sexta-feira, 30 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 38

 
 
 

 
38.
 
Em 1953, o Gabinete do Turismo do Japão (em inglês, Japan Travel Bureau) publicou o livro Japanese Wood-Block Prints, da autoria de Shizuya Fujikake, sendo esta a terceira edição da obra, após ter sido publicada em 1938 e em 1949.
 
O livro é o décimo volume da Tourist Library Series, iniciada pelo Conselho da Indústria do Turismo em 1934 e transferida em 1943 para o Gabinete do Turismo do Japão (para uma descrição dos primeiros 40 volumes desta colecção, ver aqui; muitos dos volumes encontram-se disponíveis online, aqui).

 

Shijuya Fujikake, Japanese Wood-Block Prints,
Edição de 1953
Colecção particular de António Araújo

 
 
 
Trata-se, como é fácil perceber, de uma colecção de monografias sobre diversos aspectos da realidade japonesa – a arte floral, o culto do chá, o quimono, o teatro kabuki, o bonsai, os netsuke – que procuram prestar ao leitor uma informação sumária do Japão, mas ainda assim com algum desenvolvimento (cada livro tem aproximadamente 200 páginas), sendo as obras profusamente ilustradas a preto e branco e a cores, contendo um índice remissivo e um índice onomástico. Sendo patente o propósito de divulgação em larga escala, não pode, todavia, considerar-se as obras desta série – e o livro de Shizuya Fujikake em particular – um mero panfleto turístico.   
 
Em suma, os livros desta colecção − desta colecção «oficial» − representavam, por assim dizer, o «retrato» que, pela pena de especialistas das mais diversas áreas, o Japão e o seu governo pretendiam projectar para o exterior, tendo, pois, um valor muito interessante para a percepção das estratégias e dos discursos que o país construía em seu redor e da sua auto-imagem.
 
O livro de Fujikake foi objecto de, pelo menos, 53 edições, de 1938 a 2016, o que atesta a perenidade do interesse por esta obra e o volume de leitores que alcançou, ao longo de várias décadas, em todo o mundo, verificando-se, por outro lado, que a obra continua a ter utilidade enquanto fonte de informação sobre as xilogravuras japonesas (um outro livro de Fujikake, An Introduction to Japanese Art, teve apenas seis edições e, 1936 e 1937; o autor tem alguns livros sobre o universo do ukiyo-e que tiveram mais edições, mas todas em japonês e quase todas anteriores à década de 1950; ver aqui).
 
Trata-se, pois, de um livro que teve – e, de certo modo, ainda tem – uma importância apreciável para a divulgação da arte das xilogravuras japonesas no exterior do país e, como se viu, como indício revelador do modo como os japoneses percepcionavam essa arte até muito recentemente.
 
         O seu autor, Shizuya Fujikake (1881-1958), tinha sido professor da Universidade de Tóquio e, na altura em que escreveu este livro, integrava a comissão constituída para designar os tesouros nacionais do Japão. Na nota introdutória, Fujikake afirma que o livro foi escrito devido a uma exortação de William Hartnett. No influente The Floating World, James A. Michener apelida-o «the beloved dean of ukiyo-e», o que, tendo em conta a importância do contributo de Michener para a difusão mundial das xilogravuras japonesas (cf. Notas sobre A Grande Onda – 35) torna este livro de Fujikake especialmente importante para a compreensão do contexto cultural em que, no Japão e no resto do mundo, a obra de Hokusai adquiriu em meados do século XX.  
 

Museu Britânico, 1996, 1009, 0.24

 
 
         No Museu Britânico, existe uma xilogravura de Shizuya Fujikake vestido de quimono, da autoria de Kitaoka Fumio e datada de 1951 (descrita aqui). Por sua vez, o livro da sua autoria tem também uma gravura sua, datada de 1949 e feita por Kōshirō Onchi, e de que existe um exemplar no Museum of Fine Arts de Boston (descrição aqui).
 


Museum of Fine Arts of Boston, 57.586
 

 
 
         No que se refere à Grande Onda de Katushika Hokusai, é habitual afirmar-se, e com razão, que a valorização de que foi alvo no Ocidente não tem paralelo no seu país de origem. Só por volta de 2005, ano da grande exposição sobre a obra de Hokusai no Museu Nacional de Tóquio, é que os japoneses começaram a referir-se afectuosamente a ela como «Grande Onda» (gureito weibu). No Japão, a obra mais popular de Hokusai era Vento do Sul, Céu Limpo (Geifū kaisei), vulgarmente chamado «Fuji Vermelho» (Aka Fuji), não A Grande Onda (cf., exemplo, Timothy Clark, Hokusai’s Great Wave, Londres, The British Museum Press, 2011, p. 23; é sintomático que seja essa obra que surge na edição de 1938 de Japanese Wood-Block Prints).   
 

Edição de 1938

 
 
         O livro de Shizuya Fujikake confirma esta percepção. Desde logo, há uma preocupação evidente em infirmar a ideia corrente segundo a qual a xilogravura japonesa se cinge aos «mundos flutuantes», razão pela qual o autor começa por narrar a história daquela arte nipónica desde o século XI ao século XVI, procurando evidenciar, do mesmo passo, a sua ancestralidade. Por outro lado, é conferido grande destaque ao período contemporâneo: mais de metade do livro trata das xilogravuras do século XX e, muito em particular, das xilogravuras que foram produzidas no Japão  à data em que a obra estava a ser escrita, para o que não deve ser alheia a intenção propagandística ou promocional da obra; por outras palavras, do ponto de vista da projecção externa do Japão, o fulcro da Tourist Library Series, interessava acima de tido valorizar o país na actualidade, mais do que produzir obras de natureza histórica que lidassem com realidades pretéritas ou definitivamente situadas no passado. Havendo, pois, que demonstrar a vitalidade da arte das xilogravuras, que a mesma continuava a ser praticada por artistas contemporâneos de qualidade e talento, importava não fornecer uma perspectiva excessivamente historicizada e, menos ainda, exclusivamente ligada à estética e à doutrina dos «mundos flutuantes». Não admira, pois, que, logo nas primeiras linhas da introdução, Fujikake afirme: «As is well-known, ukiyoe [sic] prints have long enjoyed a worl-wide fame. But Japanese wood-block prints are not represented solely by ukiyoe, there being also modern prints, produced by a new technique and showing a modern sense of beauty». Em larga medida, na verdade, o interesse do livro reside mais na digressão que faz pela obras de artistas do século XX do que pelos capítulos dedicados a mestres como Hokusai ou Hiroshige. É também sintomático que a Tourist Library Series, que publicou dezenas volumes, tenha dedicado uma monografia a Hiroshige (logo no nº 2 ou nº 5 da colecção, da autoria de Yone Noguchi), mas nenhuma a Hokusai, o que comprova que no Japão e no estrangeiro, durante muito tempo e junto de diversos coleccionadores (Frank Lloyd Wrigth ou James A. Michener, por exemplo), Hiroshige gozou de maior apreço do que o autor de A Grande Onda.
 
         Neste livro de Fujikake, em que se acumulam louvores à arte das xilogravuras (um dos capítulos intitula-se, não por acaso, «Why Japanese Prints are Unique»), no final há uma breve nota biográfica de Hokusai, a par da de muitos outros artistas, dizendo-se que a sua obra mais representativa é Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji e afirmando-se, de igual modo, que o seu autor foi «o máximo expoente dos artistas ukiyoe até ao fim do período Edo». A «idade de ouro» (sic) das gravuras japonesas é, no entanto, situada numa fase anterior à da produção de Katsushika Hokusai, que, em conjunto com Hiroshige Utagawa, é enaltecido na monografia de Fujikake como os dois nomes que, no seu tempo, mais se destacaram. Afirma-se, todavia, que a escassez de grandes mestres, em confronto com épocas passadas, demonstrava que o apuro da técnica não tinha sido acompanhado de um aumento de inventividade, escrevendo-se mesmo, em tom crítico, que «se o artista ou o editor tivessem orientado melhor os artesãos, ter-se-iam produzido obras de ainda maior qualidade». E, diz Fujikake, que nesse tempo os editores começaram a pensar mais no lucro do que na qualidade artística, preferindo «fazer produções em larga escala do que criar coisas belas». «Isso, naturalmente, levou à deterioração das gravuras policromáticas como obras de arte», é o juízo crítico de Japanese Wood-Block Prints, obra que sustenta ainda que se Hokusai e Hiroshige tinham  preocupações estéticas mais apuradas do que os seus editores, a vontade deste acabou sempre por prevalecer. Daí a apreciação algo negativa que, mesmo que de uma forma não totalmente explícita, Shizuya Fujikake acaba por fazer das xilogravuras do período Edo e, em particular, das obras da autoria de Hiroshige e de Hokusai. Note-se, para mais, que tal apreciação constava de um livro produzido em larga escala, e traduzido em inglês, que se destinava a apresentar, em termos turísticos e promocionais, aquilo que de melhor ou de mais singular o Japão oferecia ao mundo.
 
         Quanto à Grande Onda, é bastante eloquente o facto de não ser ela, mas outra obra de Hokusai, que surge reproduzida a cores, a toda a largura da página, sendo a opus magnum do pintor e ilustrador colocada sem relevo algum, a par do já citado «Fuji Vermelho» e de dois trabalhos de Hiroshige.
 
 
 
 
 
 
 
         Trata-se de um detalhe revelador: no início da década de 1950, quando James A. Michener escreveu sobre Hokusai nas páginas da Reader’s Digest  (1954) e Hergé o utilizou numa vinheta da edição colorida de Os Charutos do Faraó (1955), a Grande Onda já tinha «estatuto» para figurar necessariamente numa monografia dedicada às xilogravuras japonesas. Não possuía, no entanto, a aura de «ícone planetário» que hoje detém; o livro de Fujikake não lhe dedica uma linha, utilizando-a tão-só como ilustração com a legenda «Monte Fuji visto de Kanagawa».
 
         No destino posterior de A Grande Vaga, o Ocidente teve um papel determinante, iniciando ou aprofundando um processo que culminou na abertura em Tóquio do Sumida Hokusai Museu, inaugurado apenas em Novembro de 2016. Trata-se de um movimento cultural tão curioso como complexo: incorporando elementos de raiz europeia (a perspectiva, o azul-da-Prússia), A Grande Onda começou por alcançar maior projecção no Ocidente do que no seu país de origem, mas, paradoxalmente, é vista pelos ocidentais como a quintessência de uma imaginária ou imaginada «identidade nipónica». Por outro lado, e mais decisivamente, a gravura de Hokusai começou a ser assimilada pelos japoneses como traço ou emblema da sua identidade – pelo menos, da identidade que se pretende projectar no exterior. A onda recebeu elementos do Oeste, levados pelos holandeses; depois regressou ao Ocidente pela mão de japonistas de diversas épocas e vários lugares; há pouco, foi devolvida ao Japão, que até há pouco não a tinha como sua nem sequer a valorizava especialmente, como o demonstra o livro de Shizuya Fujikake, porventura das obras mais marcantes na divulgação da cultura japonesa de meados do século XX.    
         
 
 
 
        
 
 
 
 



quinta-feira, 29 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 37

 




         37.
 
         Não se sabe ao certo que carga transportam os barcos de A Grande Onda – se é que transportam alguma carga.
 
         Alguns afirmam que os barcos levam o produto de uma pescaria de bonitos, rumo ao mercado de peixe de Edo (Tóquio), onde aquela espécie atingia preços astronómicos (cf. Timothy Clark, Hokusai’s Great Wave, Londres, The British Museum Press, 2011, p. 17, para quem os barcos estariam provavelmente a encaminhar-se ao navio-mãe para transferir a carga que depois seria transportada rapidamente para Edo).
 
         Por sua vez, Julyan H.E. Cartwright e Hisami Nakamura, num estudo aprofundado de A Grande Onda, não excluem tratar-se de um transporte de bonitos (para a confecção de sashimi) e de atuns (para a feitura de sushi), que eram pescados na Baía de Sagami durante as suas migrações de Primavera e de Outono e levados nos barcos oshiokuri até Tóquio (sobre os oshiokuri, cf. Notas sobre A Grande Onda – 31).
 
         A questão é relevante seja para datar a altura do ano em que teve lugar a dramática cena retratada por Hokusai (muito provavelmente, as primeiras horas de uma manhã de Primavera), seja para determinar a sua localização geográfica.

 
         A este propósito, Cartwright e Nakamura escrevem:
 
«In Hokusai's day, oshiokuri were licensed craft permitting them to pass a checkpoint at Uraga, at the tip of Miura Peninsula between Sagami Bay and Tokyo Bay, without control, so that their cargo should arrive at market as quickly as possible. Once they left their home port, oshiokuri might not return for as long as 10 days but would travel to and fro between a rendezvous point at sea where they would meet the fishing boats and the fish market, for which purposes the crew would carry a rice cooker and mushiro or rush mats to eat and sleep in the oshiokuri. Owing to the perishable nature of the cargo, speed was essential — the trip would take five hours with a tail wind carrying 50 tuna, about three tons, from Misaki in Miura, 50 km south of Tokyo, for example—for this reason, as we can observe, in these oshiokuri there are eight scullers and two relief crew members per boat. The boats are seen heading away from Tokyo. Have they been surprised by the waves on their way back from Tokyo—they generally carried rice and miscellaneous goods on the return journey — or have they been forced to come about to head into the waves while on their way there? We can glimpse what might be some bagged cargo in the hold of one boat; rice would of course have been bagged, but dried fish also might have been placed inside a bag. Some oshiokuri even transported species such as squid and mackerel live to the fish market, using a fish tank installed in the hold that communicated with the sea; we cannot see any signs of such a tank in these boats, though, and tuna and bonito are probably too large to have been carried in this way. It is possible that what we view is not the cargo itself but mats on which to place it, or even the bed mats or indeed the sails that oshiokuri carried. If what we see is just empty bags or mats in the hold, the oshiokuri may be heading to meet the fishing boats at a purchase point somewhere offshore to collect their catch.»
  
         Na verdade, alguns elementos parecem contrariar a ideia de que os navios transportariam peixe. Ao observarmos o seu interior, na nesga que Hokusai deixa entrever, nada há de muito concludente.
 
Deve, todavia, ter-se presente um ponto a que Cartwright e Nakamura não dão o merecido realce: a imagem de A Grande Onda é extremamente estilizada e depurada nos seus elementos acessórios ou adjacentes (o Fuji, os rostos dos marinheiros, o desenho das embarcações) por forma a valorizar o essencial, a onda, a grande vaga. 
 
 
Daí que não tenha havido especial atenção aos pormenores no desenho do interior dos oshiokuri, ainda que, como notam Cartwright e Nakamura, seja seguro que, ao contrário do que por vezes se praticava nas artes da pesca na região de Edo, os barcos não levavam tanques de água salgada com animais vivos, geralmente chocos e cavalas.
 
Quanto ao mais, tanto pode tratar-se de uma carga de bonitos e de atuns, prestes a ser levada para junto da frota pesqueira, como podem ser sacos com arroz ou com peixe seco, sendo até possível que não estejamos a ver carga alguma mas tão-só os recipientes onde a mesma deveria ser colocada. O que observamos na imagem podem ser, inclusivamente, as velas, sabendo-se que os oshiokuri tinham um mastro central, amovível, para navegar ao vento quando este o permitisse.
 
 Na gastronomia japonesa, o bonito ou katsuo () é uma espécie particularmente apreciada, sendo pescada nos portos de Numazu, Shimizu, Yaizu e Omaezaki, na Prefeitura de Shizuoka. É também apelidado katsu (na região de Tohoku), Honkatsuo (na Ilha Kyushu), Magatsuo (nas ilhas Shikoku e Kyushu) e Suji (na Prefeitura de Yamaguchi).
 
No Japão, é uma espécie pescada no início da Primavera (sendo então chamado sho gatsuo, «o primeiro bonito da Primavera») ou no final do Outono (modori gatsuo, «bonito de regresso no fim de Outono»).
 
Na culinária, é servido cru, como sashimi, com ou sem pele, acompanhado preferencialmente de molho de soja (shōyu) misturado com raspas de alho, ou com wasabi e um toque de limão e soja. Entre outras formas, é também servido ligeiramente grelhado como sushi (para uma descrição mais pormenorizada, ver aqui, por exemplo, ou aqui)
 



Numa descrição simples, extraída de uma obra de divulgação, diz-se: «confundido por vezes com o atum-serra, o bonito é parecido com o atum, mas pertence, na verdade, à família da cavala. Tradicionalmente é pescado à cana, e não à rede, o que poderia danificar a sua carne, e é um dos mais velozes nadadores do mar. É consumido no sushi, e marinado ou levemente grelhado no sashimi. Seco e em aparas, é usado na confecção do dashi, o caldo japonês básico. Regra geral, o bonito é servido com gengibre ralado, que complementa o seu característico sabor cheio e rico». Cada lombo de bonito, de carne rosada, dá origem a duas grandes postas que são posteriormente cortadas em pequenos pedaços; para o sushi e para o sashimi, a pele do katsuo não é retirada, sendo os filetes levemente grelhados e depois submersos em água fria: cf. Kimiko Barber e Hiroki Takemura, com fotografias de Ian O’Leary, Sushi, trad. portuguesa, Dorling Kindersley-Civilização Editora, 2003, pp. 58-59, obra que informa ainda, sem preocupações de rigor taxonómico, ser o bonito um «peixe migratório de tamanho médio, muito comum nas águas quentes do Pacífico. Migra em Fevereiro para o Norte, ao longo da costa japonesa, e surge na ementa dos bares de sushi de Tóquio no início de Maio, assinalando o princípio do Verão.» 

 
Num guia mais completo sobre os peixes utilizados na confecção do sushi, o katsuo surge integrado nos «peixes de Primavera» com a seguinte descrição: «During April and May, schools of bonito (katsuo) migrating north from the southern reaches of the Japanese archipelago acquire a thin layer of subcutaneous fat. These fish are known as hatsugatsuo (first bonito) and have vivid red flesh, a mildly fatty quality, a subtle tartness, and even a whiff of blood. Of all fish, good taste is hardest to pick in bonito: among the specimens at market there will always be many that are plump and fresh, but totally devoid of fat or flavor, astringent even. The very finest bonito tastes wonderful seared and made into nigiri, the addition of yellow new ginger and vivid green chives as condiments making it a visual treat to»: cf. Kazuo Nagayma (texto) e Hiroshi Yoda (fotografias) Sushi | , Bilingual Edition, Tóquio, PIE International, 2011, p. 45.  
 
 
    

        Por sua vez, um artigo extenso artigo saído no The Japan Times da autoria de Makiko Itoh, intitulado «Katsuo, Japan’s ubiquitous tuna», e que aqui se seguirá de perto, explica que se, nos nossos dias, o peixe mais disputado é o maguro (atum, especialmente o bluefin, atum azul ou atum de aleta azul, Thunnus maccoyii, descrito aqui na Tábua das Espécies da FishBase), que atinge preços elevadíssimos Mercado de Peixe de Tsukiji, em Tóquio, a ponto de a espécie se encontrar ameaçada de extinção devido à pesca excessiva, a popularidade do atum azul ou maguro surgiu apenas no século XX; até então, a espécie mais apreciada e valorizada era o bonito ou katsuo.
 
         Seco ou fermentado, o katsuo era transformado em katsuobushi, um dos ingredientes do daishi, o caldo básico da alimentação japonesa (ver aqui). Era também conservado num molho agridoce e comido como tsukudani, curado em sal, como shiokara; envolto em farinha e frito e, mais frequentemente, comido cru ou quase cru. A forma mais popular de ser cozinhado era como tataki, ligeiramente grelhado no exterior e com o interior cru, sendo fatiado e comido como sashimi.  
 
         Há registos de que o katsuo já era servido na corte imperial Yamato, no século III, e a sua valorização pelos japoneses ficou patente no facto de o katsuo seco ou fermentado ser uma das oferendas levadas aos santuários xintoístas. Não era, todavia, um peixe reservado às elites, como o comprova o facto de, no Período Kamakura (1192-1333), o monge Yoshida Kenkō  (1284-1350) ter dito em Tsurezuregusa, uma colecção de ensaios redigidos entre 1330 e 1332, que até os pobres deitavam fora as cabeças de bonito. 



Yoshida Kenko (1284-1350)
 
 
 
No entanto, no Período Edo (1603-1867), a época de A Grande Onda  de Katsushika Hokusai, o bonito ou katsuo passou a ser especialmente valorizado, em particular aquele que era apanhado no final da Primavera ou no início do Verão (mais do que o do Outono), existindo até um dito popular que afirmava: «Sou capaz de empenhar a minha mulher por uma posta hatsuo-gatsuo» («hatsuo-gatsuo», de acordo com as regras haiku, era a palavra que indica o início do Verão).  

Katsuwonus pelamis
 
 
         Descrito por Lineu em 1758, o Katsuwonus pelamis (código FAO: SKJ) é uma espécie da classe dos actinoperígeos (actinopterygii), da ordem dos perciformes (Percomorphi), da família Scombridae, da subfamília Scombrinae, do género Katsuwonus. O seu nome deriva do japonês katuwo ou katsuo () e tem como designações comuns bonito, bonito-listrado, gaiado, atum-bonito ou atum-gaiado. Para uma informação taxonómica mais completa, deve consultar-se o Integrated Taxonomic Information System, onde o Katsuwonus pelamis figura com o número de série 172401 (aqui). Tem como sinónimos Euthynnus pelamis (Lineu, 1758), Katsuwonus vagans (Lesson, 1829), Scomber pelamys (Lineu, 1758), Scomber pelamis (Lineu, 1758), Thynnus vagans (Lesson, 1829).  
 
         Em diversas línguas, o Katsuwonus pelamis tem os seguintes nomes: Skipjack tuna (inglês), Echter bonito (alemão), Listado, bonito de altura  (castelhano), Bonite à ventre rayé (francês), Tonnetto striato (italiano), Tonijn, skipjack (neerlandês), Atum-bonito, gaiado (português), Bugstribet bonit (dinamarquês), Palamída, Iakérda (grego), Randatúnfiskur (islandês), segundo informa Antal Vida no livro 365 Fish (com ilustrações de Tamás Kótai, trad. castelhana, Barcelona, Tandem Verlag GmbH-Vince Books, 2006, s/p.), acrescentando que o bonito se encontra nos mares mais cálidos do mundo (sobretudo com temperaturas superiores a 20º C) e tem especial predilecção por explorar as águas à superfície. Diz-se ainda que o bonito é, provavelmente, a espécie de atum que se encontra com mais frequência, tendo cada fêmea centenas de milhares de crias. O ritmo de crescimento é rápido e a maturidade sexual é alcançada por volta dos três anos de idade, quando mede cerca de 30 a 40 cm. O comprimento máximo é de 60 a 80 cm. Conclui-se dizendo que são «uns belos peixes de cor azul-marinho, que têm merecidamente o nome de bonitos, como lhes chamam os pescadores de várias partes do mundo».
 
Não é certo, no entanto, que o nome bonito derive do português ou do castelhano, línguas em que essa palavra significa «belo» ou «formoso», podendo ter a sua origem na palavra árabe bainīth. Ewm castelhano, a palavra «bonito», usada para designar uma espécie de peixe, data de 1505, pelo menos.  Antonio Pigafetta se referia ao bonito, no relato que em 1525 publicou da sua viagem ao redor do mundo (ver aqui); e, na literatura portuguesa, nas páginas de Os Pescadores, de 1923, Raul Brandão escreve: «Saltam do fundo da rede as pescadas de lombo preto, os bonitos, as raias, os capatões, e uma toninha reluzente».

 
Katsuwonus pelamis


 
         Além das que atrás se referiram, o bonito tem muitas outras designações. Em castelhano, atún, atún de altura, barrilete, barrilete listado, bonita, bonito, bonito de altura, bonito del Sur, bonito de veintre rayado, bonitol, bonito listado, bonito oceánico, cachorreta, cachureta, cachurreta, descargamento, lampo, listado, llampua, merma, palomida, picosa, rayada. Em francês, bonite, bonite à ventre rayé, bonite folle, bonite ventre rayé, bonitou, bounicou, listao, thonine à ventre rayé, ton rayé. Em inglês, skipjack tuna, oceanic bonito, oceanic skipjack, skipjack, skipjack tuna, stripy.
 

         O Katsuwonus pelamis é uma espécie migratória pelágica-oceânica que tem uma distribuição natural cosmopolita nas costas tropicais e quentes-temperadas do planeta (de 15 a 30º C), como o demonstram as imagen constante do Aquamaps (http://www.aquamaps.org/), estando ausente apenas do Mediterrâneo oriental e do Mar Negro (para uma informação mais completa, ver aqui).
 
É encontrado à superfície e até 260 metros de profundidade e tem um tamanho médio de 80 cm e um peso entre 8 a 10 quilogramas (o máximo encontrado foi um exemplar com 110 cm; foram reportados um peso máximo de 34,5 quilogramas e uma idade máxima de 12 anos, de acordo com a Fishbase, informando a Wikipedia que o comprimento máximo registado foi 108 cm).
 
O Katsuwonus pelamis caracteriza-se por ter um corpo fusiforme, sem bexiga natatória, de secção arredondada e alongada, sem escamas excepto ao longo da linha lateral. Tem uma coloração escura na zona dorsal e prateada nos flancos inferiores e na barriga, apresentando quatro a seis bandas longitudinais negras ou cinzento-escuras ao longo de cada flanco. As barbatanas são possantes e longas, de coloração escura, com a primeira barbatana dorsal nitidamente mais alta do que a segunda e as barbatanas peitorais mais pequenas.    
 
Representando cerca de 40% das capturas mundiais de atum e tendo um valor comercial, o maior mercado do bonito é o asiático e, em especial, o do Japão.