quinta-feira, 31 de maio de 2018
Cidade Infinita.
Coimbra, 1988
Fotografia de Duarte Belo
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Da
enorme grandeza de Duarte Belo já todos sabemos. Podeis apreciá-la no seu
blogue, Cidade Infinita. Já agora: http://www.duartebelo.com/
quarta-feira, 30 de maio de 2018
terça-feira, 29 de maio de 2018
Um belo livro.
Pela
primeira vez em todo o mundo, os Cadernos de Trabalho de Ingmar Bergman.
Editados pela Nórdica, em Espanha, gordo volume de 464 páginas, um preço nada
assustador de 25 euros.
segunda-feira, 28 de maio de 2018
Demasiado perfeita?
Circula
na Internet uma imagem demasiado perfeita.
Dizem ser de uma órfã iraquiana que desenhou a figura da mãe a giz, no chão,
tirou os sapatos e adormeceu no regaço materno. De cima, o fotógrafo captou o momento,
tudo sem uma falha. Longe de mim afirmar que a imagem não é pungente.
Parece-me, no entanto, demasiado pungente.
Nunca nos esqueçamos que, antes das fake news, a manipulação fotográfica já
existia, e à grande. Mais, as imagens manipuladas são talvez a maior fake new
do nosso tempo. Será o caso desta fotografia? Fica a dúvida, pois não consegui
obter praticamente nenhuma informação sobre a imagem (o que, aliás, reforça a
desconfiança e a dúvida). Para mais, vejam como circulam imagens em tudo semelhantes:
Ferrante, napolitana.
A
Nápoles de Ferrante. Um fotoensaio do The Guardian,
escrito por Sophia Seymour, que fundou a empresa Looking for Lila,
percursos pela cidade da amiga genial. Também do maior interesse, este artigo da The New York Review of Books.
1964
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1955
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E
agora, para os fãs fanáticos, a adaptação da tetralogia ao écran, com actrizes escolhidas,
seleccionadas e orientadas por Elena, a misteriosa.
domingo, 27 de maio de 2018
sábado, 26 de maio de 2018
Ritos de passagem da sociedade do espectáculo.
Martin Parr
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Eis um rito de passagem da sociedade
ocidental contemporânea:
Um grupo de doze pessoas de ambos os
sexos, quase sempre jovens, é escolhido como representante da comunidade social
com as mesmas características e, por extensão, toda a nação, numa prova de
transição em que têm de se exibir de forma a tornarem-se conhecidos de toda a
sociedade que assiste. A prova permite aos noviços passarem a fazer parte da
casta dos privilegiados (os que, mesmo sem especialização ou ascendência nobre,
são amados pela sociedade e alimentados por ela).
Os candidatos à passagem, escolhidos
de entre a massa anónima, começam por ser apresentados à sociedade; são
impedidos de se fazer acompanhar de elementos pessoais e a sua identidade é
substituída por outra forma de anonímia, reduzida ao seu nome de baptismo ou
diminutivo, o que os torna mais representativos, ou símbolos, de partes da
sociedade, pois deixam de ser indivíduos específicos, se bem que anónimos.
Nenhum indivíduo pode fazer a prova duas vezes, pois apenas a primeira vez
conta.
A prova a que o grupo é submetido
inclui a separação das famílias e do resto da sociedade, momento difícil em que
os noviços se despedem dos seus entes queridos no limiar do território
pré-destinado em que serão postos à prova. Esta área espacial e simbólica de
transição está totalmente fechada a todas as pessoas do mundo exterior, excepto
aquelas que, em segredo, participam na organização e prossecução das cerimónias
e das provas, pessoas estas que a sociedade desconhece mas geralmente
aceita. Se algum dos noviços sair do
território, não poderá voltar a tocar o seu chão, tal como os outros mortais,
podendo, porém, qual deus ex machina, descer dos céus e contactar os noviços. O
território é, portanto, considerado chão sagrado durante a prova. O território
tem a forma de casa, lugar de inúmeros rituais. A casa é diferente das casas do
mundo exterior. Ela é tabu para o mundo profano que assiste à prova. Os
iniciados em prova não podem passar da porta principal do território para fora,
sob pena de serem expulsos. A porta é instituída como limiar simbólico entre o
território da iniciação e o mundo exterior.
Começa então o verdadeiro período de
teste, período de transição. Depois dum rápido reconhecimento do território, a
prova prolonga-se depois por um longo período de 120 dias. Os candidatos são
então submetidos, sob apertada
vigilância da sociedade, a várias provas, mas a prova fundamental é apenas
comportamental e de representação do seu próprio personagem.
Durante a prova, não podem de maneira
nenhuma ter contacto com o mundo excepto através dum alto sacerdote ou director
de cerimónias; nada sabem do que se passa com as suas famílias nem no resto do
mundo; têm de mostrar que a sua personalidade se molda e agrada a todos; têm de
saber gerir a sua vida íntima de forma a que não choque o grupo e a sociedade
que os observa mas, ao mesmo tempo, têm de chamar a atenção sobre si mesmos e,
se possível, ultrapassarem as expectativas.
O isolamento é importante. Sem o
isolamento, os noviços não estariam postos à prova nem poderiam simbolizar todo
o seu grupo e a sociedade. Durante o período de transição, os noviços estão em
clausura. São humilhados, mas, ao mesmo
tempo, tratados como privilegiados, precisamente por estarem fora da sociedade
mas postos à prova por ela.
Assim, enquanto se encontram no
território, os candidatos não precisam de roubar ou pilhar os bens necessários
à sobrevivência porque a comida e outros bens de consumo aparecem regularmente
numa região intermédia do território, por uma porta não consagrada, oferecidos
pela sociedade. São oferendas. Os
noviços não têm de trabalhar, apenas de conviver, transaccionar palavras,
gestos e afectos e cumprir tarefas que mostrem a sua capacidade de viver em
grupo, de servir a sociedade e de defender a dignidade da sua vida privada
quando a ela regressarem. Em parte, eles
têm já de simular ― de aprender a viver ― a suposta vida de ócio dos
privilegiados da sociedade.
Os noviços devem obediência ao poder
oculto da prova e obedecem naturalmente. Entre si, o comportamento esperado é o
da igualdade e da camaradagem, sendo os conflitos existentes os que resultam da
oposição entre a individualidade e a incorporação no grupo.
Os candidatos têm de mostrar o seu
corpo. A nudez é importante enquanto se encontram no território pois ela
associa-se a três dos valores máximos do grupo social em que se inserem: a
juventude, o sexo e a sobrevivência da sociedade. Desta forma, a organização do
território, com a mistura dos rapazes e das raparigas, proporciona a
concretização de encontros amorosos e sexuais. A nudez é voluntária ou (quase)
provocada, pois é preciso realizar-se o reconhecimento de que cada candidato da
prova é realmente um homem ou uma mulher e capaz de realizar o acto da
procriação. Através dos contactos
semanais com o director de cerimónias, os jovens são espicaçados a
desenvolverem relações amorosas e sexuais. O sacerdote fomenta os namoros, ou
esponsais. Os comportamentos de cortejamento e sexuais podem ser mais livres
durante a prova, aceitando-os a sociedade facilmente sem que os envolvidos
sejam por isso condenados. A promiscuidade seria condenada, mas não a exibição
pública do acto sexual durante a prova. Aqueles que chegam a isso são de alguma
forma premiados pela sociedade em estados seguintes. Em resumo, os
comportamentos afectivos e sexuais podem ser diferentes por se tratar de um período
transitório.
Martin Parr
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Tal como a nudez forçada, pode haver
outros momentos de humilhação, pois o noviço
«deve ser uma tábula rasa, uma lousa em branco, na qual se inscreve o
conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos pertinentes ao novo 'status'.
Os ordálios e humilhações, com frequência de carácter grosseiramente
fisiológico, a que os neófitos são submetidos, representam em parte, a têmpera
da sua essência, a fim de prepará-los para enfrentar as novas responsabilidades
e refreá-los de antemão, para não abusarem de seus novos privilégios. É preciso
mostrar-lhes que, por si mesmos, são barro ou pó, simples matéria, cuja forma
lhes é impressa pela sociedade».[1]
Estas provas de humilhação coexistem, portanto, com o acarinhamento dos
iniciados enquanto futuros prováveis privilegiados. Os dois contrários não são
considerados contraditórios, pois fazem parte da transição.
O sacerdote não deve intervir na vida
interna do território nem deve tomar partido por nenhum dos membros do grupo.
Estes, por seu lado, não devem tomar atitudes anti-sociais, por exemplo
violentas, sob risco de expulsão imediata do território.
Semanalmente, o mundo exterior
contacta com os noviços, individualmente. Cada candidato é chamado a uma zona
isolada do território, um lugar considerado de recolhimento e de contacto com o
deus ex machina, a sociedade que observa, e tem de responder a todas as
questões do director de cerimónias, representante da sociedade. À distância,
numa assembleia também com características de lugar de culto, a sociedade
assiste, estando presentes as famílias dos jovens junto do sacerdote.
Nestas cerimónias semanais, a prova
complica-se. De duas em duas semanas, os candidatos têm de escolher quem acham
que deveria ser submetido à expulsão do território. Trata-se de uma decisão
difícil, pois têm de tomar em conta as personalidades próprias dos seus
companheiros e, em simultâneo, o seu comportamento em grupo. Têm também de
considerar a sua própria posição em relação com os outros noviços. Cabe depois
à sociedade escolher qual dos mais votados pelos candidatos é expulso, o que
sucede na semana seguinte, no mesmo local onde os representantes da família e
da sociedade estão reunidos em assembleia sob a chefia do sacerdote.
A expulsão não é um momento de
humilhação. Pelo contrário, o candidato banido do território é recebido em
festa e incorpora-se, de novo, na família, na assembleia e na sociedade. Aquele
que, por sua livre iniciativa, deixar de participar nas assembleias seguintes,
é ostracizado pelo sacerdote, pela própria assembleia e pela sociedade.
As expulsões prosseguem até ficarem
apenas quatro e depois três dos noviços. Nessa altura, a prova apressa-se pois
os candidatos que restam já não poderiam simular o comportamento em sociedade
dentro do território.
A prova termina com a escolha pela
sociedade de um vencedor, o qual é acumulado de prémios que toda a sociedade
deseja, como automóveis e viagens; na realidade, todos os noviços expulsos, à
excepção dos que se afastam voluntariamente, tinham permanecido integrados,
através, desde logo, da sua presença nas assembleias semanais.
Esta é, em suma, a descrição de um
rito de passagem que todos os membros das sociedades ocidentais contemporâneas
conhecem: o Big Brother. O impacto deste programa nas sociedades em que foi
apresentado revelou que o Big Brother foi ou é muito mais do que um
programa de televisão, mais do que um «jogo de realidade», mais do que um
«programa de realidade». O Big Brother disse respeito a toda a
sociedade porque se organizou, se instituiu por completo do primeiro ao último
instante como um rito de passagem.
Os ritos de passagem foram teorizados
pelo etnólogo francês, filho de pai holandês, Charles Arnold van Gennep
(1873-1957) na sua obra seminal Les Rites
de Passage, publicada em 1909. Neste clássico da antropologia social, van
Gennep classificou os ritos, ou actos mágico-religiosos (muitos sem
significação religiosa), verificou a sua co-relação e a ordem em que eram
realizados. O autor não se referia apenas aos ritos das «sociedades primitivas»,
mas também aos que se realizavam nas «sociedades desenvolvidas» do Ocidente ou
da Ásia. Aliás, van Gennep encorajou o estudo etnográfico do folclore europeu.
No seu clássico, van Gennep define os
ritos de passagem como os rituais associados a «uma passagem de uma situação a
outra ou de um mundo cósmico ou social para outro»: mudança de estatuto, ou de
estado, como por exemplo a passagem da juventude à idade adulta. Os ritos de
passagem são de três espécies: «ritos de
separação, ritos de transição e ritos de incorporação». Os ritos de
separação «são proeminentes em cerimónias funerárias, os ritos de incorporação
em casamentos. Os ritos de transição podem ter uma parte importante, por
exemplo, na gravidez, nos esponsais e na iniciação». Van Gennep chama também
aos três tipos «ritos pré-liminares (ritos de separação), ritos liminares
(ritos de transição) e ritos pós-liminares (ritos de incorporação)», sendo o
limiar ou liminar o estádio ritual onde se processa a mudança.[2]
Defendo que o Big Brother se constitui como um rito de passagem e, entre deles,
como um rito de transição. A transição inclui também ritos de separação e de
incorporação, absolutamente necessários para criar o ambiente mágico e
construir a solidez social do programa de televisão, elevando-o muito acima do
seu estatuto de objecto lúdico transmitido num mass media. A descrição do Big Brother que realizei na parte
inicial deste artigo permite inscrevê-lo nos ritos de passagem tal como van
Gennep o faz no seu clássico.
Os momentos principais da separação,
transição e incorporação estão aí descritos, não sendo necessário descrevê-los
em pormenor. A versão francesa do programa, com o nome Lof Story, e outros programas do mesmo tipo, apresentados sob os
nomes de género reality shows ou reality games, como Masterplan, Bar da TV, Acorrentados, Academia de Estrelas, e Operação
Triunfo, apresentam semelhanças profundas com o Big Brother nas características de ritos de passagem. Todos eles
adaptam a estrutura e significados dos actos mágicos da sociedade ao género
mediático televisivo, acrescentando-lhes o aspecto lúdico e humorístico duma
sociedade hedonista, other-directed,
e muito correlacionada com a televisão.
Todos eles têm uma cerimónia inicial
de separação, todos têm as provas de iniciação durante o rito de transição,
todos têm rituais de expulsão e de incorporação dos concorrentes, todos fazem
do apresentador um sacerdote ou «director de cerimónias» (a expressão é de van Gennep).
De que passagem trata este rito Big Brother?
Defendo que o Big Brother é um rito de transição do
anonimato e da pobreza para a aristocracia do «ser-se conhecido» ou do
estrelato nos mass media da sociedade do espectáculo contemporânea. Em resumo,
o Big Brother é um rito de passagem
da sociedade do espectáculo, é um rito de passagem que garante a iniciação no
sociedade do espectáculo.
O facto de os concorrentes serem
quase sempre jovens e disponíveis, bem como outras características do jogo,
poderiam levar a confundir o programa com um rito de iniciação na idade adulta,
com uma transição (namoro, esponsais) para a formação da família. Todavia, a
sociedade tem aceite concorrentes menos jovens no lote de noviços e até
candidatos casados. Além disso, o programa mantém a actividade sexual
facultativa, o que não poderia deixar de ser nas sociedades de direito
ocidentais. Na verdade, a sociedade não precisa de um rito público de iniciação
desse tipo e, provavelmente, não o toleraria. O Big Brother não é, portanto, uma iniciação da idade adulta, não se
relaciona com a «puberdade social» de que fala van Gennep, pois essa passagem
deixou de ser ritualizada colectivamente no Ocidente, por ser desnecessário.
Quando muito, o Big Brother
representa uma «juventude social», não biológica, dada a forma como a ideologia
da juventude se confunde com a sociedade do espectáculo.
A principal transição simbolizada e
concretizada por este rito televisivo é, portanto, outra. Os concorrentes
prestam-se a uma série de provas e de situações normalmente consideradas como
humilhações (começando pela devassa da sua vida privada e pela exibição pública
de toda a sua vida íntima incluindo a corporal, passando pela obrigatoriedade
de exibição da nudez e terminando na exibição da sua actividade sexual) porque
pretendem atravessar um limiar que lhes será extremamente benéfico: deixar de
ser pessoas anónimas, despossuídas de riqueza e de estatuto social, e passar a
ser pessoas «conhecidas», pessoas com estatuto social reconhecido pelos seus
concidadãos. No passado, tal só era possível ― sem violência e sem trabalho
produtivo ― através do casamento dum(a) pobre num escalão social superior. Na
sociedade do espectáculo[3],
ser-se conhecido é um estatuto altamente valorizado, pois significa a garantia
de um modo de vida ou, pelo menos, do abrir-se de portas para inúmeras
oportunidades de trabalho e para rendimentos acrescidos directa ou
indirectamente com o aparecimento de oportunidades de negócio, além da suposta
afirmação de personalidade que se lhe atribui errada mas automaticamente.
A passagem do anonimato ao
reconhecimento social e público é celebrado num espectáculo ou cerimónia (a que
acima chamei assembleia) após a escolha dos eleitos por votação via telefone ou
internet, não controlada pela sociedade mas por ela considerada como
representativa de si mesma. O pós-Big
Brother permitiu verificar que o jogo ou concurso Big Brother não tem apenas um único vencedor, o escolhido pelos
votantes, mas vários ― nisso revelando, uma vez mais, o seu carácter de rito de
passagem. De facto, a primeira edição do Big
Brother criou vários «conhecidos» e não apenas o vencedor. Quatro
concorrentes foram incorporados na aristocracia dos «conhecidos» ou colunáveis
por terem constituído dois casais legítimos: o significado do programa foi,
assim, acrescentado com os ritos de incorporação dos casamentos em programas
posteriores, que legitimaram a própria instituição do programa enquanto rito de
passagem. Uma outra concorrente, por ter alimentado um relacionamento com o
vencedor, foi igualmente mantida no grupo dos «vencedores» sociais para além
das regras do jogo, tendo participado num outro programa do mesmo canal, a TVI.
A passagem do anonimato e da pobreza
(sendo aqui a pobreza não apenas económica mas a que se identifica com um
anonimato social) à aristocracia da sociedade do espectáculo está ainda mais
visível nos dois jogos lançados pela mesma produtora em 2001-2002, Academia de Estrelas, já apresentado em
Portugal, e Operação Triunfo, já
apresentado em Espanha. Neles, o objectivo é ― já não indirectamente, como no Big Brother
― a passagem directa ao estrelato do espectáculo (música pop, representação,
dança, mímica, etc). O primeiro prémio da Operação
Triunfo, a consagração como representante do «país» no concurso de canções
da Eurovisão, significa de facto a concretização total, consumada, do objectivo
do rito de passagem. Já num anterior concurso da mesma empresa[4], Chuva de Estrelas, estava presente a
mesma estratégia de assegurar a passagem ao estrelato, através da promessa de
gravação de um CD.
Cabe perguntar por que razão a
sociedade não identificou o Big Brother e
outros reality shows ou reality games como ritos de passagem. Julgo que
a sociedade não identifica ritos de
passagem, apenas tem ritos de
passagem. A sociedade não é consciente de que os ritos de passagem são ritos de
passagem, mas vive-os como tal ― ou participa na sua representação como tal.
Um outro aspecto contribuiu até agora
para mascarar essa característica vital deste tipo de programas: o facto de o
programa ser de tal forma autónomo que parece desligado de fenómenos sociais
tão enraizados como os ritos de passagem. Van Gennep chamava a atenção para
este facto ao referir-se a «alguns padrões cerimoniais em que o período de
transição é suficientemente elaborado para constituir um estado independente».
Quer dizer, o rito ― neste caso o programa de televisão ― vale por si: «todas
estas cerimónias têm os seus próprios objectivos».[5]
Desta forma, «onde a transição possui uma autonomia própria» constitui-se «um
sistema secundário inserido no todo cerimonial.»[6] A
cerimónia (o programa) transforma-se num estado.
Este aspecto foi acentuado pelo
antropólogo britânico Victor Turner (1920-1983). Na sua obra The Ritual Process, de 1969, ele
considerou o período liminar dos ritos de passagem como uma entidade com autonomia
suficiente para se constituir em formação social, caso das comunidades
utópicas, como a dos hippies nos
Estados Unidos nos anos '60, ou de ordens religiosas como os franciscanos. Essa
transição, a liminaridade, acentua-se nas sociedades complexas.[7] Para
Turner, o ritual deve ser visto mais como um processo do que um produto, o que é, para Horace Newcomb e Paul M. Hirsch, uma
«noção raramente aplicada ao estudo da televisão e, no entanto, crucial para
uma compreensão adequada deste medium.»[8]
Segundo Turner, a liminaridade tem
propriedades diferentes, ou mesmo contrárias, às do sistema estrutural habitual
da sociedade, que se podem ordenar em oposições ou discriminações binárias.[9] À
lista, na ordem apresentada por Turner, acrescentou-se aqui o itálico para
realçar as oposições que mais se manifestam nos reality shows com
características de liminaridade:
Transição/estado
Totalidade/parcialidade
Homogeneidade/heterogeneidade
Communitas/estrutura
Igualdade/desigualdade
Anonimato/sistemas de nomenclatura
Ausência de propriedade/propriedade
Ausência de estatuto/estatuto
Nudez ou uniforme/distinções de roupa
Continência sexual/sexualidade
Minimização de distinções
sexuais/maximização de distinções sexuais
Ausência de categorias
sociais/categorias sociais
Humildade/justo orgulho de posição
Desatenção à aparência
pessoal/cuidados com a aparência pessoal
Nenhuma distinção de
riqueza/distinções de riqueza
Altruísmo/egoísmo
Obediência total/obediência apenas à
categoria superior
Sagrado/secularidade
Instrução sagrada/conhecimento
técnico
Silêncio/discurso
Suspensão de direitos e obrigações de
família/direitos e obrigações de família
Referência contínua a poderes
místicos/referência intermitente a poderes místicos
Tolice/sagacidade
A estas oposições podemos acrescentar
a seguinte:
O que desde logo distingue os reality shows como o Big Brother
das sociedades de liminaridade descritas
por Turner é precisamente o facto de, ao contrário dos noviços que pretendem
entrar numa sociedade igualitária, os candidatos dos concursos se submeterem às
características do período de transição precisamente para poderem deixá-las e
melhorarem a sua posição social no exterior, por exemplo quanto à ausência de
propriedade e de distinções de riqueza. A própria evolução do jogo se destina a
fazer desaparecer o anonimato inicial dos noviços e a sua igualdade ritual,
singularizando-os nas suas características próprias, aquelas que farão a
sociedade exprimir-se sobre a sua presença ou expulsão do território ritual. O Big Brother é, assim um rito de passagem
que acentua o desejo de afirmação do indivíduo na sociedade capitalista, de
integração como vencedor, o que é o avesso das communitas descritas por Turner.
O que atrai da teoria de Turner neste
contexto é, pois, a valorização da autonomia do período de transição, o que
reforça a qualificação dos reality shows, pelo menos de alguns deles, como
ritos de transição. Os reality shows
são precisamente períodos de transição inventados
para existirem como tal. E, o que é importante, permitem à sociedade que neles
se revê sair de si e debater,
defender ou pôr em causa alguns dos seus valores comuns, incorporando depois os
resultados desse debate. O rito funciona assim, tal como a arte, como uma
metalinguagem, «uma forma de compreendermos quem e o que somos, como se ajustam
os valores e as atitudes, como os significados se modificam.»[11]
A essência da liminaridade, escreveu
Turner, «encontra-se na sua libertação dos constrangimentos normais, tornando
possível a desconstrução das construções ‘desinteressantes’ do senso comum, o
‘sem sentido da vida quotidiana’ (...) em unidades culturais que podem então
ser reconstruídas em maneiras novas, algumas delas bizarras ao ponto da
monstruosidade. (...)A liminaridade é o domínio do ‘interessante’ ou do ‘senso
incomum’.»[12]
É também importante para este
argumento a relação que Turner estabelece entre a liminaridade e os extractos
sociais inferiores da sociedade. Enquanto rito de passagem, o Big Brother, com o seu período longo de
liminaridade (quatro meses na sociedade contemporânea é um período longo),
criado para permitir a transição a um estado social superior, dada a
identificação correcta de «ser-se conhecido» com oportunidades de acumulação de
riqueza, destina-se aos despossuídos de riqueza e de posição social. Nisso,
também, se assemelha a manifestações de liminaridade a que Victor Turner chama
«'os poderes dos fracos' ou, por outras palavras, os atributos sagrados em
permanência ou transitoriamente do baixo estatuto ou posição.»[13] O
Big Brother, bem como os outros ritos
televisivos de transição para a aristocracia da sociedade do espectáculo, é um
programa para os novos pobres, os pobres da sociedade do espectáculo: os
despossuídos de dinheiro, de direito à palavra e de imagem publicamente
partilhada e admirada. Faz parte do rito que toda a sociedade dê atenção aos
iniciados marcados pelo seu baixo estatuto ou posição.
A chamada de atenção de van Gennep
para a autonomia das cerimónias rituais e o desenvolvimento que Victor Turner
atribuiu a esse período intermédio permitem enquadrar a importância que o Big Brother e outros reality shows ou reality games adquirem, aparentemente surgindo do nada e
aparentemente desligados da realidade social profunda.
Mas, afinal, não poderia deixar de
ser assim com o Big Brother porque
ele é um programa de televisão e porque lhe cabia instituir o rito de passagem, instituir
a transição, ou a sua representação, transição que a sociedade parecia exigir
para dar aos seus filhos anónimos a possibilidade de acederem ao mundo
maravilhoso da aristocracia da sociedade do espectáculo.
Julho de 2002
Eduardo Cintra Torres
[3]
Utilizo a expressão «sociedade do espectáculo»
neste e noutros artigos com o significado que lhe deu Guy Debord em La Société du spectacle (1967), Paris,
Gallimard, 1992 e em Commentaires sur la
société du spectacle (1988), Paris, Gallimard, 1992.
[4]
Seria interessante investigar as relações entre os vários programas da Endemol,
criados por ou sob a orientação de Jon de Mol, e estabelecer os contactos entre
si e entre cada um dos ritos e os ritos de passagem tal como classificados por
van Gennep.
[6] Ibidem, p.185. Mais à frente, van Gennep
reafirma ainda um ponto até então ignorado: «a existência de períodos
transitórios que às vezes adquirem uma certa autonomia.» (p.191)
[7]
Numa sociedade complexa, o Big Brother
dificilmente se poderia constituir como fenómeno da sociedade inteira, como
seria uma rito de passagem numa «sociedade primitiva», mas apresenta-se como
tal na linguagem e na estrutura, sendo tomado como tal por uma grande parte da
sociedade. É, aliás, a fundamentação antropológica do programa (chamemos-lhe
assim) que explica a sua solução estrutural e, também, a sua solução estética.
[8] Newcomb, Horace, e Hirsch, Paul M.,
«Television as a Cultural Forum», in Newcomb, Horace (ed.), Television: the Critical View (2000),
New York, Oxford University Press, 6ª ed., p.563.
[12] Turner, Victor, «Process, System, and Symbol:
a New Anthropological Synthesis», Daedalus
(Summer 1977), p.68, in Newcomb e Hirsch, artigo citado, p.563.