I – Criar um Estado
A Declaração Unilateral de Independência (DUI)
da República da Guiné-Bissau em 24 de Setembro de 1973, além de ter antecipado
e influenciado decisivamente a descolonização portuguesa, concluiu-se em
unanimidade e aclamação um ano depois aquando da sua admissão na ONU, em 17 de
Setembro.
A
luta de libertação nacional iniciara-se em 1963, e 1965 fora um ano-charneira. Primeiro,
porque a Organização da Unidade Africana (OUA), após uma visita in loco, reconheceu o Partido Africano
da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) como único movimento
nacionalista na Guiné. Depois, porque a 2.ª Conferência das Organizações
Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), reunida em Dar Es-Salam, considerou
que o desenvolvimento da luta de libertação nacional, a iniciar a fase de
«guerra de partisans e popular de
movimento», levava a comparar a situação à de um Estado de que uma parte do
território, sobretudo os principais centros urbanos, estivesse ocupada por
forças militares estrangeiras. Ainda só conhecida como Guiné Portuguesa, estar-se-ia
portanto perante o “calcanhar de Aquiles” da política colonial portuguesa.
A partir de 1968, a alteração da estratégia
político-militar portuguesa susteve tal ofensiva e equilibrou a situação. O
PAIGC passou a apostar mais numa solução política do conflito e a prestar maior
interesse às relações internacionais. Julião Soares Sousa fala a propósito de
um «salto qualitativo» realizado através de «duas ideias magistrais» de Amílcar
Cabral: por um lado, criar condições internas favoráveis ao apoio da comunidade
internacional; por outro, estender a política externa e a situação jurídica do
PAIGC num sentido favorável à proclamação do Estado. Confirmando esta nova
estratégia, em Agosto de 1967, em entrevista a um jornal romeno, Amílcar Cabral
sugeriu, pela primeira vez publicamente, a hipótese de uma DUI, que se poderia
realizar a curto prazo, acrescentando mesmo o dia 15 de Outubro como data
previsível; porém, no início do ano seguinte, rectificando a sua precipitação, confessou
«não ser possível nem prudente fixar a data da nossa independência».
Tratava-se,
em qualquer caso, de uma estratégia quase inédita e desenvolvida num contexto
complexo, pois o direito internacional não favorecia qualquer DUI e o direito
da descolonização exigia o acordo (voluntário ou forçado) da “potência
administrante”. Amílcar Cabral ensaiava porém uma formulação inovadora sustentando
que, no caso da Guiné subsistia uma contradição principal entre, por um lado, o
prenúncio de um “Estado de facto” nas regiões libertadas a que só faltava o
reconhecimento internacional da soberania e, por outro, a ausência de uma
“potência administrante”, cujas funções Portugal já não exercia efectivamente,
pois se limitava a administrar a guerra colonial. Assim sendo – concluía –, Portugal
não podia continuar a representar internacionalmente o povo da Guiné e a este
cabia alcançar uma personalidade jurídica própria (de jure).
Depois
de consideradas várias hipóteses – mero governo provisório, proclamação em
congresso partidário ou em Conselho de Estado especial – só em 1969, segundo
Aristides Pereira, os dirigentes do PAIGC entenderam «aceitável e necessária» a
materialização do projecto da DUI. Para tal, o Conselho Superior da Luta (CSL)
do PAIGC, em 1971, optou pela realização de prévias eleições constituintes, segundo
um processo regulado pelas Bases para a
criação da 1.ª Assembleia Nacional Popular na Guiné aprovadas em Dezembro,
«com força de lei», pelo Comité Executivo da Luta (CEL). Foram recenseados
cerca de 83.000 cidadãos no interior (“áreas libertadas”) e no exterior 4.517
refugiados ou militantes – tendo as operações eleitorais decorrido durante
vários meses, sobretudo para selecção dos candidatos nos distintos círculos. Os
actos eleitorais foram-se sucedendo, região a região, até 14 de Outubro de 1972
e os resultados definitivos foram anunciados num comunicado de 8 de Janeiro de
1973, difundido a partir de Argel: em síntese, contabilizaram-se 82.032
votantes, dos quais 97,13% votaram “Sim” na
única lista candidata.
As
condições objectivas destas eleições (participação, número de eleitores e
condições de votação) são de difícil valoração. O maior esforço para uma
análise cuidada do controlo populacional foi, rigorosa e criticamente, realizado
por René Pélissier e levou-o à conclusão de que, demograficamente, centenas de
milhares de pessoas teriam sido contadas duas vezes pelos recenseadores (de
cada uma das partes em causa); já quanto à prevista declaração de
independência, também tinha muitas dúvidas sobre a sua pertinência pois, a
menos que ocorresse uma súbita alteração da situação militar proporcionada pelo
uso dos mísseis, o novo Estado adquiriria por certo uma personalidade
internacional mas teria uma consistência territorial muito “sarapintada” e uma
população sempre inferior à que vivia e se batia pelo lado português, embora
também fosse de opinião que este desequilíbrio não deveria manter-se por muito
tempo.
Acrescente-se
que certas versões associam este plano de DUI ao assassinato de Amílcar Cabral,
a 20 de Janeiro de 1973, ou seja, logo depois de comunicado o resultado das
eleições. Segundo uma primeira hipótese, os conjurados visariam impedir ou,
pelo menos, atrasar a proclamação; numa versão oposta, teriam sido as eleições a
precipitar o assassinato, permitindo acelerar a proclamação sem o empecilho da
questão cabo-verdiana. Ao contrário de uma primeira aparência, estas leituras
não se opõem pois ambas se baseiam num eventual entendimento com as autoridades
e planos portugueses, nas cumplicidades de vários serviços secretos ou, mesmo, nas
temidas pretensões anexionistas de Sékou Touré – muito embora este, segundo
garante Aristides Pereira, sempre tenha estado «absolutamente de acordo» com a
proclamação da República da Guiné-Bissau –, tendo em comum privilegiar o
objectivo de afastamento da ala cabo-verdiana do PAIGC.
Apesar
disso, neste processo de construção do Estado na Guiné-Bissau não podem
deixar-se de salientar vários factores inéditos, assim resumidos por Sánchez
Cervelló: «a vontade constitucional da criação de novo Estado, a capacidade
política e militar de levá-la a cabo e a excepcionalidade da consulta
eleitoral, tão rara nos anais dos movimentos de libertação de todo o mundo».
II – O caso paralelo da FRELIMO
Em
1971, na mesma época em que o PAIGC deliberara desencadear esta DUI, o então
Presidente da Roménia, Nicolae Ceausescu (por certo conhecedor, senão envolvido
na estratégia do PAIGC), sugeriu a uma delegação visitante que a FRELIMO
promovesse, quanto a Moçambique, a criação de um governo provisório ou no
exílio. A FRELIMO considerou, de imediato, tratar-se de matéria delicada, que,
embora num ambiente africano relativamente favorável, levantava imensas
questões. A resposta a esta sugestão romena foi elaborada por Sérgio Vieira,
após várias discussões e consultas, nomeadamente com a Tanzânia, a Zâmbia e a
Argélia, e abordava 14 pontos, de que, em resumo, se destacam:
i)-
o precedente argelino, ainda que positivo, não resolvera os problemas de fundo
da guerra de libertação e dividira a Africa quanto ao seu reconhecimento;
ii)- o caso da Guiné-Bissau era especial e
tinha muitas condições de êxito internacional ao contrário de Moçambique, para
além de que a criação imediata de um Governo moçambicano «poderia semear,
internamente, pontos de discórdia, suscitados pelo inimigo, ou por ambições
pessoais»;
iii)- afastando, pois, a hipótese no imediato,
poderia ponderar-se a criação de um Governo provisório ou no exílio, dependendo
sobretudo da extensão e consolidação da sua própria luta e das reacções à
prevista proclamação da República da Guiné-Bissau.
III – A ofensiva diplomática
Gérard
Chaliand – o jornalista e académico que mais cedo conheceu e melhor teorizou a
estratégia revolucionária de Amílcar Cabral – sustenta que o processo da DUI da
Guiné-Bissau demonstrou grande imaginação política e capacidade diplomática, qualificando-o
mesmo de «golpe genial», por ter desfeito a tentativa portuguesa «de vender
convincentemente a sua efectiva ocupação do terreno». E Amílcar Cabral
conseguiu provar que a sua asserção do “Estado de facto” não era mera
propaganda.
Desde
1971 o PAIGC vinha intensificando a acção diplomática. Em Junho, por ocasião da
VIII Cimeira da OUA, o presidente da Nigéria, general Gowon, anunciara que,
dentro de dois anos, um território africano sob domínio estrangeiro se tornaria
independente. Só podia tratar-se da Guiné-Bissau. Em Janeiro de 1972, por entre
as conclusões finais da sua habitual Mensagem de Ano Novo, Amílcar Cabral comunicou
que o PAIGC iria criar Conselhos Regionais e uma 1.ª Assembleia Nacional
Popular da Guiné «para reforçar e desenvolver a soberania do nosso povo e abrir
novas perspectivas à evolução da nossa luta».
Em
Fevereiro, participou, como “peticionário”, na primeira reunião do Conselho de
Segurança da ONU realizada em África. Reiterou o pedido para o envio de uma
delegação oficial ao interior da Guiné e considerou que o problema a resolver
não era (contra a opinião emitida por certo número de dirigentes africanos) o
de expulsar Portugal da cena internacional mas, sim e apenas, o de reconhecer
que Portugal já não tinha o direito de representar o povo da Guiné e Cabo Verde
no seio das Nações Unidas. Os argumentos invocados eram objectivos; por um
lado, o único, verdadeiro e legítimo representante do povo da Guiné-Bissau
passara a ser o PAIGC; assim, o problema subsequente seria a «admissão da nossa
nação africana na ONU»; por outro lado, o povo da Guiné-Bissau
autodeterminara-se ao longo de nove anos de luta armada e era soberano «em mais
de dois terços do território nacional»; além disso, o PAIGC preparava-se para
eleger em breve os conselhos regionais e a primeira ANP e iria tirar todas as
consequências desse acto de soberania. Finalmente, propunha que os membros
permanentes se concertassem no sentido de exigir que Portugal procedesse à
descolonização; para tal, o Conselho de Segurança deveria impor um prazo e
enviar uma delegação que propusesse a Marcelo Caetano (Primeiro-Ministro
português) o início de negociações, a realizar, por exemplo, na sede da ONU.
Na
sequência do muito favorável relatório que a “Missão Especial” da ONU
apresentara sobre a sua visita às regiões libertadas (onde assistira também ao
decorrer do processo eleitoral), entre 2 a 8 de Abril de 1972, o PAIGC conseguiu
alcançar o estatuto de “observador” sucessivamente na Comissão de
Descolonização, na IV Comissão e na Assembleia Geral da ONU e a relevante
qualificação de “representante único e autêntico do povo da Guiné-Bissau e de
Cabo Verde”. Reconhecido como sujeito de direito internacional, o PAIGC
adquiria assim uma capacidade funcional, concedida (e limitada) em função do
seu objectivo: a independência.
Na sessão de 16 de Outubro perante a IV Comissão,
Amílcar Cabral (já na qualidade de representante oficial do PAIGC), anunciou
que a ANP tinha sido eleita para proclamar «a existência» do Estado mas repetia
a sugestão para que, previamente, a ONU diligenciasses junto do Governo
português no sentido de se realizarem imediatas negociações bilaterais; se o
Governo português respondesse favoravelmente, o PAIGC tomaria em consideração
os interesses de Portugal.
Entretanto,
meses antes, em Maio de 1972, haviam fracassado as negociações secretas que o
general Spínola, Governador e Comandante-Chefe da Guiné, encetara com o
Presidente do Senegal, Léopold Senghor, procurando um caminho para negociar com
o PAIGC, mediante uma intermediação deste. Esse caminho foi rejeitado pelo
Governo de Lisboa, considerando que equivaleria a reconhecer oficialmente o
PAIGC como força beligerante e, mais ainda, que possuía importante domínio
territorial; além disso, a negociação de um acordo definitivo abriria um
precedente quanto ao resto do Ultramar português.
O “plano Senghor”, esboçado em 1969, ainda foi,
depois da rejeição portuguesa, publicamente apresentado pelo Senegal na sessão
de 19 de Outubro de 1972 do Conselho de Segurança a propósito da discussão de
uma queixa, na sequência de uma incursão em território senegalês, a partir da
base de Pirada. Foi aí defendido pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros,
Abdou Diouf, como «única via de salvação para Portugal», e desenvolvia as três
etapas a que, segundo o Senegal, deveriam obedecer as conversações com o PAIGC:
a)- cessar-fogo, seguido de negociações sem condições prévias; b)- na sequência
das negociações, período de autonomia interna da Guiné-Bissau, cujas
modalidades, limites e prazos seriam discutidos livremente entre os
representantes do Governo português e os representantes dos diversos movimentos
políticos da Guiné-Bissau; c)- na última etapa, «a independência seria
concedida, após negociação, no quadro de uma comunidade luso-africana, que, a priori, não exclui nada».
Posteriormente,
este “plano Senghor” será ponderado por Spínola no livro Portugal e o Futuro e retomado, após o 25 de Abril de 1974, enquanto
Presidente da República, mas então já o Senegal tinha reconhecido a República
da Guiné-Bissau e o plano ficara ultrapassado – como insistentemente Senghor
recordou a Spínola.
IV – Avançar para a independência
A
intenção de uma DUI foi profusamente noticiada pela comunicação social a partir
de uma conferência de imprensa em Argel, a 6 de Novembro de 1972. Amílcar
Cabral regressava da sua intervenção na IV Comissão e das audições pelo
Presidente da Assembleia Geral e pelo Secretário-Geral da ONU (beneficiando já
da qualidade de “observador” que o PAIGC alcançara na Comissão de
Descolonização), e do seu doutoramento honoris
causa pela Universidade Lincoln, na Pensilvânia. Referiu-se ao êxito da
recepção na ONU, ao “plano de paz de Senghor”, à desorientação e manobras do
Governo português (incluindo o seu projecto de “fazer novas Rodésias”), à
posição dos aliados portugueses (em especial, as novas diligências do Brasil),
à disponibilidade do PAIGC para negociar, à próxima reunião do Conselho de
Segurança e destacou a convocação da ANP – que previa se realizasse no final do
ano ou, «o mais tardar, em princípios de Janeiro de 1973».
Em
Novembro de 1972, o PAIGC participou (juntamente com a FRELIMO e o MPLA, todos
a título individual, isto é, como peticionários) na reunião do Conselho de
Segurança, em que foi aprovada por unanimidade a resolução S/322, condenando o
colonialismo português e, na parte dispositiva, apelando a imediatas
negociações com não especificados “interlocutores válidos”. Avizinhava-se uma
tempestade diplomática para um Governo português cada vez mais isolado.
Também em fins de 1972, o conflito na Guiné agravara-se.
Amílcar Cabral conseguira obter importante
material militar em Novembro de 1971, aquando da sua participação no 44.º
aniversário da Revolução Soviética. O fornecimento fora acelerado após a
visita, em 1972, de dois generais soviéticos à fronteira sul da Guiné para
apreciar a situação. O relato sobre a concessão destes mísseis feito pelo
“senior specialist” das colónias portuguesas no “Departamento Internacional”,
Petr Yevsukov, demonstra a importância que o PAIGC alcançara e merecia nas mais
altas instâncias da União Soviética. Na sua sequência, o
PAIGC preparou o ataque a Guilege, centro nevrálgico da presença portuguesa no
sul do território e passou a dispor dos mísseis terra-ar Strella.
As
forças militares portuguesas, além das escassas cidades, apenas controlavam as
populações que habitavam junto aos seus aquartelamentos e nos reordenamentos e
Bissau tornara-se o último reduto. Apreciando as possibilidades do inimigo e a
provável evolução da situação, o Comando-Chefe português concluiu que se entrara
num «novo patamar da guerra» e antecipava que a intensificação da luta e o uso
de meios mais eficientes pelo PAIGC visava criar uma situação militar crítica e
favorável ao processo político que poderia levar à «próxima declaração de
independência do novo ‘estado’ que, dispondo de Território, População e Governo
próprios, alcançou todos os atributos de soberania».
Em resumo, estava tudo preparado (e sabido)
quanto à DUI – e ela foi o tema central da Mensagem de Ano Novo, de Janeiro de
1973, que ficou conhecida como o “testamento político” de Amílcar Cabral. Esteve
ainda presente na reunião do Conselho de Ministros da OUA, realizada de 8 a 13
de Janeiro em Acra, durante a qual a OUA apoiou as várias acções do PAIGC e a
convocatória da ANP destinada a proclamar o Estado da Guiné-Bissau.
Após
o assassinato de Amílcar Cabral, o calendário da proclamação foi alterado mas a
convocação da ANP (embora sem indicação de data e local) será confirmada pelo
II Congresso do PAIGC, realizado de 18 a 22 de Julho de 1973.
Entretanto,
o PAIGC procurava garantir antecipadamente um número de reconhecimentos de
Estado suficiente para a entrada imediata na OUA e em alguns organismos
internacionais. A Argélia era o centro das diligências não só pela sua
experiência histórica e pelas ligações aos países árabes como pelo apoio que
prestava às lutas de libertação. Para ultimar (e ratificar) a decisão de proclamar
unilateralmente o Estado, Aristides Pereira e Luís Cabral deslocaram-se
expressamente a Argel. Após um primeiro encontro com o Presidente Houari
Boummediene, na discussão mais aprofundada com o Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Abdelaziz Bouteflika concordou com a oportunidade do projecto, disponibilizou
os ensinamentos proporcionados pela experiência do “Governo Provisório”
argelino e prometeu a mobilização da sua diplomacia no sentido de obter o maior
número de reconhecimentos. A única dúvida que levantava decorria da aparente
contradição resultante do facto de o PAIGC – criado para lutar pela
independência da Guiné e Cabo Verde – se limitar a proclamar o Estado da
Guiné-Bissau, omitindo Cabo Verde.
V – A cerimónia
Inicialmente,
o PAIGC decidira realizar a cerimónia no Cubucaré em 19 de Setembro de 1973,
festejando o seu 17.º aniversário. Dois factores iriam levar à alteração do
local (deslocando-a da “frente sul” para a “frente leste”) e, consequentemente,
da data da proclamação: os bombardeamentos da força aérea portuguesa, concentrados
na fronteira e na ilha de Como, e, secundariamente, a ruptura de relações
diplomáticas entre as Repúblicas do Senegal e da Guiné (que, à última hora, dificultou
a presença física de representantes e jornalistas).
Por
fim, a sessão da 1.ª ANP realizou-se na mata, na colina sobranceira à tabanca
de Lugadjole, na região do Boé, para onde, caminhando, se haviam transferido
deputados, quadros e forças militares do PAIGC e uma quinzena de jornalistas e
convidados.
A
primeira reunião formal realizou-se no domingo à tarde, 23 de Setembro. Abriu-a
Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC, e destinou-se à eleição da Mesa
da Presidência, ensaio da cerimónia e apresentação de um resumo do texto da
Constituição. No dia seguinte, 24 de Setembro, pela manhã cedo, presentes 120
deputados, os trabalhos abriram com a leitura do texto da Proclamação do Estado da Guiné-Bissau, a cargo de Nino Vieira,
presidente da ANP. Aplaudido, seguiram-se-lhe o hino e um desfile militar.
Depois, foram aprovados (por “braços levantados”) a Constituição da República da Guiné-Bissau e quatro diplomas
complementares: Lei n.º 1/73 (vigência
transitória da lei portuguesa), Lei nº
2/73 (composição do Conselho de Estado), Lei nº 3/73 (composição do Conselho dos Comissários de Estado) e Lei nº 4/73 (homenagens a Amílcar Cabral).
Não houve qualquer discussão, nem assinatura. Seguiram-se vários discursos e a
retransmissão da “Mensagem de Ano Novo” (gravada) na qual, em Janeiro, Amílcar
Cabral expusera os traços fundamentais da declaração de independência.
A cerimónia terminou, a meio da tarde, com uma
festa popular. Todos os diplomas e intervenções foram imediatamente tornados
públicos; os textos legais seriam também oficialmente publicados, mais tarde. Filmada
e fotografada, a sessão foi divulgada, a partir de 26 de Setembro, pelas
agências noticiosas, pela Rádio Conacri e pela imprensa senegalesa. À notícia
intitulada «os nacionalistas proclamam a República nos territórios que
controlam», o jornal francês Le Monde,
de 27 de Setembro, acrescentava um
comentário certeiro: o nascimento do novo Estado vinha criar «um delicado
problema de direito internacional».
VI. Primeiras impressões
Apesar da grande importância desta sessão da
ANP, cuja consequência era a existência de um Estado, a “luta” pouco mudou: o
PAIGC, enquanto movimento de libertação nacional, manteve sempre e na íntegra o
seu papel de “força, luz e guia” embora, a partir de agora, também se
apresentasse como “governo central”. Entrevistado “a quente”, em Dacar, Victor
Saúde Maria expôs os traços gerais da política externa: relações Estado a
Estado com os países que procedam ao reconhecimento; sede no interior do
território, onde se instalariam o Conselho de Estado e o Conselho dos
Comissários de Estado; a questão da capital resolver-se-ia posteriormente visto
que eram controladas vastas regiões, apesar de o PAIGC não encarar o controlo
das cidades. Efectivamente, pouco depois, o PAIGC iniciou a construção em
Madina do Boé de uma prevista “capital para o futuro”, com cabanas, palhotas e
pré-fabricados, onde, durante 1974, se instalaram alguns titulares dos órgãos
executivos e apresentaram credenciais alguns embaixadores.
Logo
após a proclamação, Mário Pinto de Andrade esboçou um esquema das suas
consequências, distinguindo “militantemente” vários planos:
a)-
no plano interno: (i) consolidava a unidade nacional e reforçava a confiança dos
militantes comprometidos na luta armada e das populações das áreas libertadas;
(ii) era um poderoso encorajamento à luta armada em Cabo Verde; (iii)
constituía um reforço da coesão para a direcção político-militar do PAIGC;
b)-
no plano das relações com os países fronteiriços (Senegal e Guiné-Conacri): poderia
tornar-se, eventualmente, num novo factor de segurança;
c)-
no plano africano: além das manifestações de solidariedade dos membros da OUA,
proporcionava a aplicação dos seus compromissos de apoio militar;
d)-
no plano internacional: (i) quanto à ONU, seria uma ocasião para declarar a
ilegalidade da presença colonial portuguesa e teria ainda uma série de outras
implicações; (ii) isolaria o governo português quanto aos aliados na NATO;
e)- no plano das relações de força com o
inimigo directo: tornava viável um Dien-Bien-Phu português.
Em
Novembro, Luís Cabral, na qualidade de Presidente do Conselho de Estado, realizou
uma visita oficial a Dacar, assinou um acordo de cooperação e conseguiu
reforçar o apoio do Governo senegalês. Em Janeiro de 1974, em Zinguichor, a uma
quinzena de quilómetros da fronteira, concedeu uma extensa entrevista
jornalística, referindo que o executivo funcionava no interior do país, onde
ele próprio, muitas vezes, presidia ao Conselho de Estado; era verdade que no
tipo de guerra travada também as forças portuguesas se deslocavam por quase
todo o território, mas havia vastas áreas que não dominavam; pelo contrário,
ia-se construindo um verdadeiro Estado, que não era mero meio de combate no
terreno diplomático, antes dispunha de forças armadas, administração e aparelho
judicial; Luís Cabral mostrou-se também convicto que mais tarde ou mais cedo o
governo português aceitaria sentar-se à mesa de negociações.
As
(quase) imediatas reacções oficiais portuguesas à proclamação da República da
Guiné-Bissau foram de “vivo repúdio e espanto”. No terreno, a guerra prosseguia
e o general Bethencourt Rodrigues, Comandante-Chefe e Governador, substituto de
Spínola, tentava definir e impor uma nova estratégia militar, assente na
retracção e concentração do dispositivo militar e na preparação da defesa
anti-aérea.
VII – Reconhecimentos e recusas
(1973 e 1974)
A
DUI teve grande repercussão internacional. Tornou-se imediatamente o centro das
atenções na ONU, onde em Setembro e Outubro, a delegação portuguesa se viu
obrigada a sucessivas intervenções, nas quais sustentou tratar-se de mero acto
de propaganda e independência fictícia, desprovida de fundamento jurídico ou
moral e não correspondendo às condições que prevaleciam nessa província
portuguesa.
Nas
duas primeiras semanas, a República da Guiné-Bissau foi reconhecida por um
total de quarenta Estados e dois Governos provisórios (o GRUNC, do Cambodja, e
o GRP, do Vietname do Sul), com a sequência seguinte: em 27 de Setembro, pela
Argélia, Congo, Guiné-Conacri, Alto Volta, Jugoslávia, Togo, Mauritânia,
Somália, Madagáscar, Líbia, Nigéria, Libéria, Chade, Gana, Síria e Senegal; em
28 de Setembro, pela Etiópia, Egipto, Mali, Tunísia, Marrocos, Zaire, Níger,
Sudão e Tanzânia; em 1 de Outubro, pela URSS, Burundi, Roménia, China, Koweit,
República Democrática do Vietname, Daomé, RDA, Cuba, Serra Leoa, Iraque,
Bangladesh, Uganda e República Democrática do Yemen; em 7 de Outubro, pela
Índia. Este último, de iniciativa do Governo chefiado por Indira Gandhi, foi,
para os dirigentes do PAIGC, um “ êxito inesperado”.
No
final de Novembro, após a aprovação da resolução 3061 pela Assembleia Geral da
ONU e a admissão na OUA, os reconhecimentos de
jure duplicaram: setenta e nove Estados (entre eles, os primeiros
latino-americanos: Guiana, Panamá, Haiti, Jamaica e Peru). Com o “25 de Abril
de 1974” em Portugal, o número de reconhecimentos voltou a crescer e, em fins
de Maio, a República da Guiné-Bissau tinha sido reconhecida por oitenta e
quatro Estados (e dois Governos Provisórios). Surpreendentemente, em 18 de
Julho, ainda o Governo português não se decidira pela descolonização, o Brasil procedeu
ao reconhecimento, logo seguido pela Argentina, a 25. Após as declarações
portuguesas quanto à intenção de reconhecer de
jure a independência, em 27 de Julho, os reconhecimentos continuaram (a 1
de Agosto, o Japão, a 2, a Turquia, a 7, a Noruega, a 9, a Suécia e a
Finlândia, a 11, a Austrália e a Holanda, a 13, a Espanha, etc.) de tal modo
que, antes de ser admitida como membro da ONU, em 17 de Setembro, a República
da Guiné-Bissau já conseguira, praticamente, reconhecimento universal.
Mas
também houve, na altura da proclamação, em 1973, alguns casos de recusa
expressa, sobretudo dos países membros da NATO. É um painel interessante e
muito significativo.
Em
10 de Outubro de 1973, o Departamento de Estado norte-americano dimanou uma
instrução sobre a matéria, concluindo que a situação na Guiné-Bissau não era «ainda
suficientemente clara» para levar a uma primeira avaliação factual. O
Departamento continuaria a acompanhar a situação com atenção, procurando que o
conflito se resolvesse de acordo com o princípio da autodeterminação e
esperando uma solução pacífica. Em
reservado, como veremos, os EUA,
embora em dificuldades, procuraram atender as diligências desesperadas do
Governo português para evitar o generalizado reconhecimento internacional.
Em
Novembro e Dezembro, insistentemente pressionado, o Ministro dos Negócios
Estrangeiros francês, Michel Jobert, teve de intervir quatro vezes na
Assembleia Nacional, explicando que a posição do Governo francês perante o
Estado da Guiné-Bissau era clara: não reconhecimento, pois considerava não estarem
preenchidas as condições do direito internacional aplicável. A França não
apoiaria um eventual pedido de admissão e o Governo francês estava convicto que só o
respeito pela potência administrante do direito à autodeterminação permitiria
encontrar uma solução pacífica para o problema. Relativamente ao reconhecimento do PAIGC, bem como de outros
movimentos de libertação africanos, embora aceitando que poderiam ser
interlocutores na hipótese duma solução negociada, a França não admitia o seu
reconhecimento oficial, no plano internacional, como representativos das
populações.
Numa
carta de 9 de Novembro de 1973, Lady Tweedsmuir, Secretária de Estado dos
Negócios Estrangeiros e do Commonwealth,
recordou ser política do Governo britânico só reconhecer um novo Estado quando
ele atinja uma posição independente com uma razoável perspectiva de permanência.
Quanto ao reconhecimento de Governo, seria necessário que exercesse um efectivo
controlo sobre a maior parte do território nacional com um razoável grau de
permanência e beneficiasse da obediência da maioria da população. Como a
situação na Guiné Portuguesa não satisfazia nenhum destes critérios, o Governo
de Sua Majestade não podia conceder reconhecimento à auto-proclamada República
da Guiné-Bissau ou ao seu Governo.
Em
fins de Fevereiro de 1974, o Conselho Federal suíço também teve de se
pronunciar, declarando não estarem preenchidas as condições impostas pelo
direito internacional, visto que em caso de guerras de secessão e
independência, quando um território procura separar-se dum Estado existente
para constituir um novo Estado independente, o elemento de estabilidade exigia
que o anterior soberano tivesse renunciado a recuperar o território perdido ou,
se não o fizesse, parecesse não ter qualquer hipótese de o recuperar.
Por
sua vez, no início de Abril, os governos dos cinco Estados nórdicos (Dinamarca,
Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia), através de uma declaração do Ministro
dos Negócios Estrangeiros dinamarquês, reiteraram que não encaravam reconhecer
de imediato a nova República, pois para reconhecer um Estado eram necessárias
fronteiras claramente definidas e uma autoridade que assegurasse um controlo
absoluto sobre o território.
De
destacar, ainda, que também o Alto Comissariado para os Refugiados, em Genebra,
emitiu um Parecer sobre a incidência da declaração na situação dos refugiados,
nomeadamente quanto à questão de saber se a respectiva aptidão ou qualificação
(elegibility) se deveria reportar ao
Estado português (como concluiu) ou à novel República.
Por
seu lado, a grande maioria dos especialistas (em direito internacional público)
considerou prematuro o reconhecimento imediato – embora alguns mitigassem essa
qualificação com o novo regime do reconhecimento quanto à descolonização, com
reflexões sobre a incidência do reconhecimento no próprio requisito da
efectividade e, num ou noutro caso, chamassem a atenção para as especificidades
do processo em causa.
VIII
– A admissão na OUA (1973)
A
admissão na OUA, enquanto processo, não era particularmente exigente. Encontrava-se
prevista no artigo 28.º da Carta: qualquer Estado africano, independente e
soberano, podia, a todo o momento, apresentar a sua candidatura, notificando o
Secretário-Geral da intenção de aderir (n.º 1) e este comunicá-la-ia aos
Estados membros, que decidiam por maioria simples (n.º 2). Tratando-se dum simples
processo administrativo, podia ser tratado ao nível singular de cada Estado
(que comunicava a sua decisão ao Secretário-Geral) e não impunha, formalmente,
uma reunião do Conselho de Ministros ou uma sessão dos Chefes de Estado e de
Governo. Todavia, esta última, enquanto órgão supremo da OUA, gozava do poder
de interpretar a Carta, a propósito de qualquer questão concernente a uma
"notificação de admissão".
Dotada da experiência adquirida com o
percurso do reconhecimento do PAIGC e com as respostas às sondagens que em
diversas instâncias fizera sobre a recepção à DUI, o recém-constituído Governo
bissau-guineense decidiu não arriscar o pedido de admissão perante um Conselho
de Segurança da ONU incerto, e em contrapartida, apressar a respectiva
notificação ao Secretário-Geral da OUA. De tal modo que, a 20 de Novembro de
1973, em Adis Abeba, a reunião extraordinária do Conselho de Ministros dos
Negócios Estrangeiros da OUA admitiu, por aclamação, a República da
Guiné-Bissau como 42.º Estado membro. Este facto foi imediatamente comunicado
ao Secretário-Geral da ONU, que o transmitiu ao Conselho de Segurança.
Tendo
sido, inequivocamente, reconhecida e admitida na OUA como "Estado
independente e soberano" cerca de um ano antes do reconhecimento e
efectiva retirada portuguesa do território, o seu caso iria estabelecer um
precedente da OUA. Sobretudo, permitiu a participação oficial na sua XI Sessão
(correspondente à XII Conferência de Chefes de Estado e de Governo africanos),
realizada em Mogadíscio, capital da Somália, a partir de 7 de Junho de 1974, a
qual iria ter um papel decisivo no rumo da descolonização portuguesa, sobretudo
no acordo do Governo Português com o PAIGC.
Mas
a relevância imediata da admissão na OUA foi outra. A propósito das «novas
responsabilidades» que especialmente cabiam aos combatentes da luta de
libertação para «expulsar logo que possível as forças de agressão portuguesas
de todos os cantos do nosso país», Luís Cabral dirigiu uma mensagem à V Sessão
da Comissão de Defesa da OUA, que iria realizar-se em Conacri, de 7 a 12 de
Janeiro de 1974. A partir dessa intervenção e tal como já deliberara a ONU (ver
infra), também para a OUA Portugal
passara a Estado “agressor” ocupando ilegalmente certas áreas de um Estado
membro. Por isso, a Comissão de Defesa iria fornecer os meios necessários à sua
expulsão manu militari do território
da Guiné-Bissau. Era a confirmação do «clima propício a um empenhamento militar
de terceiros, com o apoio de largo número de países tradicionalmente hostis»,
sob a égide da OUA, que o Comando-Chefe das Forças Armadas portuguesas previa e
temia, desde, pelo menos, Maio de 1973.
IX – A resolução 3061 (XXVIII) da
ONU (1973)
A abertura da XXVIII sessão da
Assembleia Geral da ONU, em Setembro de 1973, foi marcada pela admissão dos
Estados alemães (RFA e RDA) e pela DUI da Guiné-Bissau. Quanto a esta última, em
5 de Outubro, culminando a ofensiva das primeiras reuniões, o representante da
Nigéria transmitiu ao Presidente do Conselho de Segurança uma série de
documentos relativos à declaração de independência. Em 22 de Outubro cinquenta
e oito Estados requereram a inscrição na ordem do dia, como “questão urgente e
importante”, dum ponto intitulado "Ocupação ilegal pela forças militares
portuguesas de certos sectores da República da Guiné-Bissau e actos de agressão
cometidos por elas contra o povo da República".
Nos termos da parte decisória do
extenso projecto, a Assembleia Geral felicitava-se «pelo recente acesso à
independência do povo da Guiné-Bissau, ao criar o Estado soberano que é a
República da Guiné-Bissau», condenava «energicamente» a política portuguesa e,
além de chamar a atenção do Conselho de Segurança «sobre a situação crítica
criada pela presença ilegal de Portugal», exigia que o Governo português se
abstivesse «imediatamente de qualquer nova violação da soberania e da
integridade territorial da República da Guiné-Bissau e de todos os actos de
agressão contra o povo da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, retirando imediatamente
as suas forças armadas destes territórios».
A
questão foi discutida nas reuniões plenárias realizadas entre 26 de Outubro e 2
de Novembro de 1973. O número de oradores inscritos para o debate geral foi
elevadíssimo: cinquenta e uma intervenções. A grande maioria saudou a proclamação da independência e solicitou
efectivas medidas de apoio por parte da ONU. Todos apontaram para a ilegalidade
da presença portuguesa, para o termo inevitável do colonialismo e apelaram a
Portugal para retirar imediatamente das colónias. Alguns criticaram a
cumplicidade do apoio militar, económico e político da NATO. O embaixador
António Patrício interveio, pela delegação portuguesa, na reunião vespertina de
31 de Outubro. Invocando as lições clássicas do Professor Lauterpacht,
sustentou que a Guiné-Bissau era um Estado fantasma, que não preenchia
minimamente qualquer dos requisitos impostos pelo direito internacional para o
reconhecimento – por exemplo, o PAIGC, não obstante o invocado controlo
territorial, tivera de proclamar a independência debaixo das árvores, numa
floresta e fizera-o quase na clandestinidade, como mostrava a ausência de
jornalistas senegaleses e o facto de a Proclamação só ter sido anunciada dois
dias depois. À ANP que proclamara a independência, contrapôs as eleições
realizadas para a Assembleia Legislativa em Março e o papel dos Congressos do
Povo, demonstrações do insofismável apoio à presença portuguesa. Negou o
controlo territorial invocado pelo PAIGC e, a concluir, afirmou que o Governo
português recusava «participar neste processo de desintegração do direito
internacional» e rejeitava «imediata e absolutamente esta tentativa de inversão
dos valores que regem as relações entre países que estão convencidos da
supremacia do direito sobre o uso da força».
Terminado o debate geral, a reunião matinal de
2 de Novembro abriu com as intervenções dos representantes que pretendiam
explicar o voto antes do acto de votação.
A Argentina anunciou que votaria a favor,
porque a moção apresentava a questão sob uma nova óptica e permitiria que as
Nações Unidas tomassem medidas adequadas à sua complexidade, mas ressalvou que
o seu voto afirmativo não significava o reconhecimento de Estado. A Grécia
(dita "dos Coronéis") ia votar contra porque o método e a via
adoptados poderiam «criar precedentes perigosos». O Chile (da recém-instalada Junta Militar de Pinochet)
abstinha-se porque distinguia dois aspectos diferentes, a criação de um novo
Estado soberano e a condenação do colonialismo. O Reino Unido ia votar contra.
Rejeitava liminarmente as acusações sobre o envolvimento da NATO, continuava a
considerar a Guiné-Bissau um território não autónomo e votaria contra o
projecto de resolução «pela simples razão que se funda em hipóteses irreais e
que as correspondentes propostas são, por isso, não fundamentadas e
inaceitáveis». Mas – como destacam alguns historiadores –, assumindo
publicamente esta posição, o Reino Unido estava a pagar um preço «muito alto»
para continuar a apoiar Marcelo Caetano, tendo ao seu lado apenas os Estados
que o Foreign Office via como «má
companhia». A abstenção da Bélgica, apesar de referir uma «grande abertura de
espírito» na questão do
reconhecimento da Guiné-Bissau, resultava de julgar que o território não reunia
todos os atributos da soberania e independência e, consequentemente, não
respondia aos critérios admitidos pela prática tradicional. O delegado sueco
interveio em nome dos cinco países nórdicos, cuja solidariedade concreta ao
PAIGC era bem conhecida e iriam abster-se porque, em resumo, o projecto de
resolução continha «elementos que prejudicariam a questão das nossas relações
com a República que acaba de ser proclamada». Finalmente, o Canadá e a
Austrália abstinham-se ambos pelos mesmos motivos: as questões decorrentes do
projecto levantavam «enormes dificuldades», assemelhando-se a um reconhecimento
colectivo do novo Estado.
A votação realizou-se por chamada nominal. O
projecto de resolução foi aprovado por 93 votos a favor, 30 abstenções e 7
votos contra (Portugal, África do Sul, Espanha, Reino Unido, EUA, Brasil e
Grécia). Em declarações de voto, Holanda, Irlanda, França, RFA e Nova Zelândia
reafirmaram o seu apoio ao exercício do direito à autodeterminação e
independência do povo da Guiné-Bissau, lamentaram não ter sido possível chegar
a consenso sobre outro tipo de resolução, observaram que um voto afirmativo
poderia implicar um reconhecimento de
facto e reafirmaram, cada qual por seu lado, que manteriam contactos para
proceder ao reconhecimento logo que possível, segundo as normas do direito
internacional. Por sua vez, os Estados Unidos declararam acompanhar de muito
perto os acontecimentos e não observarem nada que os convencesse que a
declaração de independência era justificada; estavam conscientes de que os
revolucionários «ocupam e pretendem administrar certos sectores dentro do
território e ao longo das suas fronteiras»; todavia, Portugal continuava a
controlar os centros populacionais, a maioria das regiões rurais e a
administração do território. O Governo norte-americano reafirmava, ademais, que
só a negociação entre as partes interessadas, no quadro da resolução 322 do
Conselho de Segurança, permitiria «pôr um termo à luta sangrenta no
território».
A DUI também criara um dilema aos
aliados de Portugal na NATO. Além disso, agudizou o litígio entre Portugal e a
ONU e fez fracassar a tentativa de détente
africana que a diplomacia marcelista ensaiara. Na sua sequência e acentuando
ainda mais a clara «degradação da imagem de Portugal na ONU», em 16 de
Novembro, a resolução 3067 convidou a República da Guiné-Bissau (enquanto tal,
isto é, em vez do PAIGC, com o inerente estatuto de "observador") a
participar na III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; pouco
depois, em 17 de Dezembro, a Assembleia Geral prosseguiu a restrição de
direitos ao aprovar os poderes da delegação de Portugal apenas «tal como ele
existe no interior das suas fronteiras na Europa» e sublinhando expressamente
que esses poderes não se estendiam aos «territórios sob dominação portuguesa de
Angola e de Moçambique» nem à Guiné-Bissau «que é um Estado independente».
X
– A admissão na ONU (1974)
A DUI criou um imediato
e enorme “quebra-cabeças” à diplomacia portuguesa.
Aquando da guerra de
Yom Kippur (entre Israel e os países árabes) e na sequência do ultimato norte-americano para utilização da Base das
Lajes em Outubro de 1973, o Governo português pretendeu que o Governo
norte-americano adoptasse, em seu favor, «uma posição mais franca e positiva»
sobre a DUI, caso a questão se levantasse no Conselho de Segurança. Com esta
diligência, Portugal conseguiu mesmo que o
"Memorando" norte-americano realçasse as intervenções e diligências
junto de vários órgãos da ONU e de outros Governos, sobretudo membros da NATO,
para impedir o reconhecimento da independência e obstar às condenações da
posição portuguesa.
O
assunto voltou a ser intensamente discutido na sessão de 14 de Março de 1974 do
Subcomité para África do Comité dos Negócios Estrangeiros da Câmara dos
Representantes, presidido por Charles Diggs, declarado defensor de posições
anticolonialistas. Os temas fortes eram o acordo das Lajes, a análise da
situação em todas as colónias portuguesas (em particular, o significado do
livro de Spínola, Portugal e o Futuro,
e a independência da Guiné-Bissau) e, finalmente, o novo posicionamento do
Brasil sobre a presença portuguesa em África. Foi criticada a posição oficial
do Executivo norte-americano quer quanto ao não reconhecimento da
independência, quer quanto à previsível oposição norte-americana ao eventual
pedido de admissão na ONU. Mas o debate não trouxe novidades neste campo e mais
importantes foram as apreciações finais sobre a significativa alteração da
política brasileira.
O
citado Subcomité tinha, porém, todas as razões para se queixar da «quase total
falta» de colaboração do Executivo norte-americano, pois fora ignorado nas
movimentações em torno da Guiné-Bissau. Entretanto, prosseguiam complexas
negociações entre norte-americanos, franceses e britânicos quanto a uma posição
comum no Conselho de Segurança se e quando fosse apreciada a admissão da
República da Guiné-Bissau na ONU – até porque o Reino Unido pretendia uma
posição comum de abstenção.
Também
eram equívocas as implicações da DUI na situação de Cabo Verde. A complexidade
da questão cabo-verdiana levara à criação, pelo II Congresso do PAIGC, em Julho
de 1973, da Comissão Nacional de Cabo Verde, «para salvar a unidade interna do
PAIGC e travar o processo de deserção e desencanto que tinha atingido uma
grande parte dos militantes cabo-verdianos». Foi precisamente para expor os
problemas de Cabo Verde que, em 29 de Março de 1974, Abílio Duarte, pelo CEL do
PAIGC, apresentou um relatório específico perante a Comissão de Descolonização
da ONU. Em suma, explicou que muito embora no texto da proclamação se definisse
claramente o território da República da Guiné-Bissau como correspondente à região
designada no passado como colónia da Guiné Portuguesa – portanto com total
exclusão das ilhas de Cabo Verde que conservavam, por enquanto, o seu estatuto
colonial – o mesmo texto, assim como a Constituição aprovada pela ANP, estavam
«profundamente impregnados do princípio fundamental de unidade que é a base e a
própria razão de ser do PAIGC». Assim – acrescentou –, o PAIGC criaria
oportunamente uma Assembleia Nacional Popular de Cabo Verde, com vistas à
formação do órgão supremo da soberania total do povo da Guiné e Cabo Verde e do
seu Estado unificado. Entretanto, não contendo nem implicando a DUI qualquer
modificação no estatuto das ilhas de Cabo Verde, o exame da situação da
população deste território – de que o PAIGC se considerava único, legítimo e
autêntico representante – continuaria na competência da Quarta Comissão da
Assembleia Geral da ONU.
Precisamente
na mesma altura, em 26 e 27 de Março de 1974, realizou-se secretamente em
Londres entre um emissário do Governo português e uma delegação do PAIGC uma
reunião que José Pedro Castanheira recordou como vinda “tarde de mais”. A
conjuntura era incandescente. Publicamente, já no auge da crise que levaria ao
25 de Abril, Marcelo Caetano repetia haver uma defesa global do Ultramar que
impunha coerência de atitudes, sendo evidente que não poderia aceitar a
negociação com o inimigo na Guiné em termos que retirassem autoridade para
recusar negociações em Angola ou em Moçambique». Mas a perturbação que o
acometia quando se tratava do caso da Guiné-Bissau talvez ajude a entender a
sua (mal esclarecida) aceitação da proposta do Embaixador inglês para um
contacto com o PAIGC em Londres. Em resumo, o Governo português enviou um delegado
com o mandato de, nessa reunião secreta, avançar com a «oferta da independência
à Guiné-Bissau a troco dum cessar-fogo». Era vago e não é sabido até onde
Marcelo Caetano iria. Rui Patrício, Ministro dos Negócios Estrangeiros, invocou
a propósito os conceitos jurídicos de “força maior” e “estado de necessidade”.
Aparentemente, havia “realismo” no plano português: concessão da independência,
precaução perante os eventuais ataques aéreos e um temido cerco a Bissau pelo
PAIGC – ou, até, uma eventual intervenção militar da OUA – e restrição das
negociações à Guiné-Bissau, excluindo Cabo Verde. Porém, nesta primeira fase,
as conversações eram meramente exploratórias – senão uma manobra desesperada do
Governo português, tentando ganhar tempo. Enfim, ficou combinada a sua
continuação, no início de Maio, novamente em Londres. Porém, as delegações que
a 25 de Maio se iriam encontrar em Londres para negociar eram completamente
diferentes (e, pelo lado português, até ignoravam as conversações anteriores)
pois, entretanto, ocorrera o “25 de Abril”. Não obstante, as questões centrais
a debater e os mandatos eram, no fundo, semelhantes: pelo lado português,
cessar-fogo e independência da Guiné; pelo lado do PAIGC, reconhecimento da
República da Guiné-Bissau e do direito à autodeterminação e independência de
Cabo Verde.
O “25 de Abril”
também acelerou o processo de admissão na ONU, que se tornou um enorme meio de
pressão sobre o novo Governo português. Em 10 de Julho, Gil
Fernandes (“porta-voz” do PAIGC) conferenciara em Nova Iorque com o Secretário-Geral
entregando-lhe a propósito uma mensagem de Aristides Pereira, enquanto Júlio
Semedo ("observador permanente") confirmava que o estatuto de membro
de pleno direito da ONU seria apresentado quarenta e cinco dias antes da
abertura da próxima Assembleia Geral, como era norma.
A candidatura da República da
Guiné-Bissau foi formalizada através de uma carta, de 16 de Julho de 1974,
subscrita pelo Presidente do Conselho de Estado, Luís Cabral. A primeira fase
decorreu perante o Conselho de Segurança. Portugal (que só assinará o protocolo
do Acordo de Argel em 26 de Agosto e,
na sua sequência, a 10 de Setembro reconhecerá de jure a República da Guiné-Bissau) promovera essa admissão e
formulara mesmo «a todos os países aliados e amigos pedido no sentido de
procederem ao reconhecimento imediato da República da Guiné-Bissau e
facilitarem a admissão deste terceiro país de língua portuguesa nas Nações
Unidas», dizia a Mensagem do Ministro
dos Negócios Estrangeiros português ao Presidente do Conselho de Segurança. Finalmente,
em 17 de Setembro, dia da abertura da XXIX sessão, a Assembleia Geral, por
unanimidade (e aclamação), admitiu a República da Guiné-Bissau como 138.º
membro da ONU. A República da Guiné-Bissau atingia a independência plena.
(Suprimi as notas, bibliografia e anexos.
Umas conclusões já constam de http://malomil.blogspot.pt/2015/11/guine-bissau-independencia.html)
António
Duarte Silva