sexta-feira, 7 de agosto de 2015

De O Tempo e o Modo à Seara Nova.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Da revista O Tempo e o Modo à Seara Nova, passando pela Vértice
(1963-1974)
 
 
A minha primeira colaboração em revistas iniciou-se em 1963, durando até 1965, numa revista católica progressista, O Tempo e o Modo, com um artigo sobre O Deserto dos Tártaros de Buzzati, em Outubro de 1963,[1] outro sobre um romance de Uwe Johnson e, em 1964, outros ainda sobre um romance de Aquilino e Fernanda Botelho, saindo em 1965 um derradeiro artigo, sobre Nietzsche. Nada me levava a ter textos publicados nesta revista católica, já que a minha participação n’O Tempo e o Modo resultara apenas duma substituição proposta pessoalmente por Manuel Pope (Lopes Cardoso) aos seus directores, com os quais se desentendera, sugerindo-lhes o meu nome. A verdade é que nunca me senti à vontade nem com qualquer consonância intelectual ou religiosa nesta revista dirigida por Alçada Baptista[2] e João Benard da Costa, dois intelectuais que mal conhecia e com os quais, na verdade, jamais convivi nem apreciei, pelo que deixei de ali publicar artigos, com excepção dum curto depoimento sobre o falecimento de Delfim Santos, em 1966 – texto que a Censura em larga medida retalhou. Nunca cheguei a participar numa qualquer reunião da redacção, enviando os meus artigos pelo correio. Em resumo, a efémera colaboração na revista católica progressista não passara dum pequeno erro de casting.
 
 
 
Alberto Ferreira (1920-2000)
 
 
Passei, então, em 1965, graças ao meu amigo Alberto Ferreira – do qual falarei mais adiante –, a colaborar com ensaios e recensões sobre literatura e ensaio, em duas revistas de esquerda, de algum modo ligadas ao PCP, a Seara Nova e a Vértice, esta última de Coimbra, nas quais publiquei bastantes textos, só deixando de nelas colaborar após o 25 de Abril de 1974, quando ambas se assumiram como órgãos do referido partido. Em suma, eram os simpatizantes do marxismo que me convidavam a colaborar nas revistas deles e não qualquer pendor ideológico meu que me levasse a faze-lo. Nessas centenas de artigos, creio nunca ter citado Marx, nem na revista coimbrã nem na lisboeta, mesmo com as perífrases cautelosas da praxe que a Censura impunha – por exemplo, mencionando o autor d’O Capital como “o marido de Jenny von Westphalen,” ou “o filósofo de Trier”, referindo Lenine como Vladimir Ilitch ou, secamente, como Ulianov – e, antes pelo contrário, ousei afirmar posições pessoais que ideologicamente se distanciavam por completo das doutrinas do materialismo dialéctico, como a minha estima pela obra de Soljenitsine.[3]                 
Como noutra passagem destas memórias evoco de maneira explícita, a minha colaboração com os comunistas tinha a ver, sobretudo e simplesmente, com a ideia óbvia de que havia vantagem em unir todas as forças hostis ao regime de Salazar, táctica de simples bom senso político, embora, no meu caso pessoal, despida de qualquer  atracção ideológica pelo “diamat” (abreviatura então muito usada para, entre simpatizantes, designar o materialismo dialéctico), a doutrina de Marx ou o “socialismo real”(outra fórmula da praxe retórica da cleresia partidária), ou seja, os regimes comunistas mundiais, a começar pela suprema Jerusalém terrestre, a URSS, cujo  tão idolatrado “paizinho dos povos” me inspirara sempre uma mais do que figadal relutância, talvez até pela minha precoce leitura de obras como A Nova Classe (1957) e as Conversas com Estaline (1962) de Milovan Djilas ou a terrível distopia 1984, de Orwell, às quais acrescentaria, muito mais tarde, O Nós de Zamiatine, obra a que dei o devido relevo num seminário de Mestrado que leccionei na Faculdade de Letras, nos anos 90, sobre O mundo distópico, no qual me ocupei também de Orwell, do citado Zamiatine e ainda de Andrei Platonov.
Nestes contributos para a formação da minha consciência crítica avessa à religião secular comunista convertida em mito da Revolução – o tal “ópio dos intelectuais” de que falaria Aron – estavam ainda outros contributos atípicos como as duas satíricos versões cinematográficas feitas por Julien Duvivier das aventuras do cura italiano Don Camillo e o seu amigo e adversário  Peppone, a partir dos divertidos romances de Giovanni Guareschi, que li ainda muito jovem, no período do Colégio Militar e depois vi adaptados ao cinema, nos anos 50, com a dupla Fernandel e  Gino Cervi em dois filmes do citado Duvivier.[4]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Porém, acima de tudo, a leitura precoce da referida prodigiosa distopia 1984 de Orwell contribuiria de um modo decisivo para me afastar das sereias comunistas. Por fim, não posso deixar de lembrar ainda uma outra leitura importante, na minha fase adolescente, duma obra decisiva para a minha forma mentis, O Zero e o Infinito  o original inglês tinha um título muito mais expressivo: Darkness at Noon, 1940 –, a partir do relato ficcionado de uma das vítimas dos processos de Moscovo de 1936, obra de Arthur Koestler, escritor judeu nascido na Hungria, depois jornalista na Alemanha e antigo agente do Komintern, que, tendo passado algum tempo em Portugal, à espera de poder exilar-se na Grã-Bretanha, onde viveria o resto da sua vida, narrando essa angustiada espera na Lusitânia - a que chamou “Neutrália”-, num romance que nunca foi traduzido para português (Arrival and Departure).[5] Todas estas obras, embora sendo do género da ficção, escritas ora como retrato romanesco de invulgares experiências vividas por homens que tinham militado pela Revolução – Orwell, esse combateu na Catalunha republicana durante a guerra civil espanhola, deixando um dos documentos mais impressionantes dos dramas do século XX, a Homenagem à Catalunha –, ora imaginando a partir destas um futuro de utopia pervertida e totalitária, me  serviram para formar uma visão do mundo que me tornava intelectualmente avesso a qualquer adesão ao tipo de regimes ali retratados e denunciados como monstruosamente opressivos.
Tornando ao período da minha vida que acima evocava, recordarei que, afastando-me da revista católica progressista na qual não me sentia à vontade, até porque eu nem era cristão, foi em 1965, graças ao meu amigo Alberto Ferreira (1920-2000), já acima referido, que comecei a colaborar com ensaios e recensões em duas revistas de esquerda, de algum modo ligadas ao PCP, a Seara Nova e a Vértice, esta última de Coimbra. Alberto era ele mesmo, à sua maneira, um intelectual marxista e escritor bastante heterodoxo, e talvez por isso tivesse visto em mim um camarada mais jovem que seria bom chamar às fileiras dos que, pela pena, combatiam a Direcção Única do Salazarismo. Em muitos anos de conversas cordiais e através dum longo carteio trocado entre nós nos meus anos de expatriação francesa – correspondência hoje guardada nos espólios da Biblioteca Nacional, sendo as minhas cartas sarcásticas acompanhadas de desenhos meus onde troçava da vida nacional e da França gaullista e pós-gaullista onde eu vivia –, várias vezes lhe perguntei, sobretudo depois da crise na esquerda suscitada pela “révolution introuvable” de Maio 68, como é que espíritos estruturalmente liberais como ele – dando a liberal  o sentido de fidelidade a um pensamento independente, desprendido a quaisquer dogmas e ataduras partidárias – podia ter admirado um político tão psicopata e monstruosamente criminoso como Estaline e inscrever-se no parque jurássico do nosso PC. Uma vez, numas férias do verão que eu viera a Portugal passar, numa longa conversa travada entre ambos, no areal da Praia Grande, numa tarde amena de sol, estando os dois a conversar sem mais ninguém a nosso lado, Alberto, depois de fazer uma careta atormentada, respondeu a essa minha perplexidade expressa em o ver inscrito no PCP, dizendo-me:
         “– Repara, João, que, desde os anos 30 até ao final da guerra e aos anos actuais, a URSS e o Estalinismo, mesmo com os seus atrozes processos de Moscovo, mais o infame Pacto Gemano-Soviético, os massacres de Katyn e o monstruoso arquipélago do Gulag, eram a única luz que, na noite imensa europeia da opressão dos fascismos e dos regimes capitalistas afins, brilhava no horizonte, para nós, em suma, pobres lusíadas coitados,  abandonados, esquecidos, perdidos neste recanto do sudoeste europeu, sem tradições culturais de resistência, sem apoios em sectores democráticos domésticos ou europeus, a não ser o auxílio vindo desse distante Leste que raros conheciam directamente, nós, pobres lusitanos centrifugados, tragicamente isolados no extremo sudoeste europeu e sem apoios neste obscuro curral ibérico, de modo que o único auxílio que nos vinha, o daquela rígida e dogmática versão que o despotismo do Minotauro georgiano encarnava, não o víamos como tão odioso e repugnante como ela na verdade era… Essa luz mítica e postiça era, deste modo, a única que podia alumiar a nossa esquálida noite solitária sem fim e, de algum modo, preservar e auxiliar aqui a essência duma Resistência ao salazarismo, à tacanhez e pertinácia repressiva da sua perseguição a todos os homens livres…”
Estou certo que não foram estas as palavras exactas que Alberto Ferreira então me disse, antes do 25 de Abril, para justificar a sua filiação num partido de genética estalinista, mas não duvido que era este o sentido que ele, como autor de obras como o Diário de Édipo ou A Crise, dava a uma devoção paradoxal a uma sistema tirânico de “felicidade obrigatória” que engendrava Gulags e sofrimentos sem fim.
 
                                                                                                                 João Medina
 
 
NB: Estas páginas são excertos do livro inédito Memórias de um Estrangeirado.
 



[1] Artigo “Dino Buzzati e a aposta de Pascal”, O Tempo e o Modo, Lisboa,  nº 9, pp.53-55. A minha admiração por este grande romance italiano levar-me-ia, muitos anos depois, a abordá-lo em confronto com o admirável filme que dele fez V. Zurlini: ver “O Deserto dos Tártaros, de Valerio Zurlini, um filme metafísico”, revista Islenha, Funchal, nº 50, Janeiro-Junho de 2012, pp. 101-108.

[2] Devo ainda acrescentar que o deplorável comportamento de Alçada Baptista (1927-2008) durante o marcelismo me deixou consternado ao ler o seu livro Conversas com Marcelo Caetano (1973),  inacreditável gaffe política cometida numa fase em que o consulado marcelista já mostrara que não iria acabar com as facetas mais odiosas do regime herdado de Salazar (prosseguiam as  guerras coloniais, mantinham-se a censura à imprensa, apelidada desde então de “exame prévio”, e a omnipotente polícia política da Ditadura, mau grado a operação cosmética de designar a antiga PIDE como DGS). Em suma, o livro apologético do ex-católico progressista aparecia como uma espécie de equivalente às entrevistas feitas por António Ferro e reunidas no volume Salazar, o Homem e a sua Obra (1933). Da acção cultural positiva de Alçada Baptista há tão só que recordar o advogado que dirigiria a Editora Moraes desde 1957 e lançara O Tempo e o Modo em 1963 (revista que, em 1970 se tornaria um órgão maoísta). Alçada Baptista está hoje totalmente esquecido como romancista, ensaísta ou memorialista, e até, provavelmente, como figura dum certo catolicismo progressista que se deixou aliciar pelo logro marcelista.

[3] A minha colaboração na Seara Nova iniciou-se no nº 1436, Junho de 1965, pp.182-184, com uma recensão crítica muito negativa do romance de Agustina Bessa Luís Os Quatro Rios, publicado em 1964, prolongando-se, em 1966, com outras duas recensões, uma desancando o filósofo Álvaro Ribeiro e noutra o romancista J. Paço d’Arcos, passando, desde 1968, a interessar-me por temas exclusivamente queirosianos, com dois artigos sobre Eça em 1970, outro em 1971, e travando em 1972 uma acesa polémica com Fausto Lopo de Carvalho acerca de Ramalho Ortigão, por mim acusado de anti-semitismo, ao longo de três artigos meus (vide a bibliografia João Medina. Pensar e Sentir a História, Lisboa,  CHUL, 2009,pp.82-83). Em 1974, poucas semanas antes do 25-IV, a editora Seara Nova editava o meu ensaio Eça político. Desde 1972 a 1974 colaborei com frequência com recensões nos Arquivos do Centro Cultural Português da Gulbenkian em Paris (então dirigida por um antigo professor meu, Joaquim Veríssimo Serrão) e na Colóquio-Letras, revista da mesma Fundação, onde continuei a publicar artigos nos anos seguintes. A derradeira publicação na S.N. ocorreu no nº 1545, em Julho de 1974, acerca da morte de Salazar (“A velha morreu”, texto redigido em 1970). Ainda quanto à escritora Bessa-Luís, sucederia que, tendo sido eu convidado a ir com ela à Roménia, ao abrigo do protocolo cultural assinado em 1980 entre aquele país e Portugal, tive o gosto de a conhecer pessoalmente e de viajar, cada um de nós acompanhado com o seu cônjuge, visita de que guardarei saudosa lembrança, até pela grande cordialidade que reuniu os nossos dois casais nessa romaria à terra do sinistro Ceaucescu – no regresso, publiquei no semanário Ponto (exemplar que perdi) uma feroz crítica ao regime ditatorial romeno (“Big Brother em Bucareste”, assim se intitulava ele).

[4] Dediquei um ensaio aos livros de G. Guareschi n’Os meus Vícios, Vª Nª de Famalicão, editora Húmus, 2001, pp.36-43 (“O meu amigo Don Camillo”), texto no qual explico que, não sendo católico, simpatizei sempre com o cura que se opunha ao presidente da Câmara PCI duma aldeia chamada Bassa, na planície do rio Pó. Os dois filmes de Julien Duvivier são Le Monde de Don Camillo (filme franco-italianao,1951) e Le Retour de Don Camillo (filme franco-italiano,1953).

[5] Sobre o 1948 de George Orwell e O Zero e o Infinto (Darkness at Noon, 1940) de Arthur Koestler, bem como sobre o Don Camillo de Guareschi, veja-se o nosso A Cultura durante a Guerra Fria (roteiro temático e bibliográfico”, revista Clio, nova série, volume 16/17, Lisboa, 2007, pp.437-505, maxime pp.489 (Orwell),452-3, 453-4 (Koestler) e 454 (Don Camillo), além de bibliografia sobre cada um destes autores  (pp.464-5) e, 489-91 (biografias de Orwell e Koestler).
 
 
 

1 comentário:

  1. Regalei-me, há dias, a ler a 3.ª edição do último livro publicado em vida por Alçada Baptista, A Cor dos Dias - Memórias e Peregrinações, que é de 2003. A Pesca à Linha, outra excelente obra memorialística de Alçada, de 1998, já vai na 6.ª edição. Os romances de Alçada, publicados desde meados dos anos 80, têm todos mais de 10 edições, algumas delas recentes. O Riso de Deus já vai na 15ª ou 16ª edição. Se há quem não goste da sua literatura, nada mais natural, nunca se poderá dizer que está "totalmente esquecido como romancista, ensaísta e memorialista", como aqui diz a nota de rodapé 2. Eu, que não o conheci pessoalmente, tenho grande estima pela obra memorialística desse "boémio do espírito", um ser afectivo, tolerante, reflexivo, sério, mas também possuidor de um raro sentido de humor. Não admira que tenha feito amigos por todo o lado e em todos os quadrantes.

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