quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Lisboa, 1941.

 
 
 
Annemarie Schwarzenbach (1908-1942)
 
 
 
 
A escritora, jornalista e fotógrafa suíça Annemarie Schwarzenbach (1908-1942) é bastante conhecida entre nós, graças a uma retrospectiva da sua obra fotográfica («Auto-Retratos do Mundo», no CCB, 2011) e à edição de dois livros, com chancela da Tinta-da-china: Morte na Pérsia e Auto-Retratos do Mundo. Menos conhecido é um breve livro intitulado Annemarie Schwarzenbach em Portugal (1941, 1942), que recolhe os artigos por si publicados aquando das duas visitas que realizou a Portugal. Coordenada por Gonçalo Vilas-Boas (que também assina uma excelente introdução), a colectânea desses textos, traduzidos por Maria Antónia Amarante, foi editada pelo Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos (Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra).
Não é este o momento mais adequado para falarmos da biografia extraordinária de Annemarie Schwarzenbach, limitando-nos a reproduzir o primeiro artigo que publicou sobre Portugal: «Lissabon – neues Leben in einer alten Stadt», saído em 19-III-1941 no Die Wetlwoche e traduzido entre nós, como se disse, num interessantíssimo livro coordenado por Gonçalo Vilas-Boas.   
 

Lisboa, 1941
Fotografia de Annemarie Schwarzenbach

 
 
 
Lisboa – vida nova numa cidade antiga
 
Em Lisboa, não se encontram muitas casas antigas que tivessem sobrevivido ao terramoto de 1755. No entanto, com as suas ruelas empedradas subindo as colinas, as largas escadarias, as fachadas barrocas das igrejas, lojas de vinhos, cafés e pátios orientais, há na cidade um carácter de antiguidade contemplativa; e a pétrea majestade de algumas frontarias palacianas com pesados portais, o esplendor do faustoso Mosteiro de Belém conferem-lhe um cunho de grandeza histórica enquanto a fresca brisa marítima e a doçura calorosa do sol, derramando a sua luz sobre os jardins e as colinas cobertas de oliveiras, lhe acrescentam uma nota de desembaraço e alegria de viver comum aos portos meridionais. Não me deveria ter surpreendido quando, não faz muito tempo, me dirigi ao endereço onde outrora funcionara a embaixada de um pequeno país abalado pelo início desta Guerra Mundial e, fora da cidade, a grande distância do centro, deparei com uma casa apalaçada que reunia todas estas características. Na ruela dominada pelo ruído dos cascos de cavalos, das peixeiras, das buzinas dos táxis, mal se abriam duas ou três janelas estreitas na parede da casa amarelo ocre que, no seu impressionante silêncio, lançava, ao sol do meio-dia, uma sombra indolente e solene. Algum tempo antes tinham-nos precedido, entrando pelo portão, duas carruagens, uma de dois e outra de quatro cavalos, dirigindo-se para a escadaria da entrada. Após a passagem, reinava agora um silêncio e uma frescura quase monacais. Enquanto esperava pelo criado que se apressara a subir a escada, tive ensejo de lançar um olhar ao pátio interior da casa onde floresciam, lado a lado, narcisos, cactos e camélias de um rosa profundo, de estilo mourisco. Depois, conduziram-me pela escadaria de pedra acima, passando pelas cópias enegrecidas de quadros a óleo espanhóis e romanos e, numa sucessão de salas luminosas decoradas com tapetes marroquinos e de Baccarat, tapeçarias e gravuras francesas amarelecidas, fiquei à espera do antigo embaixador que agora representa em Portugal a Cruz Vermelha do seu país.
         Em Ancara, havia alguns anos, conhecera o irmão que também era embaixador e tinha a paixão dos cavalos (…).
         Antes de me despedir dele, revelou-me o nome da ilustre família portuguesa em cujo palácio da cidade ele residia, por assim dizer na qualidade de refugiado.
         «Antes, a casa estava desocupada», explicou-me ele, «mas a catástrofe europeia que aniquilou todas as conquistas da nossa civilização ou as converteu em armas contra a humanidade sofredora, devolveu a Portugal um significado trágico no limiar de um mundo que está para se descobrir.»
         Esta conversa não foi a única do género que tive em Lisboa. Nos dias de hoje, a secção nacional da Cruz Vermelha da maioria dos países europeus tem representantes nesta cidade e o Comité Internacional de Genebra enviou um funcionário seu no passado mês de Novembro. A 22 de Dezembro, o primeiro barco da Cruz Vermelha largou do porto de Lisboa, rumo a Marselha, com um carregamento de donativos. Um comissário especial para os refugiados tem também um gabinete em Lisboa. 
 E isto é apenas um breve excerto do panorama que é o novo significado de Lisboa. Atente-se no seguinte: este é o último porto livre na costa europeia do Atlântico. Aqui aportam os paquetes da American Export Lines, a única companhia que ainda assegura o tráfego entre a Europa e os EUA. Aqui aportam os transatlânticos da América Latina e os navios de África e os clippers panamericanos. O Canal de Suez está encerrado; o Mediterrâneo volta a ser mais um lago interior vigiado por Gibraltar do que um mare nostrum. Quem quiser chegar à Índia, tem de contornar o Cabo da Boa Esperança, como nos velhos tempos, e o continente nego é imenso: os navios portugueses precisam de mais de quatro semanas para ir de Lisboa até Lourenço Marques, em Moçambique. Um amigo meu que foi enviado para o Egipto como observador militar ficou quase um mês retido em Lisboa, sem arranjar forma de chegar ao Cairo. E ele tinha passaporte e os vistos em ordem. Na grande sala de espera da Europa, estão sentados milhares de viajantes, uns sem papéis e sem direito de cidadania, outros sem dinheiro e quase todos sem uma autêntica esperança no futuro, aventureiros a contragosto, filhos empobrecidos e deserdados do nosso continente. A cidade do Infante D. Henrique, da qual, como de um recife, foram outrora lançados ao Atlântico os pequenos veleiros dos intrépidos descobridores, é hoje o ponto mais extremo da Europa de onde se espraia o olhar para Ocidente. Mas a atmosfera é diferente e no porto, à largada dos navios americanos, vêem-se muitas lágrimas.
 
Annemarie Schwarzenbach

 

 

Dublin.

 
 
 
Fotografia de António Araújo


Dublin.

 
 
Fotografia de António Araújo

Dublin.

 
 
Fotografia de António Araújo


Dublin.

 
 
Fotografia de António Araújo

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Lisboa, 1936.


 
Ralph Fox (1900-1936)
 
 
 
Jornalista, escritor, militante do Partido Comunista inglês, biógrafo de Marx e Gengis Cã, Ralph Winston Fox (1900-1936) notabilizou-se como combatente na Guerra Civil de Espanha, tendo morrido na Batalha de Lopera, em finais de 1936. Com tradução de Rui Lopes, prefácio de José Neves e ilustrações de António Paredes, a Tinta-da-china publicou em 2006 Portugal Now. Um espião comunista no Estado Novo http://www.bulhosa.pt/livro/portugal-now-um-espiao-comunista-no-estado-novo-ralph-fox/, livrinho de Ralf Fox em que este conta a sua passagem por Portugal. Um breve extracto:   
 
Lisboa, Avenida da Liberdade, 1936
Fotografia de Eduardo Portugal
 

Se alguma vez considerar a hipótese do exílio, voluntário ou involuntário, terá à escolha muitos sítios piores do que Lisboa.
         A cidade é limpa e pitoresca, banhada por uma luz dourada, suave e encantadora, que apaziguará a tristeza do exílio; também não há pobreza à vista, o que nos poupa a remorosos quando nos sentamos à mesa num dos três hotéis confortáveis de Lisboa.
         É certo que esta ausência de pobreza é um mero acidente arquitectónico, pois os pobres, como em qualquer outra cidade, são a maioria da população, mas encontram-se convenientemente afastados e arrumados nas ruas íngremes e estreitas que as largas avenidas centrais não cruzam.
         Apesar de tudo, até mesmo a pobreza parece suportável sob a doce luz de Lisboa, e como a moeda nacional está alegremente desvalorizada, a vida parece barata – mesmo que não o pareça aos nativos.
         O terceiro factor indispensável ao ambiente do exílio também aqui se encontra – uma atmosfera cosmopolita.
         É verdade que a maioria dos habitantes são obstinadamente portugueses, mas os exilados são todos espanhóis, os exportadores de vinho são ingleses, os comboios são alemães, o gás e a electricidade são franco-belgas; os eléctricos, os telefones, os marcos de correio e os capacetes dos polícias são também ingleses; por outro lado, a política do governo é italo-alemã.
         Este governo exemplar criou recentemente uma estância para estrangeiros, situada no topo de uma falésia por cima de uma faixa atlântica de praia, a uns trinta quilómetros de Lisboa. É verdade que eles não fizeram o Estoril motivados por sentimento de pura hospitalidade, mas eis que ele ali está agora, e não vale a pena esconder a gratidão por isso.
         De facto, o Estoril é um local único em todo o mundo, pois é a única estância de recreio que foi criada directamente pela crise económica mundial. Eis a razão para este paradoxo. Os portugueses, tal como os irlandeses, são uma nação de camponeses pobres que depende dos familiares ricos da América para obter o dinheiro que lhes permite viver. O orçamento português, tal como o camponês português, sempre dependeu em grande medida dessas remessas mensais do Brasil. Com a crise, elas começam a diminuir. Então, o astuto ditador Salazar, que tinha desvalorizado a moeda, indexando-a depois à libra inglesa – que também já estava desvalorizada –, lembrou-se de construir o Estoril para atrair turistas estrangeiros.
         Há uma esplanada encantadora sobre a praia, um casino luxuoso, e um belíssimo hotel com um bar muito moderno. Sally, que tinha sido o primeiro barman nesse local, afiança a qualidade do bar. Ele contou-me que o primeiro habitante do Hotel Palace – e, durante duas semanas, o único hóspede – foi Chiappe, o ex-prefeito da Polícia de Paris. Não sei se Chiappe foi também o primeiro visitante a jogar no casino, pois Sally só gosta de jogar dados, e com os dados ele é um mestre.
         Além do mais, Sally joga sempre para ganhar e, tendo em conta que Chiappe é conhecido por ter a mesma fraqueza, Sally não terá provavelmente demonstrado qualquer interesse por uma tal faceta do seu hóspede.
         O Estoril está ligado a Lisboa por uma boa estrada e por uma linha de comboio. É o paraíso de um exilado. Os grandes de Espanha, os condes, marqueses e duques apaixonaram-se pelo Estoril. Enchem o casino todas as noites, nas suas elegantes roupas inglesas; sentam-se na esplanada à tarde, apanham banhos de sol (sem as roupas inglesas) de manhã.
         (…)
         De tempos a tempos, os salões dos hotéis agitavam-se com a chegada romântica de refugiados estrangeiros ricos. Lembro-me de um desses casos: uma lânguida senhora espanhola com passaporte dinamarquês, presenteando um exportador de vinho inglês com a descrição dos horrores da vida entre os anarquistas de Barcelona. Ela tinha fugido para a Alemanha, e depois para a Escandinávia. Agora ia regressar a Espanha, para se juntar ao seu marido, seguro atrás das linhas rebeldes.
         Estava tudo preparado para ela. O cônsul dinamarquês tinha visado o seu passaporte junto dos rebeldes e enviara telegramas dela para o marido, que se encontrava em Ayamonte, na fronteira de Espanha. Em Ayamonte, disse o exportador de vinhos, os ingleses estariam pronto a abençoar pessoalmente a reunião desta família. Não tinha o seu apartamento em Barcelona sido revistado por brutos que procuravam jóias? Na sua presença, um cavalheiro sentia-se instintivamente um Pimpinela Escarlate.
         Por vezes, nos salões dos hotéis, ouviam-se conversas de grandes negócios. Pode ouvir-se (como se ouviu uma vez) um francês que tenta vender munições e um judeu inglês que tenta vender máscaras de gás, ao mesmo tempo representante de Burgos. Uma vez ouvi alguém a preparar uma deslocação dos seus negócios de Espanha para Portugal.
         Que estava disposto a iniciar a sua produção em Portugal, dizia ele ao pequeno funcionário do governo português, tímido e servil, se conseguisse usar petróleo em vez de electricidade. Em breves momentos, ouviram-se referências a grandes nomes: Shell, Rio Tinto, Rotschild, um banco inglês.
         Tudo isto representa o outro lado da contra-revolução. Quando lemos acerca do homens e das mulheres que lutam desesperadamente para serem livres em Espanha, das tropas africanas e dos legionários estrangeiros, dos massacres de prisioneiros e do bombardeamento de crianças, não esqueçamos Lisboa, ou o quadro ficará incompleto.
 
Ralph Fox            
  

 

 

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

De novo, o Maine.

 
 





Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida


 

sábado, 27 de agosto de 2016

Lisboa, 1941.

 
 
Mircea Eliade (1907-1986)

 


 
Como é sabido, o intelectual romeno Mircea Eliade (1907-1986) viveu em Portugal durante a 2ª Guerra, tendo escrito um «diário» que se encontra publicado entre nós (cf. Mircea Eliade, Diário Português [1941-1945], trad. do romeno e notas de Corneliu Popa, estudo introdutório de Sorin Alexandrescu, Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2007). Entre as primeiras entradas desse «diário», e das mais expressivas num texto que é, acima de tudo, introspectivo, afigura-se a relativa à manifestação de apoio a Salazar, no Terreiro do Paço, em Abril de 1941, onde é patente o fascínio de Eliade pelo ditador português.   
 
Manifestação de apoio a Salazar.
Lisboa, Terreiro do Paço, 1941.

 
 
28 de Abril
Grande manifestação popular em homenagem a Salazar. Com alguma dificuldade encontro um lugar na Praça do Comércio, uma hora e meia antes da hora marcada. Tenho um lugar na varanda do Ministério das Finanças, no segundo andar. Um mar de cabeças na praça. Imensas crianças e jovens. Há algumas horas que se disparam salvas com vários tiros de canhões, da terra e do rio. Aqui, na praça, os estrondos são tremendos. Estremeço: fazem-me lembrar Londres.
Às seis aparece Salazar na varanda. Ruge toda a massa viva a seus pés. Com alguma dificuldade, debruçando-me bastante sobre a balaustrada, consigo ver-lhe o perfil. Veste roupa simples, cinzenta, de passeio – e sorri saudando com a mão, comedidamente, sem gestos. Quando ele apareceu, do alto começaram a despejar cestos com pétalas de rosas, cor-de-rosa e amarelas. Observei, mais tarde, enquanto um jovem falava num palco no meio da praça, como Salazar brincava pensativo com algumas pétalas que tinham ficado na balaustrada. Depois vi-o falar. Lia com bastante calor, mas sem qualquer ênfase, levantando de quando em quando os olhos do papel e olhando a multidão. Levantava a mão esquerda, mole, pensativa. Uma voz nunca estridente. E, no fim da leitura, quando a praça o ovacionava, inclinava sorridente a cabeça. Parece que nem sentia a força colectiva esmagadora a seus pés. De qualquer modo não era prisioneiro dela, nem sequer se deixava sugestionar por ela.
 
 Mircea Eliade
 
 
 
 

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

URSS, de Henrique de Barros.

 
 
 
 
 

«A convivência entre os sexos não obedecia a pudores de outras eras nem revelava inibições já vencidas, parecia ser naturalmente cordial, mas pouco tinha daquela licença sem peias que suscita a reprovação de tanta gente, mesmo sem pretensões a moralista. Os grupos juvenis que víamos circular revelavam à-vontade, descontraimento, como é curial dizer-se agora, mas nunca notámos que tomassem atitudes de ostentação, provocação, ameaça ou desprezo.»

 

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Crianças e Animais (Contos Infantis).

 
 
 
 
 
Raúl era um pequeno de bom coração; e quando viu que o cãozinho estava ferido, voltou atrás, pegou nele e levou-o para casa.
− Ó Raúl, exclamou sua mãe, onde foste buscar esse cão tão sujo?
 − Ele veio atrás de mim, replicou o menino.
− Então leva-o outra vez; não podemos tomar conta dele,
− Ó mamã, veja como ele tem a pata ferida! Não podemos ficar com ele até que melhore? Olhe como está a deitar sangue! E creio que ele já não come há muito! É por isso que está tão magro! Posso dar-lhe de comer?

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Lisboa, 1960.

 
 
 
 
Criados em 1916, os Guide Bleus são a mais antiga colecção de guias turísticos de França. Não trazendo propriamente informação nova ou surpreendente, o trecho ora traduzido e publicado interessa sobretudo porque ilustra uma visão de certo modo estereotipada da cidade – que, porventura, ainda se mantém –, do mesmo modo que condensa, digamos assim, a «versão oficial» de Lisboa que as autoridades do Estado Novo tentavam projectar. À época – mais precisamente, em 1960, data da edição deste Guide Bleu sobre Portugal –, a colecção era dirigida por Francis Ambrière (1907-1998), escritor galardoado com o Prix Goncourt pelo seu livro Les Grandes Vacances (a obra é de 1940 mas, devido à 2ª Guerra, o prémio seria atribuído retroactivamente, em 1946). No prefácio, Ambrière agradece aos responsáveis por diversos capítulos – Reinaldo dos Santos, Armand Guibert, etc. – e às autoridades que auxiliaram a elaboração do guia, com destaque para o Secretariado Nacional de Informação, reconhecendo ainda o apoio, entre outros, de Pierre Hourcade (então director do Institut Français de Lisboa), João Couto (director do Museu de Arte Antiga) e Maria Vaz Pereira (conservadora do Museu de Artes Decorativas). O capítulo dedicado a Lisboa é muito extenso, tendo sido apenas traduzida a respectiva introdução.  
  
Lisboa, 1960
Fotografia de Artur Pastor

 
 
Lisboa – cidade com 783.226 habitantes, capital de Portugal, sede de um Patriarcado, encontra-se situada a 38°42´43´´ de latitude Norte e a 9°7’54’’ de longitude Oeste de Greenwich, na margem direita do Tejo, no local onde o rio, tendo desaguado num vasto estuário, se espraia num mar interior chamado Mar da Palha, para depois desembocar no Oceano, a 6 quilómetros da capital. Lisboa apresenta, assim, ao longo do rio, uma extensão de 16 quilómetros na horizontal, do Poço do Bispo, a Leste, até Algés, a Oeste.
Construída em anfiteatro na encosta de numerosas colinas, das quais algumas têm mais de 100 metros de altitude, chegando a alcançar os 226 metros no pico de Monsanto, Lisboa é uma das mais belas cidades da Europa.
O seu relevo acidentado faz com que, por vezes, existam miradouros de onde se tem uma vista soberba e sempre variada dos diversos bairros e do atoalhado majestoso do Tejo. Graças à sua atmosfera límpida, à sua luz dourada, todas as linhas são recortadas e visíveis com absoluta nitidez.
Infelizmente, os terramotos reduziram a monumentalidade de Lisboa. Perdeu-se, acima de tudo, o enlace pitoresco dos pinheiros e dos campanários, que no passado apontavam para os céus. Apesar dos desníveis do solo, a cidade tem ruas largas e bem alinhadas, praças magníficas, casas altas e bem construídas; de uma arquitectura extremamente banal, é certo, mas a que os bonitos revestimentos de faiança esmaltada (azulejos) conferem uma frescura deliciosa.
O centro da vida urbana é a Baixa, isto é, a zona situada entre a gare e a praça do Comércio ou Terreiro do Paço, e que foi edificada, com uma grandeza e uma rapidez impressionantes, pelo célebre marquês de Pombal, após o terramoto de 1755. Aí, as ruas são desenhadas a régua e esquadro, entrecortadas em ângulos rectos que formam um gigantesco tabuleiro de xadrez, ocupando o vale outrora banhado pelas águas do Tejo. As ruas mais belas e mais animadas, onde se encontram as melhores lojas, são as do Ouro (oficialmente, rua Áurea), da Prata e Augusta, abrindo esta para a praça do Comércio através de um arco triunfal. Na zona oriental (o núcleo primitivo da cidade), encontra-se a velha Alfama, um dédalo de ruas estreitas e tortuosas que evoca a Lisboa dos séculos XV e XVI. Quanto à zona ocidental, o antigo Restelo, de onde partiram precisamente os navegadores que trouxeram a glória a Portugal, é o lugar onde se encontram os mais belos monumentos das Descobertas, no faustoso estilo manuelino: o convento dos Jerónimos e a torre de Belém.
Após 1890, Lisboa cresceu significativamente, estendendo-se para Norte através de belas e amplas avenidas, e prolongando-se para Oeste na «costa do Sol», a principal zona turística e estação de veraneio do país, servida por uma grande estrada marginal que bordeja o Tejo.
O plano de ordenamento de Lisboa, concebido graças à iniciativa de um grande ministro, o engenheiro Duarte Pacheco, tomou forma em 1938, quando, graças ao seu espírito visionário, foi concretizado o projecto da rede viária que permitiu o nascimento de novos e grandes bairros.
Seja na zona Oeste (novo bairro da Ajuda), ou a Norte, onde os bairros do Areeiro e de Alvalade albergam cerca de 50.000 habitantes formando uma nova cidade, Lisboa cresce vigorosamente, conservando, porém, as características tradicionais de uma arquitectura leve e vivaz que sempre foram apreciadas pelos estrangeiros que visitam Portugal.
Um dos projectos mais marcantes do plano do ministro Duarte Pacheco é já hoje uma realidade: o parque de Monsanto, com cerca de 1.000 hectares, de onde se tem as melhores vistas panorâmicas da capital. Entre os principais edifícios desta fase de crescimento pode citar-se os do Instituto Superior Técnico, da Moeda, o Instituto Nacional de Estatística, o hospital universitário, e numerosos edifícios, tais como liceus, escolas técnicas, blocos de habitação, grandes cinemas (Monumental, São Jorge, Império). Saliente-se ainda o liceu Charles-Lepierre (1952), construído pela comunidade francesa, e o metropolitano (duas linhas abertas em 1959).
A numeração das ruas parte do Tejo ou acompanha o curso do rio, encontrando-se os números pares à direita e os ímpares à esquerda.
O traje nacional das gentes do povo praticamente desapareceu. No entanto, o modo de caminhar e o porte altivo das vendedoras, sobretudo as do mercado do peixe (varinas), acostumadas a levar à cabeça, num equilíbrio perfeito, cestos carregados de provisões ou até mesmo cântaros de água, e que gritam uma espécie de preghiera com uma sonoridade às vezes estranha, despertarão certamente a curiosidade dos estrangeiros.
 
Tradução de António Araújo




Vénus Geradora, de A. Cabral.

 
 
 
 
«O gamo é um pouco mais pequeno que o veado e, embora haja entre eles muita semelhança, não se podem ver, nunca andam juntos, evitam-se, não se cruzam nunca e por conseguinte nunca formam nenhuma raça intermediária. Procuram as fêmeas aos dos anos, não se lhes ligam em união duradoura, antes as trocam como o veado. A fêmea do gamo, assim como a corça, tem uma gestação de oito meses.»

 

domingo, 21 de agosto de 2016

Batas Brancas, de Evaristo Franco.

 
 
 
 
 
«Quando, no manicómio, o médico quis averiguar o estado mental de Neomira, participando-lhe a morte do filho, a pobre louca, numa atroz descompostura de trajos e das maneiras, ouviu a notícia soltando gargalhadas de risos paroxísticos. Não havia recuperado, ainda, a mínima parcela da sua antiga sensibilidade moral.»

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Spínola e as telenovelas.

 
 
 

 
         Durante o segundo exílio do General Spínola no Brasil, encontrava-me eu aí a fazer pesquisas no campo da literatura e a fazer conferências e a rever, descobrir e saborear as maravilhas desse vastíssimo país lusófono.  
         Praticamente convencido de que pouco mais lhe restava, na sua qualidade de oficial superior do exército português, do que enfeitar o seu papel de primeiro presidente de Portugal, depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, e de resistente, após a tomada do poder pelo Partido Comunista Português e pelos militares esquerdistas e marxistas, o Genaral Spínola decidiu imprimir os discursos proferidos durante a sua presidência e as conferências e entrevistas feitas e dadas após ter abandonado a dita presidência, no dia 28 de Setembro de 1974.
         Como durante os primeiros meses desse segundo exílio, a sua sobrinha Maria Luísa Coelho, que o tinha secretariado durante o seu curto mandato de Presidente da República Portuguesa, após o golpe militar de 25 de Abril, não se encontrava disponível para o secretariar, devido a outras ocupações, coube-me a mim desempenhar informal e voluntariamente esse cargo. E a quem me perguntar por quê me prontifiquei a fazer isso simplesmente responderei que, para além da amizade que me ligava a ele e de acreditar na honestidade do General e no mérito da obra, também eu estava sinceramente empenhado em dar o meu modesto contributo para o restabelecimento da democracia em Portugal. Primeiro por saber, por experiência própria, como cidadão e residente dos Estados Unidos da América, do valor e dos encantos da democracia, em comparação com os horrores de um regime totalitário e ditatorial; segundo, por ter presas, em cadeias portuguesas, com o nefando estatuto de prisioneiros políticos, pessoas que me eram particularmente queridas e a quem o regime então no poder em Portugal ameaçava executar, indo, por mais de uma vez, alguns dos seus carcereiros, alta noite, abanar-lhes as grades das celas e informá-las que no dia seguinte seriam levadas ao paredão e fuziladas, juntamente com muitos outros dos prisioneiros políticos que com essas pessoas sofreram as agruras despóticas e bárbaras do cárcere e foram sujeitas injusta e arbitrariamente a esse tipo de tortura.
         E foi essencialmente por essas duas razões que eu decidi colaborar com o General Spínola, durante a minha estadia no Brasil, na elaboração do livro que veio a sair a lume, em Novembro de 1976, com o título de Ao Serviço de Portugal, título, aliás, que eu sugeri, por nele se reflectir sobretudo a preocupação, por parte do General, de envidar todos os seus esforços para fazer de Portugal um país genuinamente democrático, onde todos os portugueses tivessem orgulho de viver.
         Por essa altura, eu morava em Copacabana, na rua Belfort Roxo, e o General Spínola morava no Leme, separando-nos uma distância de uns dez minutos a pé, pouco mais ou menos.
         Aí por volta das oito da noite, depois da ceia, portanto, chegava eu ao apartamento do General Spínola e tocava a campainha. Quem me abria a porta era a D. Maria Luisa, sobrinha do General, como se referiu atrás. Ela a abrir-me a porta e o tio a dizer-lhe:
         - Ó Luisinha, serve aí alguma coisa ao Professor e diz-lhe que tenha a bondade de esperar um pouco, enquanto eu acabo de ver a telenovela.
         E enquanto a D. Maria Luisa e eu tomávamos um café ou um chá e conversávamos, aquele homem austero, frugal como um eremita e de uma formação espartana, a toda a prova, não permitia que ninguém o perturbasse enquanto ele, deliciado e embevecido, assistia piamente à telenovela brasileira.
         Terminada a novela, deixava a sala de estar e vinha ter connosco a pedir desculpa pelo atraso. E, o que era mais, assumia o ar de alguém que tivesse estado a fazer alguma coisa menos apropriada para uma pessoa como ele, ex-comandante e combatente dos matagais e pauis da Guiné e ex-presidente da República Portuguesa. Mas, uma vez posto à vontade, começava a dizer, com o fervor de um noviço e com a maior das convicções, que os brasileiros podiam ter todos os defeitos deste mundo e do outro – e, no sentir dele, tinham mesmo, a começar pela imoralidade, emblematizada pelo semi-nudismo que reinava soberano na Praia de Copacabana, onde ele dava o seu passeio (“footing”) diário (foi por essa altura que as “garotas de Ipanema” deram estatuto de cidadania ao “topless” e ao “fio dental”), e a acabar pela hipocrisia endémica –, mas que, em questão de telenovelas, ninguém no mundo se lhes comparava. E perguntava-me se eu não estava de acordo. E eu, que nem sequer tinha televisão no meu apartamento, a fim de melhor poder concentrar-me nas minhas leituras e nas minhas pesquisas, não podia fazer outra coisa senão manifestar-lhe a minha ignorância no assunto. Que tinha de experimentar – exortava-me ele. Que essas telenovelas não só eram um bom meio de entretenimento, mas também, e sobretudo, um excelente veículo de cultura. Que, de uma maneira geral, se aprendia muito sobre a história, a cultura e a vida brasileira, vendo as suas excelentes telenovelas.
         E o austero homem do monóculo, com o arroubo de um neo-convertido, fazia o mais rasgado elogio das telenovelas brasileiras, a única coisa que valia a pena ver no Brasil – acrescentava.
         Dito o que, voltava ao seu natural e convidava-me para o seu gabinete de trabalho, a fim de prosseguirmos na escrita do “Intróito” para a sua colectânea de discursos, conferências, entrevistas e improvisos sobre política, que um dia viria a sair a lume sob o título de Ao Serviço de Portugal, como se referiu atrás.
         Ditadas umas linhas para eu escrever à máquina, linhas que ele tinha escrito anteriormente à mão, durante o dia, parava e pedia-me que lhas lesse em voz alta. E eu lia e ele ouvia com a maior atenção. Feito o quê, ele achava quase sempre que era preciso suprimir esta palavra, mudar aquela ou acrescentar outra.
         Uma vez satisfeito com as alterações feitas, passávamos adiante, voltávamos a parar, fazia-se novamente a leitura em voz alta, lutava-se por vezes minutos inteiros com um vocábulo, até que se completava um parágrafo. E tal como se tinha feito com as frases que constituíam o período, fazia-se então com todo o parágrafo.
         E foi assim, lentamente, meticulosamente, que ao fim de um número considerável de sessões se chegou ao fim do “Intróito”. E o que se fez com o “Intróito” foi feito depois com os discursos, as conferências, as entrevistas e os improvisos, aperfeiçoando e penteando, com o maior cuidado, o que, na sua maior parte, já tinha sido impresso em jornais ou em revistas.
         Tendo acompanhado o General durante todo o processo da escrita desse livro, pude confirmar aquilo que já tinha observado por ocasião da sua estadia nos Estados Unidos, em missão meio pública, meio secreta, com um passaporte especial: o cuidado e a meticulosidade que ele punha em todas as palavras que escrevia e que pronunciava. Nunca vi ninguém que pusesse mais empenho no mínimo pormenor, desde a escolha da matéria até à organização do discurso; desde a preocupação com a gramática e a sintaxe até ao esmero com a pontuação.
         Como a pontuação, nalgum dos seus aspectos, é um fenómeno puramente subjectivo, mais de uma vez vi o General a recusar as minhas sugestões, nesse capítulo. E uma vez em que eu argumentei com mais vigor a favor da colocação de determinado sinal de pontuação, tive que ouvir o General Spínola dizer-me que ele, como Oficial de Cavalaria, tinha sido director da revista dessa especialidade.
         Foi por ter observado esse fenómeno, como testemunha ocular, que por mais de uma vez tive que desmentir veementemente os que diziam que quem tinha escrito o livro Portugal e o Futuro havia sido o ex-Governador do ex-Estado de Guanabara, Carlos Lacerda.
         Que fique porém bem claro que esse labor lento e meticuloso na feitura desse livro nunca impediu que o General Spínola assistisse diariamente, devocionalmente, à telenovela brasileira da noite, como se se tratasse de um autêntico ritual.            
 
                              
António Cirurgião