terça-feira, 31 de janeiro de 2017
Saraiva, Sena e Salazar.
Paula Rego, Salazar a Vomitar a Pátria, 1960
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Foi
durante o congresso internacional camoniano, realizado em Abril de 1980, na
Universidade de Toronto, no Canadá, para comemorar o IV Centenário da morte de
Camões. Entre os conferencistas e participantes, encontrava-se também António
José Saraiva.
Pede
a modéstia que cale, mas manda a verdade que diga que, para agradável surpresa
minha, António José Saraiva, camonista de mérito e humanista respeitável, teve
a amabilidade de elogiar a minha comunicação – “Leitura alegórica do Auto
dos Anfitriões de Camões”
(publicada primeiro na revista Bracara
Augusta, Janeiro-Junho de 1980, e depois no meu livro Leituras Alegóricas de Camões e outros estudos de literatura portuguesa,
Lisboa, IN-CM, 1999) – e de se pôr a conversar e a confraternizar comigo, tendo
esse facto sido o início de um intermitente convívio transatlântico que viria a
prolongar-se pelos anos fora.
No
penúltimo dia do congresso, se não me engano, o Cônsul Geral de Portugal em
Toronto deu uma solene recepção e um opíparo jantar a todos os congressistas e
a algumas pessoas gradas da comunidade luso-canadiana. Em determinado momento,
no decorrer dessa recepção e desse jantar, António José Saraiva, em visível
estado de euforia, mas com a maior lucidez e na melhor das disposições,
aproxima-se de mim e diz-me estas palavras textuais:
- Ó Cirurgião,
vamos fazer uma irreverência?
Refeito
do meu espanto, perante uma saída dessas, voltei-me para ele e perguntei-lhe
que tipo de irreverência tinha em mente.
- Por exemplo - apressou-se ele a sugerir - tiramos os casacos e as gravatas,
subimos para cima de uma mesa, pedimos silêncio, e gritamos bem alto: - Viva Salazar!
Dizer
da minha estupefacção diante de tal proposta é desnecessário. É que António
José Saraiva, historiador da literatura e cultura portuguesas, crítico
literário, ensaísta e autor, em parceria com Óscar Lopes, da melhor História da Literatura Portuguesa do seu
tempo, era para mim, acima de tudo, o homem que professava ostensivamente o
Marxismo e que, entre 1960 e 1974, conhecera as agruras do exílio, ou, pelo
menos, do autoexílio, durante o regime salazarista. E, sendo assim, ele, para
mim, poderia ser tudo, menos admirador público de Salazar, mesmo que essa
proclamação de admirador fosse feita em tom festivo e irreverente. Mas, feita
essa estranha e bizarra proposta, António José Saraiva desceu do mundo onírico
e fantasista em que por momentos gravitara e voltou ao mundo prosaico da
realidade. Com o que quero dizer que, na nossa condição de cidadãos livres, ele
e eu, alegres e oriundos de um país finalmente democrático, depois de longas
décadas de ditadura, brindámos à nova democracia portuguesa e divertimo-nos
muito durante essa recepção e esse jantar e noutros momentos do congresso, e
que António José Saraiva não voltou a falar-me de irreverência idêntica à que me
propusera durante a recepção dada pelo Cônsul Geral Português em Toronto.
Vieram
as férias de Verão desse ano lectivo e, como de costume, parti para Portugal, a
fim de fazer pesquisas literárias nas bibliotecas e nos arquivos portugueses e
visitar a família e os amigos. Quase logo após a minha chegada, encontrei-me
com António José Saraiva na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde
ele era então professor. Após os cumprimentos, perguntei-lhe o que pensava da
política portuguesa.
Sem se fazer rogado, António José Saraiva informou-me
em tom maior, sem quaisquer reticências nem ressalvas, que Portugal estava a
saque; que a Revolução de Abril tinha falhado redondamente; que a tão apregoada
“descolonização exemplar” tinha sido desastrosa; que o ensino andava pelas
portas da amargura e que a vida académica portuguesa não passava de uma farsa e
de uma fraude. Que me dava um exemplo. Dias antes, dirigindo-se ele para uma
sala de aula na Faculdade de Letras, alguém lhe dá uma palmadinha nas costas,
dizendo:
- Então, Colega,
como está?
Ele volta-se e qual não é o seu
espanto quando dá com os olhos na pessoa que assim o cumprimentava. É que se
tratava, nada mais, nada menos - dizia-me
António José Saraiva com mal disfarçada raiva, à mistura com uma visível dose
de desânimo e de tristeza - de um indivíduo
que ele conhecera vagamente em Paris, durante o seu exílio político, indivíduo
que fazia uns vagos cursos numa vaga universidade francesa de classe inferior.
Um rapazola – prosseguiu ele -, sem quaisquer
credenciais e sem qualquer cultura, que tomara de assalto, como vários dos seus
comparsas, um posto de professor na Universidade de Lisboa e noutras
universidades do país. Que perante essa e tantas outras misérias a que a
chamada Revolução dos Cravos levara Portugal só havia um remédio para pôr ordem
nas coisas públicas e governar esse país ingovernável: restaurar a monarquia e
inventar um reizinho, uma figura de cariz paternal, à imitação de Salazar.
Ao
ouvir essas palavras, disse a António José Saraiva que eu lhe fizera uma
pergunta séria e que agradecia que me desse uma resposta séria, começando por
lhe chamar a atenção para a injustiça que fazia a si próprio e a tantos outros
professores competentíssimos a quem o regime ditatorial de Salazar tinha
fechado as portas das universidades portuguesas, unicamente por razões políticas,
e a quem a Revolução de Abril, num acto de louvável justiça exemplar, lhas
tinha aberto.
Perante
esta minha observação, António José Saraiva disse-me que, independentemente de
reconhecer esse facto irrefutável, nunca falara tanto a sério como nesse
momento. Que se eu não vivesse do outro lado do Atlântico e visse bem as coisas
por dentro, como ele as via, a toda a hora, pensaria da mesma maneira que ele.
Essas
palavras de António José Saraiva deixaram-me tão intrigado, que eu, quando uns
dias depois me encontrei com a Professora Maria de Lourdes Belchior, não
resisti a referir-lhe esse facto. Que não podia ser – apressou-se ela a dizer. Que
ela não acreditava nisso. Que eu não conhecia António José Saraiva. Que ele
estava certamente a brincar comigo. Mas eu insisti que ele me garantira que
falara a sério. Que, aliás, eu tinha precedentes. E para lhe provar a razão de
ser da minha afirmação, contei-lhe o episódio ocorrido em Toronto, em 1980, por
ocasião do congresso internacional camoniano. Que não senhor: ela tinha a
certeza que António José Saraiva não pensava assim – rematou categoricamente
Maria de Lourdes Belchior.
Ora
aconteceu que quando, uns dias mais tarde, a Maria de Lourdes Belchior e eu nos
íamos sentar para almoçarmos juntos num restaurante de Campo de Ourique, na Rua
do Patrocínio, demos com os olhos em António José Saraiva, sentado a uma mesa
sozinho, a acabar de almoçar. Fomos cumprimentá-lo e António José Saraiva
convidou-nos a sentar-nos à mesa dele, o que nós fizemos. À sobremesa, eu
encaminhei a conversa para a política portuguesa, a fim de tirar a prova real
às convicções políticas de então de António José Saraiva. Depois de ele
proferir os maiores horrores sobre a situação política, social, económica e
cultural de Portugal, eu perguntei-lhe que remédios aventava ele para
solucionar essa deplorável situação. E a resposta dele não se fez esperar. “Essa
deplorável situação” resolvia-se com a restauração da monarquia, com um
reizinho, uma figura paternal, à imitação de Salazar. Só dessa maneira se
poderiam governar os portugueses, o povo mais individualista e ingovernável do
planeta - concluiu António José Saraiva.
A
Professora Maria de Lourdes ficou boquiaberta, mas convencida de que, na
realidade, era assim que pensava por esse tempo António José Saraiva.
Um
dia contei estes factos à D. Mécia de Sena, já depois da morte do marido. Ficou
ela surpreendida? De maneira nenhuma. Surpreendida ficaria se António José
Saraiva persistisse na ortodoxia marxista que tinha publicamente assumido para
atingir os seus objectivos políticos e académicos. Que Jorge de Sena tinha
percebido isso há muito tempo. Uma das provas encontrava-se na dedicácia com
que o mimoseara (aos que porventura não saibam esclareço que as Dedicácias de Jorge de Sena são as
herdeiras legítimas das Cantigas de
Escárnio e Maldizer dos nossos virtuosos e castos avoengos medievais). Que,
continuou Dona Mécia, tendo vestido em jovem a farda da Mocidade Portuguesa e
tendo sido legionário, António José Saraiva ainda um dia voltaria ao culto
salazarista. Que se eu o não sabia, que ficasse a sabê-lo: o Marxismo de
António José Saraiva tinha sido recebido em segunda mão, do irmão de D. Mécia,
Óscar Lopes. Esse, sim, tinha lido e compreendido Marx e tinha abraçado o
Marxismo-Leninismo em jovem. Que pela sua filiação no PCP (Partido Comunista
Português), pela sua firme profissão de fé no Marxismo-Leninismo e pela sua
prática fiel, sofrera ele as consequências e estivera preso e fora impedido de
ensinar numa universidade portuguesa, enquanto não chegou a Revolução de Abril.
O Marxismo de António José Saraiva, pelo contrário, prosseguiu D. Mécia, tinha
sido colado com cuspe, o que aliás me tinha sido dito, vários anos antes, pelo
próprio Jorge de Sena, mas a que eu não tinha dado a atenção que essa
informação – e afirmação - de Jorge de
Sena merecia, por nesse tempo eu ainda não conhecer pessoalmente António José
Saraiva.
António Cirurgião
segunda-feira, 30 de janeiro de 2017
Memórias perdidas - 6
Estas
não são propriamente memórias perdidas,
uma vez que o livro ainda se encontra à venda. Comprei-o em Seia, há alguns
meses, e, apesar do preço um pouco elevado, vale a pena reter as Memórias de um Deputado da Província na
Assembleia da República, de Alexandre Monteiro.
O
autor nasceu em 1941, quando os pais se deslocaram em negócios da cidade do
Porto, de onde eram naturais, à aldeia de S. Francisco de Assis, no concelho da
Covilhã. Por pouco, Alexandre não nascia no comboio, acabando por ver a luz no
interior do país, onde deixou raízes que constantemente evoca nestas Memórias. Pouco depois do nascimento, a
família foi viver para a aldeia de Menoita, concelho da Guarda, sendo esta a
cidade que, na presente autobiografia, o autor considera como sua terra natal.
Segundo diz, pela Guarda lutou arduamente, em vários momentos da sua vida,
especialmente quando foi deputado ao Parlamento da República.
Militante
social-democrata desde a primeira hora, Alexandre Monteiro conta como, em Maio
de 1974, um grupo de amigos, que habitualmente se reunia no Café Monteve,
escutou com atenção e fervor as palavras de Sá Carneiro, Pinto Balsemão e
Magalhães Mota. Depois de ouvirem, quiseram saber mais. O dr, Afonso Paiva,
ilustre médico da Guarda e amigo de Mota Pinto, enviou-lhes alguma
documentação. Lidos os textos, marcaram uma reunião com o dr. Lacerda, juiz do
Tribunal da Guarda, «que lhes explicou os princípios da social democracia».
Assimilada
a doutrina, iniciaram-se as reuniões. Entre cervejas e presunto, na cave da
loja do sr, Matos e na casa do dr. Pilão. Em Junho, o engenheiro Fernando Oliveira
trouxe as fichas de inscrição. Vários nomes assinaram, em memorável encontro
tido na quinta do Pisão, Guilhafonso, propriedade do sr. Alberto Pereira de
Matos. Dos convocados para o meeting,
um não quis assinar e outro não foi aceite, por razões que Alexandre Monteiro
prudente e elegantemente omite.
Encontraram
sede, os sr. Matos forneceu a secretária, o sr. Tracana a máquina de escrever.
Tudo em segunda mão, claro está. De seguida, sessões de esclarecimento, animação
da população, com o primeiro grande comício a ter lugar em Janeiro de 1975, no
Cine Teatro (da Guarda). Alguns elementos do MRPP tentaram boicotar o comício
fundador, sem êxito. Pois até o padre Umbelino correu com os agitadores
maoístas, correndo-os a soco pelas escadas abaixo do Cine Teatro!
No
ano quentíssimo de 1975 houve grande agitação por terras guardenses, com o sr.
Armando Marques a pedir a um amigo que lhe colocasse documentos num lugar
seguro, e o sr. Gaspar a esconder papelada no interior de um fardo de lã, na
fábrica de lanifícios do Sr, Abel Pilão (já citado). Corria o rumor de que um
camião carregado de armas iria dar entrada por Vilar Formoso, às ordens do
governo franquista. Sete indomáveis (quatro de Viseu, três da Guarda) foram a
Espanha, falar directamente com Franco. Dois deles seriam recebidos pelo
Generalíssimo, a quem contaram do perigo de Portugal ser subjugado pelos
comunistas. Quanto à história do camião de Vilar Formoso, leia-se o livro de
Alexandre Monteiro, que vale a pena.
É
um retrato curioso, delicioso, naturalmente parcial e engagé,
das lutas políticas e sindicais travadas a seguir ao 25 de Abril e nos anos
subsequentes. Sá Carneiro é evocado, como também seria de esperar, referindo o
autor que um dia, em Agosto de 1975, viu o líder do PPD, na companhia da sua
secretária Conceição Monteiro, a veranear na Ilha de Faro. Alexandre Monteiro,
que passava férias por ali, junto com a sua esposa, Maria Auxiliadora, e um
casal amigo (o sr. Castro Lopes e D. Mariazinha), não perdeu a ocasião soberana
de cumprimentar Sá Carneiro, que agradeceu o gesto.
O
livro é recheado de histórias deste género (recorda-se, por exemplo, a falsa ameaça
de tsunami, em 23 de Agosto de 1999,
que surpreendeu o autor em Armação de Pêra, onde habitualmente passa o período
estival). Além de histórias, fotografias extraordinárias na sua vulgaridade;
instantâneos da passagem pela Guarda de grandes nomes do partido, de Mota Pinto
a Cavaco Silva.
Enfim,
o Parlamento. Talvez a parte menos apelativa destas Memórias, com transcrição de documentos daquele que, para os
maldosos, é uma versão aggiornata de
Calisto Elói. Talvez seja, pouco importa. O que interessa é que viveu a sua
vida, d’antes quebrar que torcer, amigo do seu amigo. Teve dois filhos, foi
operário da Renault e deputado da República. Em 1985, fundou os TSD no distrito
da Guarda, sendo seu presidente durante 24 anos. Hoje está aposentado, escrevendo
estas memórias, que dedica à família, e onde no pórtico agradece, entre outros,
a Michael Pinto Rita (da Pastelaria Rossio), a José Gralha (da Soviauto), a
Delfim Augusto Pereira Gomes (da Moderna Jolalharia), a António Rocha (da Churrasqueira
/ Take Away / Servipronto), à Casa China de Egichina - Comércio de Artigos
Chineses, Lda., a Manuel Carvalho (do restaurante O Mondego) e à Garrafeira A
Botelha.
O
livro foi escrito numa mesa da Pastelaria Rossio, propriedade do sr. Michael
Pinto Rita. Uma fotografia mostra o autor a redigir estas memórias, de onde não
falta, cúmulo da delicadeza, um agradecimento a Isabel Cristão, «de sorriso
alegre e fácil nos lábios», empregada daquela distinta pastelaria do centro da
Guarda. É nesse estabelecimento que se aloja uma tertúlia que fala de tudo –
política, futebol, caça – e todos os meses janta ou almoça na quinta Vale de
Lobos, na Vela, concelho da Guarda, propriedade do dr. Alípio Gomes Filipe.
Cozinham o repasto o dr. Soares Gomes e o prof. João Gonçalves. A ementa oscila
entre a canja de perdiz, o arroz de tordos, o faisão no forno com ameixas, a
caldeirada de cabrito à angolana ou uma feijoada de búzios, tudo acompanhado de
vinho tinto e do «incontornável queijo da serra». Para animar os convivas,
apresenta-se à viola o juiz desembargador dr. João Inácio. E, todos juntos,
cantam o fado.
sábado, 28 de janeiro de 2017
Semente, raiz e flor.
SEMENTE, RAIZ E FLOR
[ou O TERROR DE NÃO PENSAR]
A polémica e aparentemente legítima (autoridade
que, no caso aqui exposto, não elimina as nódoas do nojo e da vergonha)
eleição de Donald Trump (um exemplo recente, entre vários) é mais uma prova
inequívoca de que as pessoas que não pensam são infinitamente mais perigosas do
que as que pensam. O terror de não pensar, a ausência de pensamento próprio ou
colectivo, é mais nocivo para uma sociedade do que o suposto veneno
de um pensamento concreto ou abstracto. Não pensar produz um fel
devastador nos órgãos vitais de um indivíduo e de uma comunidade. Infelizmente, o maligno «tumor branco» do
não-pensamento é um cancro diagnosticado tardiamente em organismos moribundos e
em falência. Não pensar é um veneno perigoso e sem
antídoto, historicamente ignorado e desconhecido, responsável por
desfechos trágico-cómicos no teatro da Existência. Donald Trump foi consagrado
por um eleitorado maioritariamente não-pensante (veneno destilado em doses
massivas). Conjugar o verbo Poder na ausência das
traves-mestras do Pensamento e do Conhecimento é voltar a abrir a «Arca da Peste».
O incontrolável incêndio trumpetiano teve origem no foguetório da
província do espírito e no descuido humano à volta de uma fogueira de
acampamento: as eleições primárias e a nomeação e apuramento dos candidatos
presidenciáveis (a sinistra Hillary Clinton também não é recomendável nem um
exemplo de Civilidade). A inevitável autópsia a esta Era das Trevas irá detectar e reconhecer os históricos venenos do
anti-pensamento, da indiferença e da ignorância. A História já escreveu e
ilustrou a negro demasiados capítulos sobre pensadores e
pensamentos injustamente temidos e perseguidos pelo «monstro sem cabeça».
Pensar mal pode ser perigoso, não pensar é-o certamente. A ausência de pensamento é a peste negra do espírito e o
agente responsável pela rasura e extinção da Civilização. Os «fins do mundo» têm origem no átomo vazio do
não-pensamento. Não pensar em excesso faz mal à saúde pública.
*
Decifrar
as causas da falta de pensamento individual ou colectivo é tão urgente,
interessante e necessário quanto decifrar o código de um pensamento. As cabeças
avessas ao pensamento sempre foram subalimentadas a «pão e circo» (o regime
responsável pela acefalia e pelo enfezamento intelectual). A besta negra do
anti-pensamento respira artificialmente, com o auxílio dos broncodilatadores do
«progresso»: a televisão e as redes sociais (as excepções estão, por mérito
próprio, excluídas deste cenário miserável). O «Canal Memória» foi
obscura e convenientemente dessintonizado e deixou de emitir avisos à
navegação. O Esquecimento Central é um dos «problemas da habitação» e da
habituação humana. A ausência de Pensamento e de Memória é o bolor que
corrompe a Identidade. O farol da consciência colectiva apagou-se e já não
brilha no escuro (resta-nos o exemplo do pequeno lume da consciência
individual, raiz luminosa, que se acende, aqui e além, contra o nevoeiro da
Existência e as tempestades internas e externas do Mundo). O Mal é antigo mas
sofisticado: movimenta-se na escuridão, conquista território, cerca as colinas
do Ser e hasteia a bandeira fúnebre do Destino. A mediocridade, a miséria e a
morte prestam juramento onde a estupidez humana assenta praça. Pensar é coroar
a Existência. O Pensamento é uma flor rara com raízes profundas que resistem e
incomodam a passagem das debulhadoras da ignorância e da indiferença. As
sementes da imaginação e do pensamento nascem e crescem em estado selvagem,
naturalmente. Não rebentam nem florescem em estufas climatizadas com
«ar condicionado» à força ou em culturas artificiais mas, ao contrário da
assombrosa e indomesticável flor da imaginação, as raízes do pensamento podem
ser cuidadas e transplantadas por quem tiver consciência, interesse e
dedicação. Alheio e indiferente aos campos férteis da Criação, o Tempo &
Companhia, Lda., avança pela aldeia da Eternidade adentro e prossegue com os
seus trabalhos de terraplanagem e alcatroamento. A flor do Pensamento e o grão
da Consciência estão perigosamente próximos da via rápida da Extinção.
Ricardo Álvaro
sexta-feira, 27 de janeiro de 2017
Porque Me Orgulho de Ser Português, de Albino Forjaz de Sampaio.
O
português é mais alto que o espanhol, igual ao italiano, mais baixo que o
francês. Mas é resistente, corajoso, tenaz e laborioso, vivo, ágil e robusto,
brioso, folgazão e comunicativo. É inteligente. Não só a sua poesia o mostra,
mas a cerâmica, a iluminária, o mobiliário popular nos dizem que o génio
artístico não falta.
As Novas Mulheres, de Luís Jiménez de Asúa.
Mas crê você que essa situação de
inferioridade feminina se deve manter? Os homens adulavam a fêmea,
desfechando-lhe galanterias, e posternando-se verbalmente aos seus pés, mas na
realidade desprezavam as suas qualidades humanas, classificando-a como um ser
inferior ao homem, como meio de prazer físico e escaparate das vaidades
masculinas.
Em paga das sensações sexuais que
procurava e da arrogante pose com que ostentava as joias e os trajes oferecidas
pelo macho, o homem casava-se com a mulher.
O Cancro Cura-se pelos Meios Naturais.
«São
suceptíveis de causar o cancro:
- as
costureiras que frequentemente picam os dedos com as agulhas; podem, pois, vir
a sofrer de cancro na ponta dos dedos.»
quinta-feira, 26 de janeiro de 2017
«o pior de tudo».
Talvez
não seja de muito bom gosto contar esta história. Mas, como se diz numa
extraordinária obra da literatura portuguesa, O Diabinho da Mão Furada, «estão os gostos hoje de tão mau gosto
que se inclinam mais ao que dana do que ao que aproveita.»
A
história vem contada num livro de que não se falou muito, Vou-me embora. Cartas de suicidas, terrível antologia organizada
por Udo Grashoff e publicada entre nós em 2006, com tradução de Maria Manuel
Tinoco e chancela Quetzal.
Não posso continuar a
viver assim.
Não há remédio. Nunca
mais me hei-de recompor.
A morte é a única saída.
Já não posso ver nenhum
homem, fico perturbada, agoniada.
Ninguém me deve lamentar,
porque afinal eu é que sou a culpada de todo o problema.
Só tenho pena dos meus
pais. Não mereciam que a filha seguisse este caminho. Gosto muito dos meus
pais.
Talvez seja possível que
eles não venham a saber de nada.
Talvez seja possível
dizerem-lhe que eu tive um acidente mortal de automóvel ou qualquer coisa
assim. Gostava que não soubessem de maneira nenhuma que me matei. A minha mãe
não aguentaria, tem os nervos muito fracos.
Estas
palavras foram escritas por Júlia C., estudante de química, 22 anos, pouco
antes de se atirar de um décimo primeiro andar de um edifício. 2 de Junho de
1974, República Democrática Alemã.
Dois
dias antes, ela e uma amiga fizeram uma festa no lar de estudantes com dois
colegas soviéticos, também alunos universitários. No final da noite, Júlia C.
foi violada por um deles.
Naquela
época, como se diz no livro organizado por Udo Grashoff, «a violação de uma alemã
por um estudante soviético era, na RDA, mais do que uma tragédia privada; era
uma tragédia política. A menor das críticas ao país “Grande Irmão”, a União
Soviética, era uma “calúnia”». Por isso, sobre Júlia C. foram exercidas
inúmeras pressões para que não denunciasse o violador. As organizações que
supostamente a deviam apoiar, desde os serviços sociais às autoridades
universitárias, tudo fizeram para que ficasse calada.
No
dia 2 de Junho – o dia do suicídio – os dois estudantes voltaram para a Rússia.
Foi praticamente no mesmo minuto em que entravam no comboio, de regresso a
casa, que Júlia C. se lançou do alto de um edifício. Nesse mesmo dia, a polícia
agendara uma reconstituição da cena do crime. Talvez fosse isso o que mais perturbasse
Júlia C.
Júlia
C. dissera à sua amiga que ter de reviver os momentos da violação era, para
ela, «o pior de tudo».
quarta-feira, 25 de janeiro de 2017
Memórias perdidas - 5
Há dias, falei aqui das memórias
perdidas de um Casanova lusitano, que pontificou na Lisboa boémia e na linha do
Estoril, entre conquistas e mil amores. O autor desse livro, como então disse, mostrava-se
um tanto ou quanto reacionário em matéria política, considerando, por exemplo,
ter sido desastroso o 25 de Abril de 1974.
Cesare Pavese disse que «a vida é
política», mas nem tudo o que levamos nas nossas existências breves tem de
levar a marca de uma ideologia ou de um credo. Pessoas que têm a mesma visão política
podem ter opiniões e práticas muito diferentes noutros domínios da vida. É o
que concluímos se compararmos as memórias de Adrião Homem de Sá e este livro hoje aqui
apresentado ao público-leitor do Malomil. À semelhança de Homem de Sá, Virgínia
Theotónio Pereira era de um conservadorismo extremo em matéria política. Mas
era igualmente ultraconservadora em matéria de costumes, de moral sexual, de
religião e de tudo o mais de que é feita a nossa passagem terrena. Homem de Sá,
um reacionário galã, era certamente muito vanguardista em matéria de costumes
(os dele, pelo menos…); Virgínia Theotónio Pereira, pelo contrário, revela-se uma
conservadora integral, total. Só lido. Irmã do embaixador Pedro Theotónio
Pereira (o que lhe permitiu visitas aos Estados Unidos e a Londres, em conforto
diplomático), Virgínia nasceu no Ginjal. Era lá que a família tinha os seus
armazéns de vinhos, e o parto na Margem Sul deu-se por um acaso fortuito. Encontrava-se
na altura a família Theotónio Pereira a passar férias de Verão nessa casa à
beira-Tejo, onde tomavam «banhos de mar» (na verdade, de rio), contemplando os
golfinhos que a poluição repeliu. Depois, foi uma vida vivida, contada nestas
memórias de uma senhora da alta burguesia, que, mais do que monárquica, era
miguelista, tradicionalista, a ponto de fustigar a Rádio Renascença pela
imoralidade das letras das músicas que transmitia e transmite, impróprias de
uma emissora católica… Ataca ainda tudo quanto lhe cheire a mudanças da Igreja,
desde o Concílio Vaticano II ao bispo brasileiro D. Hélder Câmara, passando
pelo ecumenismo (!). A dada altura, cai a máscara e desvenda-se a crua
realidade: Virgínia Theotónio Pereira era uma fervorosa admiradora do integrismo
ultramontano de Monsenhor Lefebvre.
Não
sendo um primor de escrita («a erudição nunca foi o meu forte», diz a autora,
pedindo desculpas, nas primeiras linhas), o livro é muitíssimo interessante
para reconstruir a visão do mundo de uma senhora de outra época, admiradora de
Sidónio Pais, saudosista de António de Oliveira Salazar, devota de Deus, do
fado e das toiradas, horrorizada pelo mundo moderno, patente na descolonização
das áfricas, na degradação dos costumes, na violência contra os taxistas, na
destruição do «velho» Estoril e do amado Chiado. De permeio, a Senhora Dona
Virgínia Theotónio Pereira vai narrando os seus encontros com figuras como Herbert
von Karajan, António Lopes Ribeiro, Fernanda de Castro, Veiga Simão, Franco
Nogueira.
Mesmo
como fonte histórica, Simples Memórias
(1910-1990), saído em edição de autor em 1993, é um livro assaz curioso;
sendo a narradora irmã de uma das principais figuras do Estado Novo, um dos
supostos «delfins» de Oliveira Salazar, as suas memórias estão recheadas de
episódios, petites histoires e até
trechos de correspondência que são úteis e interessantes para os historiadores
do salazarismo. Para os sociólogos, um tesouro sobre o quotidiano da alta
burguesia em meados do século XX: a educação de uma menina prendada, a
omnipresença do «pessoal doméstico», uma visão naïf e paternalista das outras classes sociais, em especial dos
pobrezinhos e humildes conformados com o seu destino.
Nas
entrelinhas, ou mesmo nas linhas, uma ingenuidade desarmante. A dado passo,
falando da morte de John Lennon e das homenagens à sua memória, diz Virgínia:
«porque é que não deixam o rapaz em paz onde quer que esteja ou lhe rezam pela
sua alma?».
Simples Memórias
(1910-1990), de Virgínia Theotónio Pereira. Quem o
vir, deite-lhe a mão.
António Araújo
terça-feira, 24 de janeiro de 2017
segunda-feira, 23 de janeiro de 2017
Lembrando Mário Soares.
Faleceu
no dia 7 de Janeiro de 2017, com 92 anos, Mário Soares, no Hospital da Cruz
Vermelha de Lisboa.
Foram três os meus encontros pessoais com Mário Soares.
O
primeiro aconteceu no dia 17 de Outubro de 1974 e encontra-se narrado numa das
entradas do meu Diário, nos termos que se seguem:
“No
contexto da dita visita [a do Presidente da República, General Costa Gomes, às
Nações Unidos e aos Estados Unidos], não posso esquecer o encontro com Mário
Soares, ao tempo Ministro dos Negócios Estrangeiros, na residência do
Embaixador de Portugal às Nações Unidas, Professor Veiga Simão, no célebre
Dakota Building da 72.th Street de Nova Iorque. Como, por essa altura, uma das questões
mais debatidas entre os membros das comunidades portuguesas da diáspora era o
papel que lhes caberia desempenhar no futuro político de Portugal, alguns de
nós aproveitámos a ocasião para perguntar a Mário Soares, na sua capacidade de
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, se não achava bem que os
emigrantes tivessem também direito a voto para a eleição dos deputados à
Assembleia Constituinte e, futuramente, à Assembleia da República, e também
para a eleição do Presidente da República. Que sim: que em princípio concordava
com isso, mas que a questão era muito complexa e que havia muitas coisas a
considerar. Respeitosamente solicitado a explicar-se, o ilustre Ministro dos
Negócios Estrangeiros voltou-nos malcriadamente as costas e pôs-se a brincar,
no meio da sala apinhada de convidados, com a filha mais nova de Veiga Simão,
a Cristiana, atirando-a ao ar
repetidamente, para gáudio da menina e para decepção dos emigrantes portugueses,
apaixonados pela velha Pátria e sedentos de esclarecimentos por parte dos
putativamente representantes da coisa pública portuguesa, neste caso o Ministro
dos Negócios Estrangeiros do novo Portugal”
O
meu segundo encontro pessoal com Mário Soares teve lugar por ocasião da
inauguração em Constância do Jardim-Horto de Camões, ocorrida no dia 21 de
Abril de 1990. Na qualidade de membro da Associação para a Reconstrução da Casa
- Memória de Camões, ou Casa dos Arcos, em Constância, estive presente na
cerimónia oficial dessa inauguração, a convite da fundadora dessa Associação,
Dona Manuela de Azevedo, jornalista do Diário
de Notícias (de Lisboa), escritora e camonista.
(Esclareço,
entre parêntesis, que foi essa sua faceta de camonista de Manuela de Azevedo
que esteve na origem do convite para eu me tornar membro dessa associação. É
que ela tinha lido os meus estudos sobre o contemporâneo de Camões e
possivelmente seu conhecido e amigo pessoal, Fernão Álvares do Oriente,
contidos no que foi a minha tese de doutoramento: Fernão Álvares do Oriente – O Homem e a Obra. Paris: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1976; e na terceira edição da sua novela pastoril: Fernão
Álvares do Oriente, Lusitânia
Transformada. Introdução e actualização de texto de António Cirurgião.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985. Um dos temas constantes da
tese e da introdução à terceira edição é a hipótese de Camões ser uma das
principais personagens da novela pastoril de Fernão Álvares e, como tal, ter
sido desterrado pelo rei para a vila de Constância, lá onde os rios Nabão e
Zêzere desaguam no Tejo.)
Tendo
passado praticamente o dia inteiro em companhia dos outros membros da
Associação e de um vasto número de convidados ilustres, não pude deixar de
ficar relativamente impressionado pelo à vontade com que o Presidente da
República confraternizou com todos os presentes e pela sua razoável cultura
humanística.
Nesse
contexto, não me posso esquecer de dois episódios ocorridos durante o banquete
servido numa espécie de barracão muito rústico, em enormes mesas de granito, a
fazer lembrar os grandes jantares nas fartas casas senhoriais da Idade Média.
Vamos aos episódios. Populista, extrovertido e “bon vivant”, logo me dei
conta de que Mário Soares conhecia de cara e de nome praticamente todos os
membros da Associação e os convidados. E, sendo assim, em determinado momento
levantou-se da mesa e fez questão de cumprimentar individualmente e
informalmente cada um dos comensais. Quando se aproximou de mim, voltou-se para
a senhora que estava sentada à minha direita, uma jornalista do New York Times, que acompanhava Mário
Soares em todas as viagens oficiais, e perguntou-lhe quem eu era. Apresentado
pela senhora jornalista, que eu conhecera nesse dia, por mero acaso, Mário
Soares, com a destreza dos políticos natos, apressou-se a felicitar-me pela
“nobre” profissão que escolhera e a exortar-me a que continuasse a promover a
língua e a cultura portuguesas nos Estados Unidos, e, especificamente, a
levantar cada vez mais alto o nome glorioso de Camões.
O
outro episódio só não vim a utilizá-lo um pouco mais tarde como jornalista
“free lance”, que eu era, por dele haver tomado conhecimento nas circunstâncias
que passo a expor. Quando a principal fundadora da Associação, Dona Manuela de
Azevedo, aproveitou do seu brinde para pedir ao Presidente da República apoio
financeiro para levar a bom termo a reconstrução da Casa-Memória de Camões em
Constância, Mário Soares, batendo levemente no ombro de Carlos Melancia,
governador de Macau, sentado a seu lado, respondeu prazenteiramente, mais ou
menos nestes termos, à digna senhora: - Dinheiro? Precisa de dinheiro? Ó minha
senhora, peça-o aqui ao meu amigo Melancia, que ele é Governador de Macau e é
muito rico. É que, como muitos deverão saber, a questão de presumível
enriquecimento fraudulento em Macau, por parte de certas figuras públicas e
governantes portugueses, viria a ser objecto de um livro altamente polémico de
Rui Mateus, Contos Proibidos,
publicado em 1996, e de quentes debates públicos em Portugal, de que o chamado
“Fax de Macau” pode servir de metáfora e paradigma.
Para
concluir o breve relato do meu segundo encontro pessoal com Mário Soares,
acrescentarei apenas que a maneira como o Presidente de Portugal viveu essa
efeméride em honra do Príncipe dos Poetas Portugueses em Constância me impeliu
a escrever-lhe uma breve carta no dia seguinte, a felicitá-lo pelo seu
manifesto interesse pela cultura portuguesa com C maiúsculo.
À
guisa de apêndice, apraz-me registar nesta entrada do meu Diário uma nota pertinente, sem nome de autor nem data, descoberta
na “internet”:
O Jardim-Horto [em Constância],
desenhado pelo arq.º Gonçalo Ribeiro Teles, foi inaugurado pelo presidente da
República, dr. Mário Soares, em 1990. Reúne toda a flora referida por Camões na
sua obra, num total de 52 espécies. No seu interior o visitante pode apreciar
ainda o Jardim de Macau, o Planetário de Ptolomeu no Auditório ao ar livre e um
painel de azulejos que apresenta as partes do mundo que Camões percorreu, de
Lisboa a Macau, passando por África e pela Índia. A enorme esfera armilar, a
maior de Portugal, assinala os 500 anos dos Descobrimentos Portugueses, que o
épico imortalizou em Os Lusíadas, e o caráter universalista da nossa
cultura.
É,
sem dúvida, um dos mais vivos e singulares monumentos erguidos no mundo a um
poeta.
O
meu terceiro encontro pessoal com Mário Soares aconteceu por ocasião das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e
das Comunidades, celebradas no dia 10 de Junho de 1990, em Braga. Tendo sido
nesse ano galardoado com a Grã Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique o meu
amigo Dr. Adriano Seabra Veiga, cônsul honorário de Portugal no Estado de
Connecticut, e vendo-se impossibilitado de se deslocar a Portugal, pediu-me a
mim que o representasse oficialmente nessa cerimónia, em que, entre outras
altas individualidades, estavam presentes, como é da praxe, o Presidente da
República, Dr. Mário Soares, e o Chanceler das Antigas Ordens Militares
Portuguesas, Marechal António de Spínola.
Terminadas
as cerimónias e a entrega das condecorações, todos os participantes tomaram
parte num piquenique organizado ao ar livre, junto ao Santuário do Bom Jesus de
Braga, à sombra de frondosas árvores.
Tal
como sucedera por ocasião do primeiro encontro, na residência oficial do
Representante de Portugal às Nações Unidas, em Nova Iorque, também em Braga,
durante o piquenique, aproveitei a ocasião para tentar trocar impressões com o
Presidente da República sobre questões relacionadas com a política do governo
português junto dos portugueses da
diáspora. E tal como sucedera em 1974, em que Mário Soares se furtou ao
diálogo, também em 1990, mutatis mutandis, sucedeu a mesma coisa, provavelmente por
achar que os portugueses da diáspora não eram dignos das atenções de quem como
ele, além de Presidente da República, ex-Primeiro Ministro e ex-Ministro dos
Negócios Estrangeiros, era l’ami de
Monsieur Mitterrand, de Willy Brandt, de Olof Palme e de outros estadistas
célebres.
Em
compensação, e em gritante contraste com o comportamento do seu ilustríssimo
marido, a Primeira Dama, a D.ra Maria de Jesus Barroso, ao saber que eu era
professor de Português numa universidade americana, entrou em conversa comigo,
com a maior simplicidade, começando por me perguntar se eu por acaso conhecia
um professor de Português da Universidade da Califórnia em Los Angeles, chamado
Eduardo Mayone Dias, o qual – dizia-me ela com entusiasmo – tinha sido colega
dela na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. E, no decorrer da
conversa, sendo vago conhecedor da carreira de declamadora e de actriz de Maria
Barroso, numa fase longínqua da sua vida, aproveitei para lhe lembrar alguns
dos seus grandes êxitos no palco, dando especial relevo à encenação, em estreia
absoluta, no Teatro Nacional, da peça de teatro de José Régio: Benilde ou a Virgem Mãe, drama em três actos, em que ela, D.ra
Maria Barroso, desempenhou com brilhantismo o papel da protagonista, facto que
José Régio fez questão de registar, com orgulho, nas Páginas do Diário Íntimo (Lisboa:
IN-CM, 2004, p. 230).
No
termo dessa conversa com Maria Barroso pude concluir que ela era dotada de uma
grande curiosidade intelectual, vivia apaixonadamente as coisas da cultura e
tinha saudades dos seus tempos áureos de declamadora e de actriz.
António Cirurgião