impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 96 - CHRISTIAN
McBRIDE
Que o jazz acabou é o invariável mantra recitado
pelos que o despovoaram, entregue ao punhado de cultores progressivamente
grisalhos, alguns radicalizados, porque cada vez mais acrimoniosos com um mundo
desatento à sua paixão, outros apenas confortáveis por serem deixados em paz no
enlevo desta música que já ninguém discute.
Visto assim, o jazz tornou-se, de facto,
num género molecular. Todavia, remanescendo ao desinteresse das editoras, que vão
esquecendo os músicos na sala de espera, e das dificuldades em chegar, fora do
armazém grossista do digital, às gravações publicadas, é curioso que, para quem
estiver interessado, não esmoreceram as atracções no mundilho do jazz.
Está hoje a autenticar muito do que dela
se esperou a geração despontada na dobra do século, a última que ainda ouviu alguns
heróis lendários ao vivo. Entre estes músicos que vimos crescer e são agora
veteranos, destaca-se o contrabaixista Christian McBride. Assim que cumpriu o
americano ritual de atirar ao ar o capelo quadrado na cerimónia de formatura da
Juillard – canudo mais conceituado não haverá no planeta – foi convidado a
fazer oficina nas actuações saxofonista Joshua Redman com o guitarrista Pat
Metheney, capazes de apertar o estômago dos bravos quanto mais o de um chavalo.
Tendo dado belíssima conta do recado, desde esse ano de 1993 que McBride se foi
firmando na cena do jazz. “Exceptionally gifted young bassist” ou “astonishing”,
escreveu Gary Giddins, um Midas da crítica como haverá poucos, dourando o
crédito daqueles que elogia.
A humildade é o atributo primordial de
um contrabaixista, aquele que tanto mais se evidencia quanto mais terso e
seguro for o tapete rítmico e harmónico que desenrolar à passada dos sopros ou
do piano, conforme o solista. (Ponha-se lá o Mingus no bolso outra vez: ninguém
melhor do que ele brandiu a ditadura do contrabaixo para pôr em sentido os
agrupamentos, que em ordem ordenada interpretavam as suas próprias e
sofisticadíssimas composições). A arte de Christian McBride não está, portanto,
no andamento melódico (em que muitos se despistam e estampam, quando a
envergadura não corresponde à ousadia), mas num pulsar rítmico de acertar o
relógio por ele, e numa claridade tonal incapaz de deixar à sombra uma nota que
seja.
Nem sempre contraído pela tradição, tinha
dias que Christian McBride pousava o canónico contrabaixo e fazia uma mãozinha
no baixo eléctrico, dedilhando um funky de asas abertas. Inevitavelmente lhe
caíam em cima os anciãos com reprimendas; e embora soubesse que se intrometiam por
amor e crença nele, pois os mestres só dirigem palavra aos favoritos, McBride
resmungava: “Haverá alguma cerimónia de graduação em que Ray Brown, Hank Jones
ou Tommy Flanagan venham ao Clube Bradley’s outorgar-me o diploma?”
É difícil individualizar um registo
especial de um músico que vive a esplendorosa idade dos ”-entas”, dado que,
como tão bem sabem os franceses, uma obra-em-progressão é feita mais de
ziguezagues que de evoluções e a qualquer hora pode ser renegada pelo seu autor.
Deste modo, escolha-se “Sci-Fi”, não só porque apesar de ter sido editado no
ano 2000 a revista Downbeat o arrolou entre os melhores da primeira década do
séc. XXI, mas, sobretudo, porque o disco está naquela charneira em que já se
pedem confirmações em vez de promessas, não obstante se lhe exija a franqueza
da juventude, em contraponto ao siso que assenta com a maturidade.
Sci-Fi
2000
Universal / Verve – 5439152 Ron Blake
Christina McBride (contrabaixo, baixo eléctrico, Fender
Rhodes, teclados), Ron Blake (saxofones tenro e soprano), Shdrick Mitchell
(piano, Fender Rhodes), Rodney Green (bateria), Herbie Hancock (piano), Dianne
Reeves (voz), Toots Thielmans (harmónica), James Carter (clarinete baixo),
David Gilmore (guitarra acústica e eléctrica).
“Sci-Fi” é um ovo. Dali tudo pode
nascer, tantos são os percursos que anuncia as referências que engloba. Os
puristas achá-lo-ão demasiado híbrido, porquanto Christian McBride dedilha o
contrabaixo, toca-o com o arco, sola no baixo eléctrico, vai do funk ao hard
bop, tempera com uma pitada de cool, inclui no repertório “Walking on the Moon”
de Sting (bem de longe, como se o ouvíssemos noutro planeta), ou o complexo
“Havona” de Jaco Pastorius. Uma salganhada? Não, precisamente, porque cometeu o
prodígio de ser sintético e não eclético, ou seja, de decantar na forma do jazz
todas as referências alienígenas. Se foi por razões comerciais que Christian
McBride pediu a algumas estrelas que abrilhantassem “Sci-Fi” – Herbie Hancock,
Dianne Reeves, Toots Thielmans, James Carter, David Gilmore – se o fez para
legitimar ou ratificar o seu estatuto, se foram estes os casos, em boa hora
vieram, visto que a reunião em nada resultou protocolar ou cuidadosa, mas com o
tempero de um encontro de parelhos.
Em
2009, depois de ter sido votado contrabaixista do ano pelos leitores e pela
crítica (mais entronizações se seguiram) Christian McBride premiou-se,
rematando por boa soma em leilão, o magnífico contrabaixo do seu mentor Ray
Brown, um gesto que teve “mais a natureza de uma herança do que o resultado de
uma aquisição”. Não será, portanto, amanhã que o jazz vai acabar…
José Navarro de Andrade
Voltei.
ResponderEliminarComo o post do Benny já mora longe, aproveito para dizer que estou a preparar uma entrada para ele, mas trata-se de uma estupenda edição do Público de 2005.
Acontece que o formidável booklet tem 60 páginas e é difícil de digitalizar.
Vai demorar um tempo.
Aqui o McBride vai ter que esperar.
Até breve.
Seja benvindo de volta.
ResponderEliminarObrigado.
ResponderEliminarColoquei hoje o McBride com Outros em dose dupla.