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Amália Rodrigues,
na sua casa no Brejão
(fotografia de Octávio Diaz-Bérrio, 1972)
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Após vários anos de consultas médicas
em Portugal e de mil e uma frustrações por ver passar o tempo e não ver
detectada a doença que tanto a apoquentava e tanto a fazia sofrer, a Amália
resolveu vir aos Estados Unidos consultar médicos americanos.
Como o primo do Eng. César Seabra, marido
da Amália, era médico de clínica geral e especialista em cirurgia torácica,
veio para casa dele, localizada em Waterbury, estado de Connecticut. E como o
primo do César, além de exercer, por esse tempo, o cargo de chefe do
Departamento de Cirurgia Torácica no Saint Mary´s Hospital, em Waterbury, tinha
também o seu consultório particular, foi por aí que a Amália começou, tendo-se
submetido a todo o tipo de exames médicos, prescritos pelo Dr. Veiga. Uma vez
detectada a doença – um tumor maligno na
carótida –, a Amália foi operada, com êxito, pelo Dr. Gotay no hospital onde
trabalhava o Dr. Adriano Seabra Veiga.
Após
lhe haver sido dado alta do hospital, a Amália foi fazer a convalescença a casa
do Dr. Seabra Veiga, onde sempre tinha estado hospedada, juntamente com o
marido e com a D. Lili, espécie de governanta, secretária e companheira fiel da
Amália, como já foi referido. Dizer que foi tratada como uma princesa é
desnecessário. Em casa do Dr. Veiga e da D. Rita, todos os hóspedes eram
tratados com todos os requintes de fidalguia. Nesses tempos ainda a família
Seabra Veiga tinha uma ou duas empregadas, motorista e jardineiro. E quando
havia convidados de cerimónia, por ocasião de banquetes, o que acontecia com
bastante frequência, apareciam cozinheiros suplementares, mordomo e serventes
de mesa, trajando os uniformes da praxe.
Completamente restabelecida, a Amália
regressou a Portugal e voltou às luzes da ribalta, continuando a cantar o fado
nas mais célebres salas de espectáculos do mundo inteiro, com realce para a
França. Mas, passados anos, surgem novas doenças. E, sendo assim, aí vem a
Amália tratar-se novamente aos Estados Unidos, hospedando-se, como da primeira
vez, em casa do primo do marido. Só que, em virtude do tipo de operação a que
teve de submeter-se, desta vez foi operada, não no Saint Mary´s Hospital, em
Waterbury, mas no Yale New Haven Hospital, em New Haven, localizado também no
estado de Connecticut. Aliás, viria a ser também nesse mesmo hospital que,
tempos mais tarde, lhe viria a ser extraído um cancro nos pulmões, por meio de
uma pneumatomia.
Foi após esta terceira operação feita
nos Estados Unidos que, embora ainda muito combalida, a precisar de cuidados
permanentes e de passar quase todo o tempo na cama, a Amália começa a sentir-se
tentada a dizer sim aos inúmeros admiradores, de entre os membros da comunidade
luso-americana da Nova Inglaterra, que desejavam visitá-la em casa da família
Seabra Veiga.
E foi assim que um dia – um domingo
frio e chuvoso de inverno, que saudosamente lembro – se combinou autorizar uma
visita à Amália, por parte de uma comitiva de fadistas e guitarristas vindos da
cidade de Newark, estado de Nova Jersey (Newark tem a distinção de ser a cidade
americana com o maior número de murtoseiros e de ser uma das cidades americanas
com o maior contingente de luso-americanos).
Como
os fadistas e os guitarristas se perderam pelo caminho, chegaram a Waterbury
com quase duas horas de atraso. Na opinião do Dr. Veiga, na sua qualidade de
anfitrião e sobretudo de médico, e também por temperamento e feitio, deveria
reduzir-se o tempo da visita ao mínimo, fazendo recolher a Amália ao quarto de
doente e de repouso, logo após os cumprimentos e uns breves minutos de
convívio. Mas a Amália, toda coração, e mais carente de calor humano do que de
medicamentos, afirmou que estava a sentir-se melhor e que, portanto, a visita
podia ser prolongada, tanto mais tendo em conta a longa viagem, com um tempo
tão mau, ainda por cima, que todos esses seus grandes e bons admiradores,
embora não conhecidos dela, tinham feito para cumprimentá-la e homenageá-la.
Depois de uma opípara e farta merenda,
entremeada de conversa amena, a saber a reminiscências acariciadoras da
compreensível vaidade da Amália, da mais variada procedência, as guitarras
começaram a chorar tristezas e saudades, e as vozes começaram a soluçar fados
dolentes, enquanto a Amália, sentada numa fofa cadeira de braços e
confortavelmente agasalhada, escutava e saboreava de olhos semicerrados e de
rosto ensimesmado, num rictus meio
trágico, os sons das guitarras e as vozes dos fadistas. Pouco a pouco,
melancolicamente embalada pelo som de alguns dos seus fados mais antológicos, a
Amália não resiste e, quase inconsciamente, começa a associar a sua voz tímida
e doente à dos cantadores e cantadeiras desses seus fados. E chega o momento em
que a Amália, como que esquecida do seu precário estado de saúde, se põe a
cantarolar sozinha, em surdina, um dos seus fados favoritos. Efusivamente
aplaudida, pede aos guitarristas que a acompanhem num dos seus outros fados
tristes. E os guitarristas, visivelmente lisonjeados, enchem-se de brio e
paixão e satisfazem o desejo da Amália.
Findo esse fado, o Cirurgião,
estupidamente esquecido das limitações da Amália, sugere que ela cante, mesmo
que seja sotto voce, o Barco Negro. Mostrando, por uma vez, o bom
senso que o Cirurgião não tinha, a Amália, com um sorriso fugaz de doente,
reagiu com estas palavras que o Cirurgião recordará envergonhado pela vida
inteira: “Ó doutor, como sei que me quer bem e deseja que eu continue a viver,
não lhe posso fazer a vontade. O Barco
Negro, que fez de mim a cantora internacional que hoje sou, é superior às
minhas forças.”
Foi
então que o Dr. Veiga, aproveitando esta saída da Amália, achou por bem dar por
terminada a sessão de homenagem com que os briosos fadistas e guitarristas de
Newark tinham deliciado a Rainha do Fado, e os seus amigos e admiradores, numa
mágica e inesquecível tarde chuvosa e fria de inverno da Nova Inglaterra.
António
Cirurgião
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