pena. Fica para a próxima. Encarnação. Quem me mandou este filme foi um grande, enorme amigo. São lindas as imagens, mesmo quando nos irrita o invólucro místico com que sempre, mas sempre, apresentam este prodígio da Natureza. Talvez quem as contemple fique assim místico, para sempre encantado pelos sortilégios verdes dos céus do Norte. Tudo muito erótico, acho.

 
 
Kristian Birkeland (1867-1917)
 
 
 
Aqui há uns anos, li um livro de Lucy Jago, jornalista, produtora de documentários para a BBC e para o Channel 4, que decidiu enveredar pela escrita (agora a produzir romances de treta). Lucy paixonou-se pela vida de Kristian Olaf Birkeland (1867-1917) com a mesma obsessão com que este se apaixonara pelas auroras boreais. Lucy Jago, uma jovem de ar doce e frágil, teve de seguir os mesmos trilhos que Birkeland percorreu no virar do século: a feitura deste livro levou-a à Noruega, Grã-Bretanha, Egipto, Grécia e Japão (Birkeland morreu misteriosamente num hotel de Tóquio, em 1917). Com tantas andanças, acabou por produzir uma fascinante combinação de «biografia, divulgação científica, história, política internacional, literatura de viagens e intriga», para usar as palavras da Traveller. A biografia deste norueguês genial e singular – que acabaria tragicamente os seus dias vendo conspirações e ameaças de toda a parte, perdendo a família e os amigos e arruinando a saúde por causa das «luzes do Norte» – insere-se num ponto de confluência entre duas linhas que estão a ganhar um espaço cada vez maior: a história da ciência, contada numa perspectiva de divulgação, e as narrativas de viagens. Kristian Birkeland é o personagem ideal para operar essa síntese, pois foi um inspirado cientista que muito viajou em demanda da comprovação das suas teorias. Dos campos gelados da Islândia e da Noruega às terras escaldantes do Sudão, Lucy Jago oferece-nos descrições verdadeiramente assombrosas. Não sei se tal se deve à sua experiência jornalística ou a trabalho dos editores (ou a ambas as razões), mas os seus relatos têm a verosimilhança de um documentário televisivo. Lemos o livro como se estivéssemos lá, com Birkeland e os seus assistentes, caminhando entre tempestades para vermos as maravilhosas luzes do Norte, que os lapões acreditavam serem mensagens divinas. Por outras palavras: a acrescer a todos os outros méritos – narrativa límpida, informação colossal, fascínio da personalidade biografada, etc., etc. –, há uma qualidade de escrita que torna a leitura desse livro apaixonante. Convidam-se os menos místicos, ou mais cépticos, a ver como uma boa prosa é capaz de nos fazer interessar mesmo pela vida de um professor universitário noruguês cujo principal feito foi perseguir auroras boreais.
 
 
 
António Araújo

Le Cactus.

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Exposição Colonial de Paris, 1931

sexta-feira, 29 de março de 2013

Loving story.

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Fotografias de Grey Villet
 



Há um senhor que anda na minha rua, ao luso-fusco, a escrever «Morte aos Pretos» nas paredes e nas caixas da EDP. Eu não gosto das caixas da EDP, mas ainda gosto menos que o senhor escreva ñas paredes e, menos ainda, que escreva «Morte aos Pretos». Isto passa-se em Lisboa e estamos na Páscoa de 2013.
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         Há 45 anos, já eu era nascido – e, provavelmente, também muitos dos leitores destas linhas pascais –, 16 estados dos EUA ainda proibiam os casamentos mistos, entre pessoas de raças diferentes. Acontece que Richard Loving, que era branco, estava in loving por Mildred, que era negra. E, como Mildred também gostava de Richard, decidiu tornar-se Mrs. Loving. Foram condenados a um ano de cadeia apenas por estarem in loving um pelo outro e terem decidido casar. Um ano de prisão. Isto pode parecer-nos ridículo e arcaico, mas muitos de nós já éramos nascidos e até crescidos quando esta história aconteceu. E ainda ontem o senhor da minha rua voltou a escrever «Morte aos Pretos» numa caixa de electricidade.
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         Os Loving não se conformaram com a aplicação do Racial Integrity Act, de 1924, que proscrevia a «miscigenazção» (!) na Virgínia. Não sendo activistas dos direitos cívicos, queriam apenas que os deixassem em paz e levaram o seu caso às mais altas instâncias. Em 1967, o Supremo Tribunal, através da sentença Loving v. Virginia, decidiu, por unanimidade, que aquela lei da Virgínia era inconstitucional e revogou uma decisão, o Pace v. Alabama, do longínquo ano de 1883. O caso Loving v. Virginia abriu a porta aos casamentos entre pessoas de raças diferentes e firmou jurisprudência que veio a tornar-se muito importante no debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
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         Sobre o casal Loving já correram rios de tinta – e não os rivers of blood que  Enoch Powell tanto temia… –, já se fizeram filmes e músicas. Em 2012, na preparação de um documentário sobre os Loving, Nancy Buirski descobriu um conjunto maravilhoso de fotografias que Grey Villet, num trabalho para a Life, tirou à família Loving. As imagens foram exibidas no International Center of Photography, em Nova Iorque. E o António, que está por lá há tempo demais para o meu gosto, mandou-me a notícia, com aquele amor que é o do António, e que faz com que todos os amigos dele o amem por  ser assim tão amigo no amor amigo. Olhem para as imagens de Richard e Mildred juntos, observem a alegria das crianças. Haveria o direito de prender quem apenas cometeu o delito de amar? Pense nisso da próxima vez que ler «Morte aos Pretos» numa parede da sua rua.
 
 
António Araújo
 

Ronaldo, o palestinano.

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Revista VISÃO, 28 de Março a 3 de Abril de 2013, n.º 1047
 
 

 
O Vasco, sempre amigo, perguntou-me, com a sua encantadora humildade e proverbial discrição, se isto seria interessante para o Malomil. É que nem se pergunta, Vasco! O Malomil deleita-se em mostrar estas falsificações e deturpações. Há umas semanas, foi o novo Papa, que foi mostrado, numa manipulação grosseira, a dar a comunhão ao ditador Videla. Há dias, uma estratégica amputação numa imagem pretendia colocar Joseph Ratzinger a fazer a saudação nazi. Agora, e já que estamos a falar em príncipes de diversos credos, entra em campo Cristiano Ronaldo. Como se explica aqui, há uns anos o nosso puto-maravilha expressou a sua solidariedade com as vítimas do terramoto de Lorca, em Espanha. Envergou uma camisola e deixou-se fotografar. Mal sabia Cristiano que a imagem seria manipulada e, em lugar da palavra «Lorca», colocariam «Palestine». O laço vermelho foi trocado por uma bandeira. De solidário com as vítimas de Lorca, Ronaldo, sem lhe perguntarem nada, passou a partidário da causa palestiniana. É grave. Mais grave ainda é a revista VISÃO, esta semana, publicar a fotografia falsificada. Que vergonha…
 
António Araújo




quinta-feira, 28 de março de 2013

Correspondência de Adelino Moita.

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Lisboa, 24-12-1908
Maria, aí te envio as boas festas felizes e beijos para os nossos filhos e saudades para todos os nossos. Cá estamos todos bem graças a Deus. Teu homem do coração que muito te quer. Adelino S. Moita



 

Lisboa, 25-12-1908
Maria, eu estou muito apoquentado por não saber notícias tuas. Beijos para os nossos filhos e as minhas para contigo só a vista têm fim. Teu homem do coração. Adelino S. Moita
 




31-12-1908

Maria do meu coração, Estimo que vás melhor e toda a nossa família, que eu estou bom graças a Deus. Eu estou muito contente com o nosso ranchinho. Agora o que eu quero saber é como está a tua saúde. Tu tem paciência mas eu não te posso escrever carta se não ao domingo. Manda-me dizer como estás. Saudades para toda a nossa família e beijos e abraços sem conto para ti e para os nossos filhos. Adeus. Maria, a morada adonde eu moro é 20 e não 22. Foi a razão de o bilhete não ser entregue. Adeus.



 


 
23-2-1909
Maria, estimo a tua saúde e a dos nossos filhos e toda a nossa família, que eu estou bem e todos os nossos. Hoje mesmo recebi a tua carta e vi tudo que me mandavas dizer que estavam todos bem melhor. Pois eu estes dias tenho-os passado muito aborrecido. Recomenda-me a todos os nossos. São horas e vou ter hoje com o Baptista. Eu vou ter a casa do primo Baptista hoje e almocei com o compadre a Delfina (?). Tu não te deixes morrar (?) o Entrudo.


Uma pintura e meia por dia.







O Filho do Homem, Magritte, 1964
Ovo de ave elefante em leilão, Getty, 2013



Notas Bárbaras (diário ocasional).


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Quarto de Edgar Allan Poe
Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida




22 de Março

Charlottesville, Virginia

Vim falar à Jefferson Society, uma das mais antigas Debating Societies dos EUA, fundada em 1825. Não fazia ideia do que esperar e deparei com uma verdadeira surpresa, como aliás já o fora o próprio convite. Nunca tinha estado na Universidade da Virginia, onde Richard Rorty leccionou no Departamento de Filosofia antes de cá sair e ir ensinar Literatura Comparada para a Califórnia. A Universidade foi concebida e desenhada por Thomas Jefferson, na fase final da sua vida, e teve nesse processo alguma colaboração do nosso Abade Correia da Serra, que naqueles anos andava por Washington e passava muito tempo em casa dele em Monticello, aqui nos arredores de Charlottesville. Mas sobre isso já escrevi noutros lugares.

Chegámos cedo (a Leonor veio comigo) para aproveitarmos o fim-de-semana. O Vice-Presidente da Sociedade, McCulloch Cline, aluno do 2º ano, ofereceu-se para nos guiar numa visita à parte mais antiga da universidade, cuja arquitectura em estilo “federal”, de grande influência jeffersoniana, é por demais conhecida. Mas a escala é bem maior do que esperava. O que aquele moço sabia da história local deixou-me boquiaberto.

Na parte antiga do campus nota-se a preocupação em preservar até os quartos dos alunos, todos ainda com lareira (a lenha fica à porta de entrada). Um dos quartos é hoje museu, pois nele viveu Edgar Allan Poe, quando aqui foi aluno.

A direcção da Jefferson Society levou-nos a jantar a um restaurante no bairro antigo da cidade, que é um atraente espaço habitacional cheio de vida e cor. A conversa impressionou-nos pelo teor dos assuntos abordados e pelo nível que revelou. Engravatados todos, tinham um porte descontraído, porém muito digno, e a qualidade da linguagem saltava ao ouvido desarmado.

O mesmo estilo e porte fomos encontrar na sala da Society onde ia decorrer a conferência. Cheia, entre 40 e 50 membros, alguns professores, mas a maioria alunos. Quase todos de gravata e casaco escuro.

Tinham-me pedido um tema português porque nessa "Distinguished Lecture Series" da Society nunca ninguém tinha falado sobre o mundo lusófono. Por se tratar de uma sociedade jeffersoniana, gostariam que o assunto tivesse algo a ver com a modernidade, universo muito querido de Jefferson, grande fã do iluminismo. Pragmático nestas, coisas, aproveitei para sugerir falar-lhes do Canto V d’ Os Lusíadas, que acho um belo exemplo de como a nova mentalidade empírica adquirida com os descobrimentos tocou também Camões. Os meus alunos lêem esse canto todos os anos no seminário "No Dealbar da Modernidade”, todavia nunca tinha tido ainda a oportunidade de passar ao papel o que penso sobre o assunto (sempre em diálogo com o que já existe publicado, que por sinal é pouco) e como o enquadro na escrita “moderna” produzida nos Descobrimentos.

Acertei na escolha. Vim munido de uma série de imagens em Power Point, porque elas sempre ajudam a manter a atenção do público. No entanto, ali para aquela assembleia nem teria sido preciso. Optei por não ler o texto, escrito para o efeito, e falei ilustrando a charla com as ditas imagens.

Choveram perguntas a revelar todas uma grande atenção e uma excelente cultura histórica (faz parte dos critérios de selecção dos membros, como já veremos). Todas muito directa e clarissimamente formuladas, sempre precedidas de um amável comentário à conferência. Mais ainda, impecavelmente curtas; nada de rodeios palavrosos.

Terminada a minha parte, seguiu-se a reunião da Society para tirocínio dos candidatos a membros. Quis ficar para ouvir pelo menos a prova de um candidato (probationary).

Espantosa experiência. Um moço de Direito falou sobre um aspecto específico da Guerra Civil. Sem papel, desenvolveu com brilho e elegância o tema até a presidente dar uma martelada na mesa interrompendo-o a meio de uma frase porque o seu tempo acabara. Ele estancou precisamente onde estava e nem terminou a frase. Seguiram-se os comentários de membros actuais, incidindo em dois aspectos: crítica de conteúdo e crítica formal. Nesta, até a colocação da voz recebeu reparos, sempre com sugestões positivas. Tudo feito com uma correcção e um ritual que… só vídeo. Descontraído e formal, sempre em linguagem muito educada mas totalmente directa. A uma das perguntas, o candidato, depois de pensar uns segundos, disse simplesmente com um ar concentrado: Não sei responder.

A sessão começa sempre às 7:29 pm. Thomas Jefferson era muito minucioso e marcou assim para ser primeiro do que outra organização que iniciava as suas reuniões às 7h e 30m. A tradição mantém-se mas, como há alguma flexibilidade, anunciam então que ela começa “aproximadamente às 7h e 29m”.
 
 
Onésimo Teotónio de Almeida