Em 1989 escrevi um
livro intitulado História e Ideologia, com base em textos que havia
publicado ao longo de vários anos. Tentei mostrar que uma coisa é a História
como ciência, que procura objectivamente interpretar de todos os ângulos e com
todas as fontes possíveis o que se passou e vai passando, e outra a Memória que
vai surgindo, mais ou menos espontaneamente ou em função de ideologias
organizadas, e cuja “legitimidade histórica” (para empregar uma expressão de
Marc Ferro) vai variando à medida que se altera a visão do mundo. Daí mudarem
as interpretações dos factos ou os nomes das ruas, de praças, pontes ou
instituições, surgirem e derrubarem-se estátuas…
O que hoje é digno de
glorificação, amanhã não será. O que hoje é esquecido, amanhã pode ser louvado.
Neste mundo de (des)informação — devido por vezes ao excesso de informação
superficial — basta dizer para crer. Assim, surgem nos periódicos e nas redes
sociais — a par de textos de jornalistas, de historiadores e de outra gente da
escrita, feitos com muita serenidade — artigos e opiniões que enchem de crenças
ou de dúvidas quem os lê, sem se procurar saber até onde chegou o conhecimento
histórico da realidade.
O homicídio do afro-americano
George Floyd pela polícia de Mineápolis desencadeou uma onda de
legítimo anti-racismo que devia ser controlado pela posição correcta e
objectiva dos poderes políticos, da ciência e da civilidade, e não aproveitado
abusivamente por ideologias. E o certo é que esse anti-racismo militante, por
vezes tão primário como o próprio racismo, extravasa o universo em que se
formou, atingindo vários países, inclusivamente Portugal, onde cada um se
esforça por dizer o que pensa e o que sente, sem analisar calma e profundamente
os factos. Assim, chegou-se a atentar contra a estátua (com certeza de uma
estética mais que discutível) de um dos nossos maiores escritores e oradores e
homem de rara coragem cívica, o Padre António Vieira,
sem que alguma vez se tentasse perguntar a alguém que estude cientificamente
história da cultura e história política o que se pode concluir do pensamento e da prática deste
jesuíta do século XVII.
O que parece a alguns
ser prioritário é vandalizar, como se estivéssemos no tempo dos iconoclastas
que, de resto, aparecem em todas as épocas e com todas as ideologias, motivados
não por ideias bem assentes mas por paixões incontroláveis. Qualquer estudioso
de Vieira saberia dizer que este lutou pelos índios, pelos cristãos-novos e
pelos judeus, mas não se encontrava ainda na época própria para defender com o
mesmo denodo os negros escravos do Brasil, embora em seus sermões, nas igrejas
do Rosário dos Pretos, aludisse à forma desumana com que eram tratados pelos
colonos, com quem teve pugnas constantes, tentando mostrar a esses infelizes
que ao menos eram senhores da sua alma que — como era próprio da crença
católica do tempo — seria salva pela sua fé. Só por isso se deve vandalizar as
estátuas de Vieira? E como é que isso contribui para a luta contra o racismo,
que deve ser uma ideia e uma prática firmes, assumidas diariamente, assim como
a luta pelo humanismo, em geral esquecida neste mundo de concorrência e de
consumismo? Se tal sucedesse, há muito teríamos mais negros, ciganos e gente de
todas as etnias nas escolas, como alunos e professores, nas profissões mais bem
pagas, nos parlamentos ou nos governos, e menos a viver nos novos “bairros da
lata”, onde se desenvolvem situações de violência, que a polícia deveria, em
regra, saber controlar (o que por vezes consegue), se tivesse meios e
preparação para o fazer.
A nossa forma de
alterar o cenário político e social — em Portugal e em outros países — foi, em
certos casos, meramente formal e em resultado das paixões do momento. Assim,
por exemplo, criaram-se, mudaram-se ou apagaram-se nomes, construíram-se e
derrubaram-se estátuas e outros símbolos de memória, sem muitas vezes saber
porquê, em lugar de se assumir a História e tentar por meios estruturais
alterar a ordem das coisas. Seria este — a meu ver — o modo mais certo de não
apagar a História (ou a Memória, como por vezes se diz) e de tentar mudá-la
para melhor, em benefício de todos os homens.
Não volto a discutir
assuntos que já estão gastos sem verdadeiramente se terem debatido. Mas recordo
ainda uma experiência pessoal e deixo uma breve consideração de ordem
científica e cultural.
Há algum tempo
perguntaram-me se a minha Universidade deveria retirar o título de doutor honoris
causa a Francisco Franco, que lhe foi concedido em 1949, tal como fez
a Universidade Santiago de Compostela. A minha resposta imediata foi “não”,
pois a História não se apaga, mas explica-se e compreende-se criticamente. O
mesmo terá considerado a Universidade de Oxford, que em 1941 concedeu o título
a Salazar. E, quanto à questão fundamental do racismo, julgo que Portugal, como
país que teve um “Império Colonial” até 1974 (com uma falsa tentativa
desesperada para alterar legalmente o seu estatuto, sobretudo a partir dos anos
50 e 60, sem com isso deixar de sentir uma guerra que se prolongou por mais de
uma década), deveria contribuir — dando colaboração aos investigadores
autóctones — com os seus historiadores, os seus antropólogos, os seus
sociólogos… para melhor conhecer a realidade dos países de língua oficial
portuguesa, quer na sua perpectiva colonial, quer na perspectiva
anticolonialista. É que sem isso não será possível conhecer a sua história de
hoje, cheia de contradições e dificuldades. E essa realidade não se conhece
apenas nas bibliotecas e arquivos, mas nos próprios espaços, no íntimo da
complexidade das suas geografias, das suas sociedades e das suas culturas.
Também assim se conheceriam melhor os seus exilados ou aqueles que, vindos de
África, como de outros continentes, escolheram Portugal para viver.
Não sei se por cá há
mais ou menos racismo do que noutros países — houve seguramente (a meu ver)
menos anti-semitismo, depois de derrubado o monstro da Inquisição —, mas o
que importa é contribuir de forma autêntica, e não através de falsos combates,
para que ele desapareça, em todas as formas que subsiste. E são muitas, com
certeza.
Luís Reis Torgal
(saído no jornal
Público, pulbicado no Malomil por cortesia do autor,
a quem se agradece)