Da revista O Tempo e o Modo à Seara Nova, passando pela Vértice
(1963-1974)
A minha primeira
colaboração em revistas iniciou-se em 1963, durando até 1965, numa revista
católica progressista, O Tempo e o Modo,
com um artigo sobre O Deserto dos
Tártaros de Buzzati, em Outubro de 1963,[1] outro
sobre um romance de Uwe Johnson e, em 1964, outros ainda sobre um romance de
Aquilino e Fernanda Botelho, saindo em 1965 um derradeiro artigo, sobre
Nietzsche. Nada me levava a ter textos publicados nesta revista católica, já
que a minha participação n’O Tempo e o
Modo resultara apenas duma substituição proposta pessoalmente por Manuel
Pope (Lopes Cardoso) aos seus directores, com os quais se desentendera,
sugerindo-lhes o meu nome. A verdade é que nunca me senti à vontade nem com
qualquer consonância intelectual ou religiosa nesta revista dirigida por Alçada
Baptista[2] e
João Benard da Costa, dois intelectuais que mal conhecia e com os quais, na
verdade, jamais convivi nem apreciei, pelo que deixei de ali publicar artigos,
com excepção dum curto depoimento sobre o falecimento de Delfim Santos, em 1966
– texto que a Censura em larga medida retalhou. Nunca cheguei a participar numa
qualquer reunião da redacção, enviando os meus artigos pelo correio. Em resumo,
a efémera colaboração na revista católica progressista não passara dum pequeno
erro de casting.
Alberto Ferreira (1920-2000)
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Passei, então, em 1965,
graças ao meu amigo Alberto Ferreira – do qual falarei mais adiante –, a
colaborar com ensaios e recensões sobre literatura e ensaio, em duas revistas de
esquerda, de algum modo ligadas ao PCP, a Seara
Nova e a Vértice, esta última de Coimbra, nas quais publiquei bastantes
textos, só deixando de nelas colaborar após o 25 de Abril de 1974, quando ambas
se assumiram como órgãos do referido partido. Em suma, eram os simpatizantes do
marxismo que me convidavam a colaborar nas revistas deles e não qualquer pendor
ideológico meu que me levasse a faze-lo. Nessas centenas de artigos, creio
nunca ter citado Marx, nem na revista coimbrã nem na lisboeta, mesmo com as
perífrases cautelosas da praxe que a Censura impunha – por exemplo, mencionando
o autor d’O Capital como “o marido de
Jenny von Westphalen,” ou “o filósofo de Trier”, referindo Lenine como Vladimir
Ilitch ou, secamente, como Ulianov – e, antes pelo contrário, ousei afirmar
posições pessoais que ideologicamente se distanciavam por completo das
doutrinas do materialismo dialéctico, como a minha estima pela obra de
Soljenitsine.[3]
Como noutra passagem
destas memórias evoco de maneira explícita, a minha colaboração com os
comunistas tinha a ver, sobretudo e simplesmente, com a ideia óbvia de que
havia vantagem em unir todas as forças hostis ao regime de Salazar, táctica de
simples bom senso político, embora, no meu caso pessoal, despida de qualquer atracção ideológica pelo “diamat” (abreviatura
então muito usada para, entre simpatizantes, designar o materialismo
dialéctico), a doutrina de Marx ou o “socialismo real”(outra fórmula da praxe
retórica da cleresia partidária), ou seja, os regimes comunistas mundiais, a
começar pela suprema Jerusalém terrestre, a URSS, cujo tão idolatrado “paizinho dos povos” me
inspirara sempre uma mais do que figadal relutância, talvez até pela minha
precoce leitura de obras como A Nova
Classe (1957) e as Conversas com
Estaline (1962) de Milovan Djilas ou a terrível distopia 1984, de Orwell, às quais acrescentaria,
muito mais tarde, O Nós de Zamiatine,
obra a que dei o devido relevo num seminário de Mestrado que leccionei na
Faculdade de Letras, nos anos 90, sobre O
mundo distópico, no qual me ocupei também de Orwell, do citado Zamiatine e ainda
de Andrei Platonov.
Nestes contributos para a
formação da minha consciência crítica avessa à religião secular comunista
convertida em mito da Revolução – o tal “ópio dos intelectuais” de que falaria
Aron – estavam ainda outros contributos atípicos como as duas satíricos versões
cinematográficas feitas por Julien Duvivier das aventuras do cura italiano Don
Camillo e o seu amigo e adversário
Peppone, a partir dos divertidos romances de Giovanni Guareschi, que li
ainda muito jovem, no período do Colégio Militar e depois vi adaptados ao
cinema, nos anos 50, com a dupla Fernandel e
Gino Cervi em dois filmes do citado Duvivier.[4]
Porém, acima de tudo, a
leitura precoce da referida prodigiosa distopia 1984 de Orwell contribuiria de um modo decisivo para me afastar das
sereias comunistas. Por fim, não posso deixar de lembrar ainda uma outra
leitura importante, na minha fase adolescente, duma obra decisiva para a minha forma mentis, O Zero e o Infinito – o original inglês tinha um título muito mais
expressivo: Darkness at Noon, 1940 –,
a partir do relato ficcionado de uma das vítimas dos processos de Moscovo de
1936, obra de Arthur Koestler, escritor judeu nascido na Hungria, depois
jornalista na Alemanha e antigo agente do Komintern, que, tendo passado algum
tempo em Portugal, à espera de poder exilar-se na Grã-Bretanha, onde viveria o
resto da sua vida, narrando essa angustiada espera na Lusitânia - a que chamou
“Neutrália”-, num romance que nunca foi traduzido para português (Arrival and Departure).[5] Todas
estas obras, embora sendo do género da ficção, escritas ora como retrato
romanesco de invulgares experiências vividas por homens que tinham militado
pela Revolução – Orwell, esse combateu na Catalunha republicana durante a
guerra civil espanhola, deixando um dos documentos mais impressionantes dos
dramas do século XX, a Homenagem à
Catalunha –, ora imaginando a partir destas um futuro de utopia pervertida
e totalitária, me serviram para formar
uma visão do mundo que me tornava intelectualmente avesso a qualquer adesão ao
tipo de regimes ali retratados e denunciados como monstruosamente opressivos.
Tornando ao período da
minha vida que acima evocava, recordarei que, afastando-me da revista católica
progressista na qual não me sentia à vontade, até porque eu nem era cristão,
foi em 1965, graças ao meu amigo Alberto Ferreira (1920-2000), já acima
referido, que comecei a colaborar com ensaios e recensões em duas revistas de
esquerda, de algum modo ligadas ao PCP, a Seara
Nova e a Vértice, esta última de Coimbra. Alberto era ele mesmo, à sua
maneira, um intelectual marxista e escritor bastante heterodoxo, e talvez por
isso tivesse visto em mim um camarada mais jovem que seria bom chamar às fileiras
dos que, pela pena, combatiam a Direcção Única do Salazarismo. Em muitos anos
de conversas cordiais e através dum longo carteio trocado entre nós nos meus
anos de expatriação francesa – correspondência hoje guardada nos espólios da
Biblioteca Nacional, sendo as minhas cartas sarcásticas acompanhadas de
desenhos meus onde troçava da vida nacional e da França gaullista e pós-gaullista
onde eu vivia –, várias vezes lhe perguntei, sobretudo depois da crise na
esquerda suscitada pela “révolution introuvable” de Maio 68, como é que
espíritos estruturalmente liberais como ele – dando a liberal o sentido de
fidelidade a um pensamento independente, desprendido a quaisquer dogmas e
ataduras partidárias – podia ter admirado um político tão psicopata e monstruosamente
criminoso como Estaline e inscrever-se no parque jurássico do nosso PC. Uma
vez, numas férias do verão que eu viera a Portugal passar, numa longa conversa
travada entre ambos, no areal da Praia Grande, numa tarde amena de sol, estando
os dois a conversar sem mais ninguém a nosso lado, Alberto, depois de fazer uma
careta atormentada, respondeu a essa minha perplexidade expressa em o ver
inscrito no PCP, dizendo-me:
“–
Repara, João, que, desde os anos 30 até ao final da guerra e aos anos actuais, a
URSS e o Estalinismo, mesmo com os seus atrozes processos de Moscovo, mais o
infame Pacto Gemano-Soviético, os massacres de Katyn e o monstruoso arquipélago
do Gulag, eram a única luz que, na noite imensa europeia da opressão dos
fascismos e dos regimes capitalistas afins, brilhava no horizonte, para nós, em
suma, pobres lusíadas coitados, abandonados, esquecidos, perdidos neste
recanto do sudoeste europeu, sem tradições culturais de resistência, sem apoios
em sectores democráticos domésticos ou europeus, a não ser o auxílio vindo
desse distante Leste que raros conheciam directamente, nós, pobres lusitanos centrifugados,
tragicamente isolados no extremo sudoeste europeu e sem apoios neste obscuro
curral ibérico, de modo que o único auxílio que nos vinha, o daquela rígida e
dogmática versão que o despotismo do Minotauro georgiano encarnava, não o
víamos como tão odioso e repugnante como ela na verdade era… Essa luz mítica e
postiça era, deste modo, a única que podia alumiar a nossa esquálida noite
solitária sem fim e, de algum modo, preservar e auxiliar aqui a essência duma
Resistência ao salazarismo, à tacanhez e pertinácia repressiva da sua
perseguição a todos os homens livres…”
Estou certo que não foram
estas as palavras exactas que Alberto Ferreira então me disse, antes do 25 de
Abril, para justificar a sua filiação num partido de genética estalinista, mas
não duvido que era este o sentido que ele, como autor de obras como o Diário de Édipo ou A Crise, dava a uma devoção paradoxal a uma sistema tirânico de
“felicidade obrigatória” que engendrava Gulags e sofrimentos sem fim.
João Medina
NB: Estas páginas são excertos do livro inédito Memórias de um Estrangeirado.
[1] Artigo “Dino Buzzati e a aposta de Pascal”, O Tempo e o Modo, Lisboa, nº 9, pp.53-55. A minha admiração por
este grande romance italiano levar-me-ia, muitos anos depois, a abordá-lo em
confronto com o admirável filme que dele fez V. Zurlini: ver “O Deserto dos Tártaros, de Valerio
Zurlini, um filme metafísico”, revista Islenha,
Funchal, nº 50, Janeiro-Junho de 2012, pp. 101-108.
[2] Devo ainda acrescentar que o deplorável comportamento
de Alçada Baptista (1927-2008) durante o marcelismo me deixou consternado ao
ler o seu livro Conversas com Marcelo
Caetano (1973), inacreditável gaffe política cometida numa fase em que
o consulado marcelista já mostrara que não iria acabar com as facetas mais
odiosas do regime herdado de Salazar (prosseguiam as guerras coloniais, mantinham-se a censura à
imprensa, apelidada desde então de “exame prévio”, e a omnipotente polícia
política da Ditadura, mau grado a operação cosmética de designar a antiga PIDE
como DGS). Em suma, o livro apologético do ex-católico progressista aparecia
como uma espécie de equivalente às entrevistas feitas por António Ferro e
reunidas no volume Salazar, o Homem e a
sua Obra (1933). Da acção cultural positiva de Alçada Baptista há tão só
que recordar o advogado que dirigiria a Editora Moraes desde 1957 e lançara O Tempo e o Modo em 1963 (revista que,
em 1970 se tornaria um órgão maoísta). Alçada Baptista está hoje totalmente
esquecido como romancista, ensaísta ou memorialista, e até, provavelmente, como
figura dum certo catolicismo progressista que se deixou aliciar pelo logro
marcelista.
[3] A minha colaboração na Seara Nova iniciou-se no nº 1436, Junho de 1965, pp.182-184, com
uma recensão crítica muito negativa do romance de Agustina Bessa Luís Os Quatro Rios, publicado em 1964, prolongando-se,
em 1966, com outras duas recensões, uma desancando o filósofo Álvaro Ribeiro e
noutra o romancista J. Paço d’Arcos, passando, desde 1968, a interessar-me por
temas exclusivamente queirosianos, com dois artigos sobre Eça em 1970, outro em
1971, e travando em 1972 uma acesa polémica com Fausto Lopo de Carvalho acerca
de Ramalho Ortigão, por mim acusado de anti-semitismo, ao longo de três artigos
meus (vide a bibliografia João Medina. Pensar
e Sentir a História, Lisboa, CHUL,
2009,pp.82-83). Em 1974, poucas semanas antes do 25-IV, a editora Seara Nova editava o meu ensaio Eça político. Desde 1972 a 1974 colaborei com
frequência com recensões nos Arquivos do
Centro Cultural Português da Gulbenkian em Paris (então dirigida por um
antigo professor meu, Joaquim Veríssimo Serrão) e na Colóquio-Letras, revista da mesma Fundação, onde continuei a
publicar artigos nos anos seguintes. A derradeira publicação na S.N. ocorreu no nº 1545, em Julho de
1974, acerca da morte de Salazar (“A velha morreu”, texto redigido em 1970).
Ainda quanto à escritora Bessa-Luís, sucederia que, tendo sido eu convidado a
ir com ela à Roménia, ao abrigo do protocolo cultural assinado em 1980 entre
aquele país e Portugal, tive o gosto de a conhecer pessoalmente e de viajar, cada
um de nós acompanhado com o seu cônjuge, visita de que guardarei saudosa
lembrança, até pela grande cordialidade que reuniu os nossos dois casais nessa
romaria à terra do sinistro Ceaucescu – no regresso, publiquei no semanário Ponto (exemplar que perdi) uma feroz
crítica ao regime ditatorial romeno (“Big Brother em Bucareste”, assim se
intitulava ele).
[4] Dediquei um ensaio aos livros de G. Guareschi n’Os meus Vícios, Vª Nª de Famalicão, editora
Húmus, 2001, pp.36-43 (“O meu amigo Don Camillo”), texto no qual explico que,
não sendo católico, simpatizei sempre com o cura que se opunha ao presidente da
Câmara PCI duma aldeia chamada Bassa, na planície do rio Pó. Os dois filmes de
Julien Duvivier são Le Monde de Don
Camillo (filme franco-italianao,1951) e Le
Retour de Don Camillo (filme franco-italiano,1953).
[5] Sobre o 1948
de George Orwell e O Zero e o Infinto
(Darkness at Noon, 1940) de Arthur Koestler,
bem como sobre o Don Camillo de
Guareschi, veja-se o nosso A Cultura
durante a Guerra Fria (roteiro temático e bibliográfico”, revista Clio, nova série, volume 16/17, Lisboa,
2007, pp.437-505, maxime pp.489
(Orwell),452-3, 453-4 (Koestler) e 454 (Don
Camillo), além de bibliografia sobre cada um destes autores (pp.464-5) e, 489-91 (biografias de Orwell e
Koestler).
Regalei-me, há dias, a ler a 3.ª edição do último livro publicado em vida por Alçada Baptista, A Cor dos Dias - Memórias e Peregrinações, que é de 2003. A Pesca à Linha, outra excelente obra memorialística de Alçada, de 1998, já vai na 6.ª edição. Os romances de Alçada, publicados desde meados dos anos 80, têm todos mais de 10 edições, algumas delas recentes. O Riso de Deus já vai na 15ª ou 16ª edição. Se há quem não goste da sua literatura, nada mais natural, nunca se poderá dizer que está "totalmente esquecido como romancista, ensaísta e memorialista", como aqui diz a nota de rodapé 2. Eu, que não o conheci pessoalmente, tenho grande estima pela obra memorialística desse "boémio do espírito", um ser afectivo, tolerante, reflexivo, sério, mas também possuidor de um raro sentido de humor. Não admira que tenha feito amigos por todo o lado e em todos os quadrantes.
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