Vergonha na cara, ou falta dela.





 

Perante este massacre, o Sr. Presidente da Fencaça, mudando radicalmente a opinião avançada há dois meses, diz agora que não se tratou de uma «caçada», mas, pasme-se, de uma «correcção de densidade». (aqui)

A explicação é simples: como foram abatidos 600 hectares de floresta para construir um parque fotovoltaico, os animais ficaram sem abrigo. Logo, havia que matá-los ou, melhor dito, «corrigir a sua densidade».

Resta saber como foi possível, numa propriedade de 1200 hectares, autorizar a destruição de 600 hectares do seu arvoredo.

E, já agora, porque foram chamados caçadores espanhóis para «corrigir a densidade».

E, sendo obrigatório apor um selo por cada animal morto numa montaria, como é possível a proprietária do terreno dizer que emitiu apenas 40 selos, as autoridades terem encontrado 270 canhotos de selos na herdade e, no final, terem sido mortos 540 animais. De 40 para 540 há uma diferença, não? Como a explica o senhor Amaro?

Ao vir agora defender esta matança, Jacinto Amaro, presidente da Fencaça, além de se cobrir de ridículo, acaba por confessar o óbvio: foi a delegação de Évora da Fencaça (a organização de que ele é presidente há 29 anos) que emitiu as licenças para os 16 caçadores espanhóis poderem caçar em Portugal.

Não lhe ocorre que, perante este grotesco e pornográfico conflito de interesses, o melhor seria ter estado calado? Não lhe ocorre que, com isso, mancha de forma indelével a imagem da caça e dos caçadores portugueses, que é suposto representar?

Uma falta de vergonha completa.









quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Aaaaa… Michurin!




A valsinha nada tem de primaveril e a Primavera ainda está longe. Se lhe fosse acrescentado um ponto de exclamação ao nome, soaria até como um espirro: “Michurin”! Mesmo assim, quer-me parecer que só nasceu para sacudir a letargia de jardins de fim de Inverno, seja a invernia em sentido literal ou figurado -- e a letargia, a do corpo ou a do espírito.  

O que é certo é que Dimitri Chostakovitch a compôs para um filme com jardins em paragens frias. Mais exatamente, sobre alguém que fez nascer jardins -- muitos jardins -- em sítios frios: Michurin. Ivan Vladimirovich Michurin, jardineiro, hortelão, colecionador de plantas e grande agrónomo autodidata.

Tão grande que recebeu convites para ir vicejar na América, mas preferiu continuar plantado na Rússia dos Czares, tão hostil às suas ideias. Lá perseverou e hoje, pelo mundo fora, há jardins comunitários com o seu nome.

O jardinzinho que começou por criar na sua cidade natal, esse, foi crescendo até se transformar num portentoso horto público.

Há histórias assim. E música a condizer com elas.




Manuela Ivone Cunha

 

 


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O Príncipe Maquiavélico?


 




“Todos vêem o que tu aparentas ser, poucos sabem realmente aquilo que tu és;

e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos.”

Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Capítulo XVIII, 1532

 

No 40.º aniversário do noivado de Carlos de Inglaterra

e Diana Spencer, a 24 de Fevereiro de 1981.

 



Numa recente visita virtual à KPMG para assinalar os 150 anos da empresa, a Rainha Isabel II falou através de uma plataforma electrónica com sócios e funcionários. Entre eles estava John McCalla-Leacy, ex-atleta olímpico, sócio da KPMG e o primeiro negro a chegar ao Conselho de Administração da empresa.

 

Nascido em Londres, filho de pais jamaicanos, cresceu num típico bairro operário com um ambiente duro. Durante a conversa, John McCalla-Leacy pediu à Rainha para transmitir o seu agradecimento ao Príncipe de Gales pela oportunidade que, através da sua fundação The Prince’s Trust, recebeu enquanto jovem e que lhe permitiu encontrar novos horizontes e chegar onde chegou.

 



 

Isabel II realçou o orgulho que o Príncipe de Gales tem na The Prince’s Trust, uma organização que ao longo da sua história de quase 45 anos ajudou centenas de milhares de jovens de ambientes desfavorecidos a encontrar a sua oportunidade de mobilidade social, de fazer com que o elevador social funcione.

 

Já há dois anos, a longeva Rainha, sublinhando o privilégio de qualquer mãe fazer um brinde nos 70 anos do filho, lhe fez o rasgado elogio de o considerar capaz de ombrear com qualquer herdeiro do trono da história, “um campeão da conservação das artes, um grande líder da caridade (...), entusiasta e criativo”.

 

Contudo, poucas pessoas associarão o Príncipe de Gales com estas características ou com estes elogios ou, sobretudo, com o extraordinário serviço que vem prestando ao longo dos anos, tal é a força mediática que consistentemente o oblitera, em detrimento dos revezes da sua vida matrimonial ou das roupas usadas pela sua mulher ou pelas suas noras.

 

O Príncipe de Gales será uma vítima precoce da ‘cancel culture’, destinado a ver vilipendiado nos média e nas redes sociais, diga o que diga – ainda que diga o que está certo.

 

* * *

 

Quando Nicolau Maquiavel escreveu O Príncipe, a obra que perpetuou o seu nome enquanto autor mas sobretudo enquanto adjectivo para qualificar a perfídia e a falta de princípios, já Henrique VIII reinava em Inglaterra com Catarina de Aragão, a primeira das suas seis mulheres, a seu lado.

 

Notável pela brutalidade da sua análise e pela forma crua como subjuga princípios morais à concretização dos objectivos de poder, O Príncipe parece falhar na previsão da importância da vida matrimonial dos príncipes na manutenção desse poder. Tivesse Maquiavel vivido mais vinte anos e faria certamente uma adenda às edições subsequentes.

 

De facto, de Henrique VIII e memória colectiva retém pouco mais que a mnemónica “divorced, beheaded, died, divorced, beheaded, survived” para memorizar a sequência prodigiosa de mulheres com que tentou, sem sucesso a longo prazo, perpetuar nos seus descendentes a linhagem dos Tudor.

 

Pouco importam os seus grandes feitos políticos e as suas notáveis vitórias diplomáticas. Foi, para memória futura, o rei obeso que, para se divorciar, originou uma cisão na Igreja que dura até aos nossos dias e que tratou cruelmente seis rainhas, sempre em busca de um herdeiro.

 

O actual Príncipe de Gales parece estar há mais de 30 anos enredado em problema semelhante: tudo o que faz de bem parece evaporar-se da memória colectiva. A menção do seu nome desperta nas pessoas apenas a reacção às suas desventuras matrimoniais. A quarta temporada da série The Crown, da Netflix, abusa dessa imagem, inventando e distorcendo factos sem pudor, nem piedade. De tão bem feita que está, os espectadores facilmente esquecem que estão a ver uma ficção, ainda por cima muito parcial.

 

Ao longo dos episódios é-nos mostrado um príncipe que apenas se incomoda com a sua mulher, sem que se lhe veja qualquer acção positiva – num contraste com o Carlos da temporada anterior, preocupado em sublinhar a sua identidade e em vincar diferenças com uma instituição que é mostrada com algum do seu arcaísmo. Sobretudo, num contraste absurdo com a realidade.

 

É inequívoco que as questões matrimoniais foram, ao longo dos séculos, fundamentais para a realeza – e para as nações. O Padre António Vieira sintetizou-o de forma crua ao dizer que “reino sem sucessor é despojo”, no sermão que pregou pelo nascimento da Infanta D. Isabel Luísa Josefa, futura Princesa da Beira, filha de D. Pedro II, então Príncipe Regente, e da sua primeira mulher.  

 

A escolha de uma futura rainha (ou de um sogro poderoso) foi uma arma política importantíssima desde os alvores das monarquias como as conhecemos. Até meados do século XX, a escolha de uma consorte foi condicionada por factores políticos ou dinásticos, e eram, nas dinastias reinantes, verdadeiras decisões de Estado.

 

Muito embora tenha perdido a importância para a sobrevivência das nações a que o Pe. António Vieira aludia no seu sermão, a vida matrimonial do príncipe, do rei, terá sempre relevância constitucional e dinástica, seja pela posição que  tributo  de Inglaterra  assiste nas rr, preocupado em sublinhar a sua identidader a sua oportunidade de fazerr o à consorte estará destinada, seja pelo objectivo habitualmente subjacente ao casamento de um herdeiro, que é o de garantir a sucessão e a continuidade da Casa.

 

Não deixa de ser uma ironia que, quando perdeu boa parte a relevância para a sobrevivência do Estado, seja uma questão matrimonial a pairar de forma tão persistente como avassaladora sobre um reinado por começar.

 

Manifestamente prejudicado pela preponderância que a percepção da sua vida pessoal assumiu na opinião pública, o desempenho de Carlos enquanto herdeiro do trono – uma posição difícil, de esperar, pacientemente e certamente sem nunca o desejar, que a mãe morra, para se cumprir o destino que lhe estava reservado quando veio ao mundo – é totalmente ignorado. E, no entanto, destaca-se pelo acerto das causas que abraçou.

 

* * *

 

Mobilidade Social, Ambiente e Arquitectura serão os temas mais marcantes da acção desenvolvida pelo Príncipe de Gales desde que, tendo completado a sua educação universitária e militar, se estabeleceu como herdeiro do trono a tempo inteiro, há bem mais de 40 anos.

 

Com cerca de 7.400 libras esterlinas da indemnização que recebeu ao sair da Marinha, fundou a The Prince’s Trust, ou Fundação do Príncipe, porventura a sua mais notável criação. Através de uma rede de micro projectos e de ligações a empresas, constituiu uma rede para apoiar a formação e a empregabilidade de jovens oriundos de ambientes desfavorecidos.

 

Quase um milhão de jovens terão sido ajudados ao longo de quatro décadas, com um impacto económico enorme mas sobretudo com uma relevância social incalculável, através de apoio financeiro de talentos e de start-ups, de formação, de estágios.

 

São muitos os testemunhos de pessoas que, ao longo destes 40 anos, foram ajudados pela Fundação do Príncipe. De actores a músicos, passando por empresários que começaram com um apoio de 1000 libras da Fundação e acabaram a facturar 30 milhões anuais e a chegar à direcção de design da Coca-Cola.

 



Consciente do impacto da pandemia nos mais jovens, nos mais desfavorecidos e também nas instituições que vivem da angariação de fundos para os ajudarem, o Príncipe de Gales tem-se empenhado em encontrar novas formas de angariar fundos para o que o trabalho notável da sua organização não seja travado pelo Covid-19 e “a crise não defina as oportunidades de uma geração”.

 

Num vídeo publicado em Junho de 2020 refere o desafio de vencer em tempos do caos e da desordem económica, mas que “foi por isso que a minha Fundação foi fundada, para ajudar pessoas para um futuro melhor”. Mais do que boas intenções, a Fundação tem resultados concretos para apresentar.

 

Será porventura no Ambiente que a intervenção de Carlos de Inglaterra é mais constante ao longo do tempo. As primeiras intervenções sobre o assunto remontam ao início dos anos 70, quando o plástico ainda parecia a última maravilha e ninguém conseguiria convencer o mundo ‘moderno e promissor’ dos riscos que a poluição representava.

 

Ainda recentemente, falando com evidente paixão e conhecimento de causa, o Príncipe de Gales lançou mais uma iniciativa para sensibilizar o mundo para necessidade de para a destruição da natureza com efeitos permanentes, pondo em causa o futuro dos nossos filhos e netos. Mais do que alertar, a iniciativa pretende, sector a sector, analisar de forma concreta a forma como se pode descarbonizar a indústria e torná-la mais sustentável e amiga do ambiente.

 


 

Durante a polémica visita do polémico Presidente Trump a Londres em 2019, confrontou-o com o seu negacionismo das alterações climáticas, apelando à mudança de posição, mesmo sabendo de antemão a parede que tinha diante dele. Já este ano, representou o Reino Unido na cimeira virtual pelo ambiente que o Presidente Macron organizou e quase todos os meses incentiva os ingleses a fazerem algo positivo a pensar no Mundo em que vivemos.

 

A intervenção de Carlos de Inglaterra nos diferentes domínios e não apenas nos enumerados, mereceria uma análise mais exaustiva, que desiludiria porventura os que procuram o brilho de diamantes e de lantejoulas, mas que elucidaria sobre a utilidade, no século XXI, da Monarquia britânica.

 

* * *

 

Maquiavel sublimou a imoralidade ao subjugar os princípios para privilegiar os fins, que tudo justificavam. O autor de O Príncipe defende a dissimulação, a mentira, a aparência, até evitar as boas obras – tudo como forma de manter o poder. Carlos de Inglaterra parece ter feito o contrário.

 

Escolheu admitir os seus erros privados em público. Quando podia ter esperado numa quietude cómoda, decidiu intervir. Fê-lo em nome dos princípios que considera relevantes para a sociedade – mesmo quando (ou sobretudo quando) a maioria, a opinião pública e a opinião publicada, vão em sentido contrário. O que é meio caminho andado para a impopularidade e para se tornar alvo do que se veio a designar a ‘cancel culture’.

 

Passou por defensor lunático do ambiente, quando ninguém via o ambiente em perigo. E, no entanto, há registos do Príncipe, há 50 anos!, a alertar para o perigo que os plásticos representavam para os oceanos.

 

Passou por retrógrado quando ainda nos anos 70 se insurgiu contra a destruição da construção tradicional e a devastação do campo britânico para construir bairros descaracterizados, sem alma e insustentáveis. E, no entanto, a realidade tem vindo a dar-lhe razão, com o abandono sistemático de prédios e bairros construídos nessa época ou com a constatação de que se transformaram em locais nada aconselháveis.

 

Escreveu a ministros e a Primeiros-Ministros, procurando usar a sua influência para mudar decisões que considerava erradas. Sucessivos governantes, especialmente trabalhistas, queixaram-se desse método de agir na margem (ou no vazio) da constitucionalidade – chegando a questionar no Parlamento o direito de o Príncipe fazer essa ‘pressão’.

 

O The Guardian, sempre muito pouco monárquico, procurou ter acesso aos memorandos que acabaram conhecidos por “Black Spider memos” e que, na opinião de alguns, mostravam um Príncipe a ultrapassar as barreiras constitucionais de intervenção nos assuntos de governação.

 

Os documentos acabaram por ser divulgados por ordem judicial e mostravam uma enorme latitude de intervenção política, mas sobretudo o entusiasmo que Carlos de Inglaterra colocava na defesa dos assuntos que abordava. A questão tornou-se de tal forma relevante que há dois anos o Príncipe teve de esclarecer que, enquanto rei, não actuaria da mesma forma.

 

* * *

 

A longuíssima era isabelina que a Inglaterra vive desde 1952 é inédita por muitos motivos. Não é apenas o reinado mais longo de sempre, assistindo sob o peso de uma mesma coroa à passagem solene de primeiros-ministros, papas e presidentes. É também aquele que é sujeito a um escrutínio mais exigente, não apenas da soberana, mas de toda a sua família, de cada gesto privado e público.

 

Se é verdade que o poder de Isabel I de Inglaterra (r. 1558-1603) era bastante maior do que o da sua homónima, não é menos verdade que as mudanças sociais, políticas, religiosas e tecnológicas nunca foram tão profundas como no actual reinado. O reinado que se segue começará num mundo radicalmente diferente daquele, ainda reverencial, que viu uma jovem de 26 anos tornar-se Rainha de Inglaterra.

 

Em  1992, para comemorar os seus 40 anos de reinado e num momento de enorme fragilidade pessoal, Isabel II pronunciou aquele que é certamente um dos mais relevantes discursos da sua vida. Para a história ficou conhecido como o discurso do “annus horribilis”, mas é na reflexão da Rainha sobre a importância do decurso do tempo e da retrospectiva no julgamento dos acontecimentos, que está a parte fundamental.

 

Usando palavras que pareciam ecoar as de Cristo – «Quem de vós estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra!» (Jo 8, 7) – Isabel II pediu compaixão, tolerância e gentileza, ainda que reconhecendo a necessidade de mudança e de adaptação de todas as instituições, incluindo o Monarca.

 

É inequívoco que a Monarquia tem procurado adaptar-se às novas circunstâncias – para permanecer relevante e útil a uma sociedade em que muitos procuram mostrá-la como desajustada.

 

O Príncipe de Gales tem sido o líder desse objectivo de modernização e de adaptação à nova realidade, como qualquer análise séria e descomprometida permitirá verificar. Tem-no feito, contudo, sem evitar os temas difíceis.

 

A utilidade que procurou dar ao lugar que ocupa foi a resposta a um certo vazio funcional da sua posição. Sem fazer sombra à Soberana, procurar servir o povo britânico e cumprir a divisa que acompanha o seu título: Ich dien (Eu sirvo). Maquiavel ficaria desiludido.

 

Ademar Vala Marques







segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O pianista Sequeira Costa (1929-2019) e reminiscências musicais.

 




Pela segunda semana do meu primeiro ano de seminário, fui um dos quatro ou cinco seleccionados, entre uns oitenta e tal alunos, aproximadamente, todos primeiranistas, para aprender a tocar piano, a fim de a Congregação Salesiana poder contar sempre com um número razoável de clérigos, padres e coadjutores devidamente habilitados para desempenharem o importante e nobre papel de futuros mestres de canto coral, de mestres de banda, de pianistas, de organistas e de professores de música nos seminários menores e maiores e nos colégios.

Como a frequência de qualquer conservatório estava fora de questão, para evitar, a todo o custo, por princípio e tradição, expor os futuros mestres e professores aos meios mundanos, supostamente perniciosos à sagrada vocação religiosa, não é preciso dizer que, salvo raríssimas excepções, a competência dos mestres e professores de música era de uma mediocridade gritante e confrangedora.

A referência às “raríssimas excepções” baseia-se no facto de, por um feliz acaso, aparecer, lá muito de longe em longe, uma rara avis, quer dizer, um seminarista com dotes tão extraordinários para a música e por ela tão apaixonado, que, por si só, num golpe de auto-didactismo exemplar e quase miraculoso, conseguia aprender a tocar plausivelmente bem os instrumentos musicais, tais como o piano e o órgão, e aprender os princípios fundamentais da composição, a ponto de vir a ser capaz, não só de fazer arranjos musicais, tais como transformar um canto a uma voz num canto a duas, três ou quatro vozes, ou transformar um acompanhamento difícil num acompanhamento fácil, mas até de ser capaz de compor uma peça de música original.

Perante essa vocação para a mediocridade, por parte da instituição religiosa, chegou o momento em que dois dos cinco seminaristas, já estudantes do primeiro ano de Filosofia (1952-53), literalmente envergonhados da triste figura que faziam quando eram obrigados a acompanhar ao órgão as missas destinadas a um público em que certamente havia fiéis com elevada formação musical e habituados a assistir à ópera, a recitais ou a concertos dados por grandes músicos profissionais, dois dos cinco seminaristas (os outros três tinham voltado para a ... mais apetitosa vida do século), repito, encheram-se de coragem e fizeram ver ao padre superior do seminário maior – Instituto Filosófico Salesiano do Estoril - que, uma vez que não os deixavam frequentar o conservatório, pelo menos lhes contratassem um competente professor de piano que lhes desse uma ou duas lições semanais. Advogaram tão vigorosamente a sua causa, que o padre superior, embora com certa relutância, decidiu contratar um professor de piano, digno de tal nome.

Chamava-se Doria Meunier; era de origem francesa; e era um estupendo pianista, de cujo currículo constava que tinha sido, durante vários anos, pianista do transatlântico português Santa Maria e que muitos dos seus concertos eram transmitidos pela Emissora Nacional, a que nós, seminaristas, raramente tínhamos acesso, e, sempre que isso acontecia, era com o beneplácito expresso dos superiores e sob a sua superior supervisão. Porém, manda a verdade que se diga que, como professor de piano, Doria Meunier era a incompetência em pessoa.

A ver se me explico por meio de exemplos. Chega a primeira aula de piano e que faz o professor Meunier? Senta-se ao piano e diz-nos que reparemos como ele executa a célebre Marcha Fúnebre de Chopin. Quase transfigurado, como muitos dos artistas possuídos do daimon de Sócrates, de que fala o divino Platão, toca essa sublime sonata, totalmente de cor, e no fim, a suar por todos os poros, enquanto limpa o rosto a um lenço vermelho, pede-nos os aplausos que nós ambos, como qualquer apreciador normal, não lhe podíamos regatear.

Feito um breve intervalo, para repouso do artista, pede-nos que reparemos se a peça que ele vai executar não é obra de outro génio da música. E, proferidas estas palavras, executa, com o mesmo furor daimónico, a Appassionata de Beethoven, sem sequer abrir a partitura. Entusiasticamente aplaudido por nós, que fez ele, após uns minutos de descanso? Quando imaginávamos que nos ia mandar sentar ao piano, um após outro, e nos fazia tocar um ou dois exercícios de Czerny e um ou dois andamentos das Sonatinas de Clementi ou de Kuhlau, para verificar a posição dos dedos, por exemplo, e para avaliar o nosso nível musical, como aprendizes de piano, que é que fez o nosso indigitado mestre de piano? A propósito da famosa sonata de Beethoven que ele acabara de tocar magistralmente, falou-nos, em bastante pormenor, com visível entusiasmo, de um jovem músico português, menino-prodígio, chamado Sequeira Costa, o qual, em plena adolescência, cometera a proeza de dar um recital de piano em que executou de cor todas as sonatas de Beethoven, o que lhe valera a recepção de um prémio muito especial e a fama imediata.

Depois de nos maravilhar e de nos deixar embasbacados e deslumbrados com a narração dos êxitos fulgurantes e retumbantes desse pianista prodigioso que, desde criança, demonstrara um talento tão extraordinário para o piano, que, aos oito anos de idade, deixou Luanda, onde nascera, em 1929, para ir para Lisboa estudar com o famoso pianista e mestre Vianna da Motta, o nosso novo professor de piano, executou, com o maior vigor e brilhantismo, a Polonaise Heróica de Chopin e deu por finda a lição.

Daí a dias, Doria Meunier voltou para nos dar uma segunda lição de piano, sensivelmente nos moldes em que nos dera a primeira. Tocou ele e nós não tivemos outro remédio senão ouvi-lo e aplaudi-lo. A partir desse momento, o nosso famoso e putativo professor de piano passou a mandar-nos um filho dele, o qual pouco mais sabia que nós e, quanto a competência didáctica, era mais ou menos o retrato do pai, fazendo jus ao velho adágio: tal pai, tal filho.

Quando o Padre Director nos perguntou, passado algum tempo, se gostávamos do professor de piano, tivemos que lhe confessar, com toda a sinceridade, que sim e que não. Convidados a explicar-lhe esse aparente paradoxo, não tivemos outro remédio senão fazê-lo. Perante esse facto, o Padre Director apenas nos disse que a Ordem era pobre e que não dispunha de dinheiro para gastar com professores desses: que nos contentássemos com a prata da casa, isto é, com o professor que tínhamos, o qual não passava de um pobre amador, mas que tinha competência suficiente para nos ensinar o indispensável, garantia ele a pés juntos, a fim de podermos acompanhar, atabalhoadamente, ao órgão as missas cantadas e acompanhar ao piano os cantos e as operetas, por ocasião das muitas festas em que a Congregação Salesiana era pródiga.

Conclusão. Para nossa frustração e tristeza, a nossa modesta e legítima aspiração a uma formação pianística elementar não encontrou quem podia e devia remediá-la.

Voltando ao grande pianista português Sequeira Costa, vou contar brevemente o que aconteceu em 1981. Ocupando, desde 1976, o prestigioso cargo de Cordelia Browm Murphy Distinguesd Professor of Piano na Universidade de Kansas, em Lawrence, tendo renome internacional e tendo dado concertos de piano a solo e concertos com grandes orquestras através do mundo e nas salas de música mais célebres, em Fevereiro de 1981 pôde finalmente realizar um dos seus sonhos, que é o de todos os grandes pianistas do mundo inteiro. Com o patrocínio do Consulado-Geral de Portugal de Nova Iorque, da Câmara do Comércio Luso-Americana da mesma cidade e da Fundação Calouste Gulbenkian, Sequeira Costa deu um concerto de piano a solo na lendária Carnegie Hall de Nova Iorque.

           Não é necessário dizer que, tal como outros carolas de outros estados próximos de Nova Iorque, com a velha Pátria sempre na mente e no coração, o Cônsul Honorário de Portugal em Connecticut e o abaixo-assinado fizeram o máximo de publicidade entre a vasta comunidade luso-americana para levar um bom contingente de espectadores a esse auspicioso concerto. Além da publicidade feita, eu, por exemplo, por minha parte, orgulhoso por poder mostrar à América que em Portugal também havia grandes pianistas e se fazia, embora em tom menor, alta cultura musical, convidei quatro casais amigos, da minha universidade, sabendo de antemão, por experiência própria, que todos tinham considerável formação musical e apreciavam a grande música romântica, especialidade de Sequeira Costa.  

          Para minha desagradável surpresa, eterno optimista, a celebérrima Carnegie Hall estava muito longe da enchente esperada.

         Como é natural, o pianista esteve à altura do prestígio de que gozava através do mundo, ou, como diria o meu amigo Manuel Gaspar, não deixou os seus pergaminhos por mãos alheias. Entretanto, quando, na manhã do dia seguinte, abro o New York Times para ler a recensão da praxe, venho a encontrá-la, escondida e envergonhada, no fundo de uma página, na secção das Artes, reduzida a umas magras linhas em que apenas era posta em destaque a curiosa peça que o célebre pianista português tocara como brinde, ou “encore”: uma sonata do compositor português João Domingos Bomtempo (1775-1842), lamentavelmente desconhecido do público americano e, muito provavelmente, do crítico musical do New York Times.

            Ao chamar a atenção da Jane e George Reinhardt, dois dos meus oito convidados e ambos competentes musicólogos, para essa modestíssima recensão, apressaram-se a dizer, em uníssono, que outra coisa não era de esperar, dado o reportório que o pianista português escolhera, abrindo o concerto com a Appassionata de Beethoven e prosseguindo com as peças mais frequentemente executadas pelos mais célebres intérpretes da música romântica para piano. Que essas icónicas peças as tinham visto os novaiorquinos executar aos maiores pianistas do mundo inteiro. Que o que esperavam de Sequeira Costa era um reportório diferente, só dele, e que ele desperdiçara estultamente essa oportunidade única. 



                              António Cirurgião





 





sábado, 20 de fevereiro de 2021

Entrevista a António José Saraiva.





 
 
 


         Em Dezembro de 1987, três estudantes de Direito entrevistaram António José Saraiva. A entrevista, que saiu parcialmente no jornal Público em 2 de Abril de 1993, é agora publicada na íntegra.








 



P. – Em 1947, publicou A Escola, problema central da Nação. A escola continua a ser o nosso problema central?

R. – Bem, este livro foi escrito, ou antes, foi proferido como oração de sapiência, aquelas orações de sapiência que havia nesse tempo para inaugurar as aulas. E foi escrito um bocado como desafio, porque estava em contradição com a orientação da altura no ensino. De facto, eu ponho aqui uma espécie de projecto. A ideia central desse escrito ainda hoje a tenho, mas é uma ideia muito esquecida: a escola, a escola não, a infância, a idade escolar é uma vida e não é uma preparação para a vida. Ora, como sabem, a ideia de que a escola é uma preparação para a vida é completamente dominante, não só nesses tempos mas também hoje em dia. Aí houve muito pouca mudança em relação à escola entre a situação anterior e a situação posterior ao 25 de Abril. Sabem que depois do 25 de Abril não sei qual o Ministro da Educação fez um ensino «à distância» por meio da televisão – e que ainda hoje existe, aliás –, ensino que eu acho que é o menos indicado, porque para mim o ensino é um diálogo com o estudante.

P. – E era precisamente uma pergunta que nós queríamos colocar-lhe. Da sua experiência pessoal como professor como vê a Universidade enquanto ponto de encontro ou local desse diálogo professor-estudante? Nós sentimos a ausência completa, para já pela forma como as Universidades estão concebidas, as bibliotecas onde não há um contacto directo com os livros e, por outro lado, com a ausência do professor na escola.

R. – A minha opinião é que na escola, na escola universitária, se ensinam duas coisas diferentes: um ensino científico propriamente dito (por exemplo, suponhamos Física, Matemática, que tem uma parte adquirida com respostas precisas e essa tem a sua maneira de se dar); e há outra parte do ensino que são as Ciências Humanas e essas são todas tão fluidas, tão incertas, não é? Não é possível de maneira nenhuma dá-las como ciências positivas. As Ciências Humanas não são positivas, não cabem nos termos do positivismo. Eu estou a dizer isto mas sei bem que na América, por exemplo, também as Ciências Humanas são submetidas àquele tipo de exame que é dar a resposta certa à pergunta; por exemplo, «quem perdeu a batalha de Waterloo?» e pôr lá depois a palavra «Napoleão». Isso não tem importância nenhuma, quer dizer, se for Napoleão ou outro qualquer isso é uma coisa completamente indiferente, embora seja preciso um mínimo de conhecimento dos factos. A principal coisa do ensino que se chama de Letras, o ensino de Ciências Humanas, não é a resposta certa a uma pergunta exacta. Não há perguntas exactas nem respostas certas. A única coisa fundamental no ensino das chamadas Letras é a faculdade de pensar, a faculdade de pôr questões, a faculdade de interrogar, de levantar problemas. Isso é o que interessa.

P. – Hoje em dia, no fundo, os homens de cultura de um determinado país estão como que escondidos atrás dos meios de comunicação. Não será a Universidade uma forma de os devolver ao contacto directo com as pessoas interessadas na cultura?

         R. – Exactamente, essa é a função. Há uma função que a escola exerce e que os meios de comunicação nunca podem oferecer que é o diálogo, o diálogo socrático. Esta minha ideia quando eu falo de diálogo, falo sempre do diálogo socrático, e uma das coisas mais importantes que qualquer pessoa pode ler são, como sabem, os diálogos de Platão, diálogos em que Sócrates aparece com os seus discípulos e em que a verdade se vai descobrindo pouco a pouco por eliminação de hipóteses; é isso que se chama «diálogo socrático» e é isso também que eu entendo que se deve aplicar nos liceus e nas universidades. Aliás, eu aplicava isso quando era professor de liceu. Aplicava precisamente este sistema, até em temas considerados mais ou menos dogmáticos como a Gramática, por exemplo. Existem maneiras de ensinar a Gramática sem ser por meio de definições; ensinar a Gramática pela análise do texto e chamar a atenção dos alunos para aquilo que é constante, para certas invariáveis na definição e função gramaticais dentro do texto e era interessante aprender na análise dum texto a distinguir aquilo que é estrutural daquilo que é formal, daquilo que é semântico. O semântico é o tema, é o que a gente está a falar, é aquilo de que estamos a falar. Formal é, digamos, aquilo que não é semântico, aquilo que não significa coisas, mas apenas uma forma de dizer as coisas, forma que se aplica a muitos temas diferentes. Bem, desviei-me um pouco para lhes dizer que mesmo nos meus tempos de liceu eu segui este sistema, esta forma de diálogo socrático.

P. – No diálogo socrático procurava-se o saber pelo saber. Hoje em dia, com o desenvolvimento da tecnologia, o saber serve para outros fins?

R. – Ouça, aqui há uma grande confusão que é preciso desfazer e contra a qual eu chamo a atenção, mas não tenho chamado com bastante insistência. É que a tecnologia não é ciência. A tecnologia não é ciência. A tecnologia é uma consequência da ciência, é uma derivação da ciência, é uma derivação de certa maneira automática. A ciência é outra coisa. A ciência tem mais que ver – isto agora é uma coisa que pode parecer exagerada mas tem o seu fundo de verdade – com a poesia do que com a tecnologia. Se lerem por exemplo um escrito do Einstein a gente vê que aquele homem tinha uma capacidade poética de ver as coisas que os tecnólogos não têm, porque os tecnólogos são homens extremamente limitados.

P. – Mas a tecnologia não está de certa maneira a substituir a ciência?

R. – Não, mas não pode! Não pode! Só se os homens deixassem de pensar. A tecnologia está a substituir a ciência na opinião das maiorias mas não são as opiniões das maiorias que decidem as coisas. Isso é outra coisa, é um problema muito grave, que é o das relações entre democracia e ciência. De facto, a ciência não é uma coisa democrática, é uma coisa de homens especialmente dotados e que se tem como revelada. A democracia não é a coisa do Einstein, não é a do Newton, assim como não é a do Fernando Pessoa, dos grandes poetas, do Camões, etc. Todos esses homens são homens que se destacam do número, que não têm nada a ver com o número.

P. – Essa é outra contraposição: a tecnologia que avança consoante o mercado lhe pede e a ciência que é produto dos grandes homens que aparecem.

         R. – Pois claro. Ora vejam: como é que apareceu o Newton? O Newton não tem muito que ver com mercado. Mesmo aquele homem que fez a experiência na torre de Pisa, o Galileu. Já uma vez vi escrito não sei onde como a grande descoberta do Galileu o ter contribuído para a produção do telescópio. Ora, o telescópio permite aos navios avançar mais em determinadas condições. Quer dizer, permitia a comunicação mais fácil entre os continentes. Ora, o telescópio já existia antes do Galileu, é uma invenção dos pilotos e comandantes dos barcos e apenas alguém encomendou ao Galileu, visto que ele tinha os seus estudos encaminhados nesse sentido, um aperfeiçoamento dum óculo de ver ao longe. Mas isso não é o que o Galileu fez. A coisa mais importante do Galileu é, como sabem, a descoberta da inércia. O princípio da inércia, a inércia, é que é a grande descoberta do Galileu, porque é a que permite, à Física especialmente, avançar no caminho de certos princípios fundamentais. O problema é que o Aristóteles, como sabemos, não era capaz de explicar o movimento que, aliás, continua a não ser explicado de momento, pelo menos teoricamente. Mas, enfim, pelo menos o Galileu explicou como é que as coisas continuam a mover-se sem ninguém as puxar. Bem, daí veio o princípio da inércia. Como sabem, as coisas estão em movimento ou em repouso, mas em qualquer dos casos surge o problema da inércia porque o repouso prolonga-se indefinidamente, se estiver em repouso, e o movimento prolonga-se indefinidamente, se estiver em movimento. Quer dizer, o Galileu descobriu este grande princípio que não tinha nada de prático, porque para as ciências práticas não era inevitável a inércia.

         P. – Como vê então o papel da Universidade numa sociedade de massas? Terá por função a desmassificação?

R. – Em primeiro lugar, olhe, a palavra «sociedade de massas» é uma palavra, digamos, que não me é muito simpática. Eu não sei bem o que é uma sociedade de massas. E talvez as sociedades de massas sejam o grande mal do nosso tempo. Antigamente, a sociedade era constituída por organizações como por exemplo os diversos ofícios, as diversas corporações, a família (a família era uma organização muito sólida, muito poderosa) e portanto não havia propriamente massas, cada pessoa vivia no seu universo, no seu pequeno universo fechado. E, depois, essas organizações como, por exemplo, a família – o caso da família é patente – foram-se pulverizando, atomizando e daí resultou a sociedade de massas. Por exemplo, a juventude, já em tempos fiz esta observação, a palavra «juventude» quando eu era moço significava um período da vida, quer dizer, a juventude era o período da vida durante o qual a pessoa era jovem; portanto, significava uma fase da vida como, por exemplo, a velhice. Hoje já não significa isso: significa a quantidade de jovens, que tem uma certa função social, certo peso social, por serem muitos – são jovens independentemente dos sítios de onde vêem e da família a que pertencem. Quer dizer, hoje a juventude é uma noção de massa e daí a sua importância, até do ponto de vista eleitoral e político.

P. – Voltando a esse ponto de vista das relações entre a política e o saber, faz uma contraposição entre a democratização do ensino e a democratização do saber. Acha que a democratização do ensino é perigosa para a democratização do saber?

R. – Não, a democratização do ensino é uma necessidade social visto que há, como sabem, certas funções sociais que só se podem realizar se um grande número de pessoas possuir um mínimo de saber. Eu vou dar um exemplo com a alfabetização. A alfabetização é indispensável ao desenvolvimento duma sociedade e, actualmente, até à existência duma sociedade. Agora isso é um bocado diferente da chamada democratização do saber, da democratização de saberes. É necessário que muitas pessoas saibam ler, saibam escrever, fazer contas (embora cada vez menos porque agora há o computador). Isso, são coisas quase práticas: é necessário que muitas pessoas saibam mexer nos botões da televisão. Sabem, eu às vezes sinto-me atrapalhado quando me encontro perante uma televisão desconhecida, não sei qual o botão para silenciar, para pôr mais alto… Mas isso são saberes de manipulação, não propriamente de visão do mundo. Agora, eu coloco outro problema, um problema que eu pus num livro chamado Dicionário Crítico, que tratava também deste assunto. Na altura em que escrevi o Dicionário Crítico dizia o seguinte: o saber, a ciência, o espírito científico são indispensáveis para que uma sociedade funcione. E funcione democraticamente. Porque, dizia eu, só um homem que esteja na posse das leis fundamentais do Universo é que pode controlar a sociedade. Ora, como sabem, isto não é confirmado pela prática. Na realidade, sabemos cada vez menos as leis do Universo, sabemos cada vez mais manipular instrumentos e, portanto, temos cada vez menores possibilidades de controlar a sociedade democraticamente. Não sei se me faço entender...
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P. – Parece que esses pequenos saberes afogam o saber propriamente dito...

R. – Quer dizer, eles não afogam…. As pessoas... aí é que está… há um terrível problema, que é o problema da desigualdade dos homens. Os senhores já repararam que se virem uma árvore coberta de folhas descobrirão que nenhuma folha é igual à outra, assim como nenhuma impressão digital é igual à outra. O que é espantoso é que haja tantas impressões digitais diferentes. A imaginação que foi capaz de fazer com que duas impressões digitais fossem diferentes apesar de serem igualmente digitais e humanas. Nos homens acontece a mesma coisa – os homens são todos diferentes. Entrámos neste caminho, este caminho é um bocadinho perigoso, como sabem.

P. – Uma outra pergunta sobre a Universidade: no fundo, vivemos numa época de capitalismo tecnológico em que há uma ligação universidade-empresa. Contudo, as universidades ditas «técnicas» é que têm vindo a revelar maior florescimento. Que papel têm aí as Ciências Humanas? Funcionam como uma «ética da técnica»? Como uma «reserva moral»?

R. – As Universidades de Ciências Humanas não poderão ser Faculdades de Ciências Humanas. São Faculdades de condicionamento das pessoas. São universidades que vão estudar as pessoas quer como indivíduos quer como grupos para as condicionar, fazê-las trabalhar num determinado sentido, que não noutro. As Ciências Humanas não são Ciências Humanas, são Ciências Sociais, porque estudam o Homem do ponto de vista social, mas estudam-no para o condicionar em vista dessa mesma tecnologia. Quer dizer, na perspectiva da sociedade tecnológica e mercantil.

P. – Então, vê-se que hoje em dia há uma mercantilização do saber...

R. – Sem dúvida.

P. – E essa mercantilização faz com que cada vez mais os capitalistas deixem de dominar para passarem a ser os técnicos. E actualmente não se verifica, até no caso português, os políticos passarem a ser tecnocratas?

R. – O que acontece é que o capitalismo está a sofrer uma mutação muito importante que é a do poder deixar de pertencer aos donos do capital para passar a pertencer aos administradores do capital, que são muitas vezes eles próprios assalariados. Esses administradores são, por sua vez, técnicos. São homens que sabem fazer contas, sabem calcular percentagens e não sei que mais. E são esses administradores que acabam por colocar os donos do capital na dependência deles, deles administradores. Porque são eles que têm de saber qual a percentagem do capital que pode ser destinada aos donos. No fundo, é o interesse do capital, o capital que é uma coisa inumana, é uma coisa que não existe, é uma abstracção... no entanto, é esse mesmo capital que vai determinar aquilo que os donos do capital devem ter.

P. – Isso nas decisões económicas. Mas nas decisões políticas não se está a passar o mesmo? Não são os tecnocratas que cada vez mais comandam a política?

R. – Sim. A política é o ponto de cruzamento de muitas coisas, sabe? É muito difícil para mim dizer o que é a política. A política não se confunde com administração, a política não se confunde com o progresso tecnológico, a política não se confunde com diplomacia. O bom político é aquele que sabe de onde vem o vento, que sabe vários pontos de vista, o que as pessoas querem, o que as pessoas desejam, as aspirações tantas vezes secretas das pessoas. É isso. Mas o político não é, não pode ser, apenas um tecnocrata, porque tem de atender a vários factores.

P. – Outra pergunta: estava a referir há pouco que antigamente as pessoas viviam em vários organismos, compartimentos – a família, por exemplo – e parece que todos esses organismos se pulverizaram numa sociedade mais vasta. Não será que o único organismo que resiste a isso é a nação?

R. – Não, a nação está a desaparecer, basta pensar na ida para a CEE.

P. – Mas o nacionalismo, pelos vistos, é um sentimento que persiste...

R. – Não, quer dizer o patriotismo, o patriotismo é uma coisa muito complicada que eu nunca percebi e ainda não percebo. Há uma coisa chamada patriotismo ligada, digamos, a um pólo. O patriotismo tem duas origens: primeiro existem as sociedades tribais, as sociedades ligadas por parentesco, as sociedades consanguíneas; e depois há as sociedades territoriais, aquelas que não estão ligadas por relações de parentesco, mas sim por relações de vizinhança, de sítio onde as pessoas habitam, etc. Como sabe, um português pode ser filho de um escandinavo e tem todo o direito de ser português desde que tenha nascido em Portugal. Bem, isto era só para lhes dizer que este problema de nacionalidade é um bocado difícil, embora seja um facto que a nacionalidade existe sempre e continua a ser uma força. Mas uma força que está em declínio bastante rápido devido a esta história do jogo económico, tecnocrático, etc.

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P. – E a nação não é ainda uma certa forma de situar uma cultura? Quando se fala em cultura tende-se a ligar sempre a um determinado país. Quando se fala em cultura portuguesa sabe-se que ela tem uma especificidade própria em relação à cultura espanhola por assim dizer...

         R. – A cultura portuguesa é espanhola. Pelo menos, hispânica. E a gente sente isso. A gente vai aqui ao lado a Espanha e sente logo que há uma coisa comum, uma cultura, que já não existe por exemplo se formos à Alemanha ou à Inglaterra. Esses laços são culturais. Agora em que medida é que isso resiste, esse é que é o grande problema do futuro. Bem, eu pessoalmente não acredito na Europa única, não acredito, claro que cada um pode acreditar naquilo que quiser.

         P. – Não acredita por princípio ou pela realidade das coisas?

R. – Não, não. Eu não acredito porque em primeiro lugar fui educado noutro sistema, em segundo porque a Europa é feita de nacionalidades. A questão é esta: a Europa é um continente em que determinadas nacionalidades se forjaram ao longo dos séculos, desde o Império Romano. A América não. Como sabe, a América é um país de emigrantes, emigrantes que vieram de todo o lado do mundo e que se aguentaram, resolveram os seus problemas de alimentação, sobrevivência, etc., etc. Mas nunca houve propriamente uma Nação americana. A América não tem tradições, e é por isso que é um país de certa maneira democrático. É o único país onde não havia uma aristocracia forjada pelo tempo, mas apenas uma série de pessoas. Olhe, um livro muito interessante que refiro sempre que se fala na América é um livro chamado Chesapeake. A gente percebe ali como é que se forjou a América. Por isso a América pode ser um grande país sem ter várias nacionalidades. Houve determinada época em que esteve quase a formar-se na América uma nacionalidade diferente. Na época da Secessão, se os sulistas não tivessem perdido a guerra, naturalmente haveria hoje duas nações diferentes porque o sul da América do Norte tinha una grande quantidade de negros, tinha por outro lado uma aristocracia – e isso é o princípio da formação, enfim, da organização nacional – e o norte da América do Norte nunca teve uma aristocracia, tinha apenas emigrantes que iam para lá ganhar a sua vida, tentar salvar-se de uma situação de miséria e de fome e chegavam à América e encontravam sempre terra, que era a coisa principal, e emprego. Não foi o que aconteceu no sul, no sul existiam famílias agrárias que eram proprietárias de escravos, que eram o princípio duma nobreza.

P. – Coloca a nobreza como uma das origens da nacionalidade. Em Portugal podemos datar essas origens? No fundo, se lermos os episódios da estória jogralesca de Afonso Henriques verificamos que já existia um sentimento de nacionalidade talvez mais forte até que em Aljubarrota, onde havia portugueses de ambos os lados. Podemos situar o aparecimento da nacionalidade antes de 1383?

         R. – Eu acho que sim. Mas acho que o D. Afonso Henriques da estória jogralesca é um D. Afonso Henriques leonês, quer dizer, a gente percebe ali que ele é um homem, um senhor da terra de Leão, do Estado de Leão, que era o que então existia (Castela ainda não existia) e, portanto, não sei bem em que medida…. O que aí existe é um sentimento de diversidade. Em 1383-85 as crónicas de Fernão Lopes atestam o sentimento anti-castelhano, que é um sentimento contra o vizinho. O problema com a Espanha, com aquilo que nós chamamos «Espanha», é na realidade um problema de vizinhança. É que não há ninguém que um homem deteste tanto como seu vizinho e realmente foi isso que aconteceu em relação a Castela. Aconteceu que mais tarde nós fomos englobados num todo cujo centro de convergência era Castela, portanto um todo que era a Espanha, a Espanha de que Portugal fazia parte mesmo sem ter consciência disso e a partir desse momento toda esta região passou a chamar-se Espanha. A Espanha passou a ser um nome. E Espanha é inicialmente o nome de uma região geo-cultural. Nessa altura toda a gente dizia «a Espanha», até os portugueses do século XV diziam «ai, os nossos outeiros, os nossos vales da Espanha», quando estavam em Marrocos. Eles pensavam na sua querida Espanha, a sua Espanha era Portugal. Lembrem-se daquele rimance «olha, se vires terras de Espanha, areias de Portugal». Mas, mais tarde, quando se formou um Estado único em toda a Península, Portugal, como tinha certas características diferenciais, conseguiu separar-se de Castela e formar um Estado à parte e só a partir de então é que houve o Estado espanhol. A Espanha propriamente dita data de 1640. Antes de 1640 não havia a Espanha como Estado diferenciado, separado, havia a Espanha como todo geo-cultural.
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         P. – Então e é essa unificação política, esse surgimento de um Estado em termos políticos, que no fundo consolida essa ideia de Nação ou a pode defender de ameaças? Por exemplo, Portugal sofreu a invasão espanhola em 1580. Se Portugal tivesse um Estado politicamente mais sedimentado poderia defender a sua nacionalidade? O que no fundo se verifica é que a nacionalidade é uma ideia que contra as forças políticas ou bélicas nada pode.

         R. – Não, ainda hoje há o País Basco, ainda hoje se manifesta.

P. – A Catalunha …

R. – A Catalunha é outro caso, mas a Catalunha é mais diferente de Castela do que Portugal. Quer dizer, há um conjunto a que nós chamamos a Espanha que é constituído por Castela, León, Galiza, Andaluzia (que também é Castela) e... Portugal. Esses países têm muitas semelhanças linguísticas, no vocabulário e na gramática. Quer dizer, se formos a um dicionário e procurarmos por exemplo as palavras «razão», «relação», «revolução», encontramos «razón», «relación», «revolución», encontramos as mesmas palavras ditas de outra maneira. Mas se formos ao catalão já não é assim. Aí as palavras são diferentes; por exemplo, «com» em catalão («com uma espada», por exemplo), a proposição não é “con” nem deriva do latim “cum” percebem? Há uma penetração do latim que foi até ao Ebro e uma outra que foi do Ebro ao Atlântico. É a essa que pertence a Espanha. A Espanha propriamente dita, o que nós chamamos «a Espanha», é a Espanha do Ebro para cá e com a qual sentimos afinidades. Vamos até Madrid e sentimos uma afinidade com os madrilenos.

P. – Mas então esse desentendimento cultural que existe na Península, entre Portugal e aquilo que hoje é a Espanha, é devido a questões políticas?

         R. – Não, o desentendimento... é que Portugal... basta pensarmos na língua, a língua galega, é portuguesa e galega, é diferente da castelhana, tem uma pronúncia diferente, tem uma tonalidade, uma articulação diferente. E basta isso para se perceber que há aqui uma sensibilidade diferente da castelhana. E reparem que o galego ainda hoje existe, apesar dos castelhanos terem feito todos os esforços para castelhanizar a língua. Até hoje não conseguiram, embora parece que estão quase em vias de o conseguir. Em Portugal é onde o galego pôde sobreviver, defendido do castelhano pela fronteira política. Em Portugal havia uma fronteira política e, portanto, não conseguiram castelhanizar o português, como estão em vias de castelhanizar o galego porque o galego não tinha essa defesa política.

P. – Acredita então que haja alguma forma de superar aquilo a que chama o divórcio cultural entre Portugal e Castela por outra forma que não seja uma solução política?

R. – Repare: eu vejo que uma das formas seria uma forma cultural. Já reparou que não existe a volta à Espanha de bicicleta? E era uma coisa que parece evidente à primeira vista. E não existe porque os portugueses não querem nada com os vizinhos imediatos. Quer dizer, Portugal só conhece um país estranho, que é Castela, a Espanha, e portanto o único objecto em que o seu ódio se concentra são os castelhanos. Por isso não se fala duma volta à Espanha de bicicleta que parece uma coisa, enfim, natural.

P. – Mas esse ódio não parece ser também a única hipótese que os portugueses vêem para a sua sobrevivência como país?

         R. – Sim, mas, olhe, eu penso que o problema deveria ser encarado doutra maneira. Como sabe, até ao século XVI houve sempre uma tentativa de unificação, o que não se sabia era qual seria o rei do todo, quer dizer, ou um rei português ou um rei castelhano. Como sabe, em 1383 o rei castelhano queria ocupar o trono português e, na geração seguinte, no tempo de D. Afonso V, D. Afonso V queria ocupar o trono castelhano e foi derrotado na batalha de Toro. Depois, o filho de D. Afonso V, que era D. João II, quis ocupar o trono de Castela através do filho, que casou com uma infanta castelhana e esteve perto de vir a ser a ser rei de toda a Espanha. Mas morreu estupidamente num desastre de cavalo e não foi. Depois, o sucessor de D. João II casou com quatro infantas castelhanas para ver se conseguiria herdar o trono de Castela e então teve uma data de sucessores castelhanos e portugueses, dos quais o que vingou foi Filipe II. Quer dizer, Filipe II era neto de D. Manuel. É claro, era neto de D. Manuel em virtude desta política de casamentos e que veio, num jogo de bola... Os senhores reparem num jogo de bola - a bola foi parar ao Filipe II mas todos estavam a atirar para um qualquer. Aliás, o Filipe II era filho de portuguesa, porque a mãe dele era filha de D. Manuel, e falava o português e aqui volto à língua; uma das condições que foram impostas quando ele tomou posse do cargo do rei de Portugal foi que, em Portugal, a língua oficial seria sempre o português e nunca o castelhano e Felipe II tanto mais facilmente aceitava isso quanto, de facto, ele conhecia perfeitamente o português, o português era a língua materna que tinha, como aliás outros reis galegos, leoneses, etc. Afonso X, por exemplo, escreveu as suas composições poéticas em galego, galaico-português como nós dizemos, a fase arcaica do galego. Esta questão tornou-se muito complicada em virtude dos tais sentimentos, dos tais rancores contra o vizinho... No fundo é uma questão de vizinhança, é uma questão como a que há, por exemplo, entre aldeias.

P. – São rancores de parte a parte...

R. – Sim, mas são sobretudo rancores da nossa parte porque nós é que nos sentimos mais fracos, embora a nossa cultura seja de facto brilhante. O Oliveira Martins, que tinha muito esta ideia de Hispânia, considerava como o maior, o melhor representante de Espanha, digamos a melhor expressão de Espanha, sabem quem? O Camões. Considerava que Os Lusíadas eram a grande expressão literária de Espanha neste sentido.

P. – Ele próprio esteve em Espanha e escreveu a sua História da Civilização Ibérica...

R. – Pois, pois. Que é uma obra notável, não é? É uma obra notável.

P. – Mas a nossa intelectualidade tende a diminuir o valor de autores como Oliveira Martins, Teófilo Braga e até talvez mesmo Antonio Sérgio. No fundo, e sobretudo no caso da filosofia portuguesa, não tem havido uma marginalização dessas grandes figuras? E da cultura face à Universidade?

R. – Essas coisas são muito complicadas. Repare: se houvesse uma relativa aproximação intelectual certas coisas deixavam de existir, barreiras… e as barreiras são sempre uma razão de privilégio para professores, para políticos, etc. etc. Mas eu penso que a verdadeira solução seria aquela que existe nos países escandinavos. Os países escandinavos constituíram uma espécie de federação sem nome, «sans la lettre», uma federação em que para passar dum país para o outro não preciso de passaporte. A gente está na Dinamarca, passa para a Suécia e passa para a Noruega e tudo isto é um conjunto em que politicamente são Estados separados, mas a gente tem a sensação de estarmos numa região cultural. Era uma coisa assim que nós devíamos pensar mas o problema é que depois essas coisas são especuladas, são exploradas...

P. – Mas essa federação de tipo escandinavo também poderia tornar Portugal numa Galiza, ou não?

R. – Não, a Suécia e a Noruega são países completamente independentes.

         P. – Sim, mas entre eles não há aquele desequilibro ou aquela tendência hegemónica e, ao mesmo tempo, de superioridade...

R. – Há, pelo menos no caso dos suecos.

         P. – Nós, por exemplo, da parte dos intelectuais espanhóis vemos a posição dum Miguel de Unamuno que conhecia bastante a cultura portuguesa e tinha um interesse nisso e, ele próprio era basco e tinha essa dimensão da Espanha, mas já vemos por exemplo um Salvador de Madariaga que se refere várias vezes a Portugal como alguma coisa que, digamos, não está no seu lugar, que deveria estar politicamente unida a Espanha, dentro de Espanha, absorvida por Espanha e, portanto, essa atitude cultural dos espanhóis face a Portugal acaba por ser também hegemónica...

         R. – Bem, ainda por cima os castelhanos são pouco… compreensivos. Um castelhano só fala castelhano. Em qualquer parte do mundo em que esteja. A gente ouve, mesmo em Paris, um castelhano fala um francês de maneira que a gente percebe imediatamente que ele é castelhano. Não sabe falar francês direito. O português, esse, coitadinho, adapta-se, esse fala português mas pretendendo falar francês e vem cheio de  «pierre», «a gauche», etc. etc.

         P. – Mas até que ponto os obstáculos à superação desse divórcio cultural não serão mais a intolerância dos castelhanos do que propriamente o ressentimento dos portugueses? Até que ponto a intolerância não joga mais no sentido desse divórcio?

         R. – É possível que sim, é possível que sim. Quer dizer: nesse aspecto, só nesse aspecto (no resto não), mas nesse aspecto linguístico os castelhanos fazem-me lembrar os ingleses. Os ingleses só são capazes de falar inglês em qualquer parte que estejam.

P. – Mas, em compensação, essa adaptabilidade dos portugueses é talvez uma sua virtude? O espírito provençal, de que já falava o Keiserling...

R. – Olhe, eu não sei, não digo que não nem digo que sim. Eu acho que os portugueses são muito acomodatícios. Perdem facilmente o sentimento... por exemplo, os filhos dos portugueses em Paris quase todos decidem ser franceses. É uma coisa que a mim me entristece, não é? Um português acha sempre que o estrangeiro é melhor. Tem certas razões para achar, quando se trata de um país mais desenvolvido, mas quando a gente vê um país, como o País Basco, lutar pela sua personalidade, então percebe o que é o nacionalismo, o que é o patriotismo.

P. – Mas esse sentimento de inferioridade parece não ter existido sempre. Por exemplo o Lope de Vega troçava do sentimento de superioridade de alguns portugueses («soy portugués, soy el mejor»). Não haveria, após a fase áurea dos Descobrimentos, um complexo de superioridade?

R. – Sim, é claro, de repente o português descobriu... isto, aliás, é uma coisa um bocado difícil de explicar, como é que o português fez os Descobrimentos e depois não fez mais nada, nem tecnicamente, nem cientificamente, nem nada. Só literariamente. O português teve no século XlX uma literatura bastante boa, com aquele grupo a que se chama «geração de 70» e depois com o Fernando Pessoa, que é uma das grandes poetas do mundo. Os castelhanos não têm nada comparável. Têm o Góngora, mas o Góngora é um discípulo de Camões. Aliás, o Góngora é um dos indivíduos que homenageiam o Camões.

P. – E Cervantes?

R. – Não me estou a lembrar de nada em relação ao Cervantes; de que é que se está a lembrar?

P. – Mesmo há pouco, quando estava a falar daquela obra do Oliveira Martins em que ele exalta Camões como uma das grandes expressões culturais da Península, a Espanha terá o seu reverso não propriamente em Góngora mas talvez em Cervantes ...

R. – Sim, sim. Bem, o Cervantes é sobretudo um ponto de vista sobre a vida, não é? Sobre a vida em geral, sobre a maneira de ser hispânica. O melhor exemplo de quixotismo que eu conheço é o D. Sebastião. É um caso único. E talvez ele se inspirasse no D. Sebastião...

P. – Então, vê-se, no fundo, como as duas expressões máximas da literatura peninsular têm muito em comum...

         R. – Sim, sim. O Camões adere completamente à ideologia expansionista, que nós hoje chamamos imperialista, etc. etc., ao passo que o Cervantes é um crítico, de certa maneira é um crítico, apresenta as duas faces da coisa e ri-se um bocado com as desventuras do Quixote, como sabe. Ao passo que o Camões... Camões é um dos homens que aconselharam ao D. Sebastião a ida a Alcácer-Quibir. Isso não se pode pôr em dúvida, embora tenha havido tentativas para, enfim, interpretar o texto, etc., etc, mas isso está lá n’Os Lusíadas, nos últimos versos, não é? De facto, a conquista de Marrocos era o grande projecto, sobretudo da nobreza, porque não foram os jesuítas quem levou o D. Sebastião a Alcácer-Quibir.

         P. – Há a ideia de que foi a formação do D. Sebastião que o levou...

R. – Não, isso foi uma ideia feita para desacreditar os jesuítas. Como sabem, o marquês de Pombal tinha um verdadeiro Ministério da Propaganda contra os jesuítas e os jesuítas têm muito que se lhes diga, não é? Mas nesse particular eles não queriam, estavam suficientemente informados para saberem que não se conquistava assim Marrocos de qualquer maneira. Quem impeliu o D. Sebastião para a África foi sobretudo a nobreza.

P. – Quando fala em D. Sebastião tem um texto em que diz ser necessário fazer uma história política, sobre a importância da loucura política. Isso liga-se um bocado também com a «Nova História» do Marc Bloch e do Lucien Febvre. No fundo, esta «Nova História» não tem vindo a ser uma História fragmentada, uma História lúdica: História da família, História demográfica...? No fundo, até talvez uma negação da História; há autores que dizem que a pulverização da História, a falta de um critério unitário, acaba por levar à negação da própria História, ao fim da História. Em França houve uma sondagem em que os estudantes liceais não sabiam quando tinha sido a Revolução Francesa... A pergunta que nós lhe pomos é: até que ponto a História, até como dizia o próprio Oliveira Martins, não deve ser mais um programa de educação do que um programa de investigação para certos investigadores e para certos historiadores, que talvez descuram um bocado o papel formativo da História?

         R. – Olhe, eu, sobre o papel formativo da História, tenho muitos embargos a pôr, porque a História tem a função principal de reforçar a nacionalidade. A História de França, por exemplo. Se ler o Michelet, ele conta a História de França desde o tempo dos gauleses e começa por fazer um elogio dos celtas à custa dos iberos, precisamente para estabelecer as fronteiras onde começa a França. Portanto, a História é no fundo uma mitologia com que se pretende reforçar a educação patriótica das pessoas. Isto é o que eu acho e, nesse aspecto, é extremamente negativo: já repararam que nós sabemos os vários períodos da História de Portugal mas sobre o período filipino há um «black-out»? Não sabemos nada. Ninguém estudou o período filipino.

         P. – Essa «História oficial» tende, por exemplo, a esmagar o papel das minorias. Tem falado muito no papel do conde Sesnando, dos moçárabes. A cultura moçárabe tem vindo a ser obscurecida por uma «História oficial». Por exemplo, o Gilberto Freyre falava muito do papel árabe na cultura portuguesa que é obscurecido pela «História oficial»…

R. – Pois. Quer dizer, a «História oficial» é feita de acordo com a ideia de Reconquista, a Reconquista que era feita pelos portugueses, castelhanos e navarros e, por consequência, é feita de cima para baixo, da montanha para a planície. E isso corresponde a uma ideia que até está bastante divulgada; é uma guerra feita por bárbaros contra o mundo civilizado. É que o mundo árabe era o mundo civilizado, urbano; e os homens das montanhas, lá de cima, da Galiza, da Serra da Estrela, etc., eram desgraçados que andavam à procura de pão, deslumbravam-se com essas cidades que iam encontrar. Aqui há talvez uma deformação mas era preciso um bom estudo a esse respeito.
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P. – Vimos então que essa fragmentação da História, a falta dum critério unitário … mas actualmente está a proceder-se em França à elaboração de uma «Grande História» por autores vindos da «Nova História» - Georges Duby, Le Roy Ladurie, etc. e, no fundo, o critério que eles vão buscar é o critério político, estão a fazer uma História Política de França, acaba por se voltar aos tempos anteriores à «Nova História»...

         R. – Mas, olhem, a razão é esta  – e já há pouco lhes falei – é que a política é a convergência de múltiplos factores, na política convém encontrar-se a psicologia, a psicologia das massas, dos estadistas, etc., os conflitos económicos, o ideal... Oliveira Martins dizia por exemplo que a Espanha, a Espanha neste sentido alargado, tinha um ideal, que era o heroísmo, e que a grande expressão do heroísmo eram Os Lusíadas. É isso que encontram na política, através do heroísmo encontram o Salazar, por exemplo, quando ele fala do “orgulhosamente sós”, era ainda esta ideia, a ideia heróica que permanecia. Assim como o Franco, quando fez a Guerra Civil, armou-se em reconquistador, era um reconquistador que veio de baixo, veio pela Andaluzia e saiu de Marrocos mas, enfim, às pessoas não importa nada o disparate. A grande ideia da História de Espanha é a Reconquista, a luta contra o Mouro e, portanto, se essa é a grande ideia, é a ideia que de certa maneira forjou as nacionalidades hispânicas. E, evidentemente, a História assim já está deformada.

P. – Portanto, a política é o critério unificador?

R. – É o critério unificador, não tenha dúvidas que é.

P. – Isso na História Geral, mas na História da Cultura qual será o critério? Será a nacionalidade? Por exemplo, diz que a evolução da cultura se secciona em partes independentes, mas que é necessário encontrar um fio condutor. E, no fundo, esse fio condutor é a nacionalidade? É a Nação?

R. – Bem, literariamente é pelo menos a língua.

P. – A respeito da língua, afirma que Portugal começou inicialmente por ser um espaço linguístico. E actualmente, feita a descolonização, o que resta dum espaço linguístico pluricontinental? O que poderemos fazer para o manter?

R. – Olhe, a primeira coisa é falar bem português e o português está a ser estragado. Realmente, a melhor defesa da nacionalidade é a própria língua.

P. – «A minha pátria é a Língua Portuguesa»...

R. – O Fernando Pessoa dizia isso, é uma frase célebre e é verdadeira. Agora, a importância, o culto, digamos, do rigor da língua, a conservação do espírito da língua… Por isso é que dou muita importância ao ensino da língua, contra o qual havia muitos graffiti nas paredes: «Abaixo o Português». Enfim, toda uma campanha contra o ensino do português. Eu acho isso lamentável, tanto mais que há imensa gente que não sabe escrever português, inúmeros indivíduos com cursos superiores, sobretudo engenheiros, etc. não sabem, não sabem... Um homem do povo, que não tem preocupações de ser intelectual, fala muito mais naturalmente a língua, e muito melhor… com muito mais saber ... saber dizer as coisas, sem ser com palavras complicadas.

P. – Mas, por exemplo, actualmente existem propostas para iniciar uma via profissionalizante cada vez mais cedo. Aos treze anos começa-se uma via profissionalizante e mantêm-se duas disciplinas apenas...

R. – Olhe, eu não conheço o Ministro da Educação, nem sei quais são os seus projectos porque realmente não sou muito dado à leitura de jornais, nem à rádio e, portanto, não sei quais são os projectos dele. No entanto, ele disse algumas coisas interessantes no discurso que fez no Parlamento, uma delas, por exemplo, que a infância é a vida. É um homem inteligente.

P. – Mas começar uma via profissionalizante só com duas cadeiras – Português e Matemática – não faz com que a infância deixe cada vez mais de ser uma vida?

         R. – Sim, isso é verdade. Olhe, eu tinha imaginado no Dicionário Crítico – que é a coisa mais completa que tenho sobre educação – escolas, que seriam quintas, uma coisa parecida com os kibutzim, escolas em que a criança aprenderia as coisas pelo exercício: aprenderia a democracia, por exemplo, pelo respeito das regras dos outros, pelo respeito pela personalidade dos outros, aprenderia a língua pela necessidade de falar, mesmo publicamente, aprenderia a escrever pela própria necessidade de escrever. Tinha de haver um certo dogmatismo no ensino das línguas, do escrever e pouco mais. E aprenderia as ciências da Natureza pelo cultivo da terra. Eu imaginava assim uma utopia destas e ainda não desisti completamente dela. Simplesmente, agora Portugal está metido numa alhada terrível por causa da CEE, porque Portugal quer integrar-se numa civilização à qual sempre foi alheio. A Península Ibérica não é Europa, a Península Ibérica é o istmo entre a Europa e a África. Só a Catalunha, a região da Espanha até ao Ebro, é que, de certa maneira, um país europeu, mas do Ebro para cá isto não é nada europeu.

         P. – E nessa escola ideal como veria a relação entre o professor e o aluno? O sistema de tutor tipo anglo-saxónico? Não tem nenhuma ideia sobre una utopia universitária?

R. – Não, eu só fiz utopia para o ensino primário e secundário. Para o superior é mais fácil encontrar modelos nos países chamados adiantados como a Inglaterra, América, etc.

P. – Com esse sistema do tutor? Nas nossas universidades estamos a ver os professores delegarem nos assistentes as suas funções, o professor acaba por ser o titular dum cargo que muitas vezes não exerce, são os assistentes, muitas vezes sem preparação, que dão as aulas. Não há relação do aluno com o professor…

 R. – E nem sequer há relação do professor com o assistente, começa por aí. Agora o assistente é assistente da comissão científica, não é do professor. De maneira que assim torna-se muito difícil criar uma «escola». Estou pensando por exemplo na linguística. Como sabe, há diversas orientações na linguística – há uma orientação mais do tipo matemático, de ciências exactas e há uma orientação mais do tipo particularista, que é aquilo que se chama Filologia. Mas realmente, cada uma dessas orientações exige um acompanhamento e uma descendência do Mestre, a qual se pode achar actualmente no assistente. Hoje o assistente não sabe de quem é que é assistente; é assistente dum professor qualquer. Reparem: numa comissão científica podem existir orientações muito diversas e, portanto, o assistente pode ser submetido a métodos completamente diferentes, incompatíveis entre si. Por exemplo a linguística que eu chamaria lógico-matemática é uma coisa completamente diferente, tem um espírito completamente diferente, da linguística filológica, da linguística textual, que antigamente se chamava Filologia. Todavia, o assistente pode ser ora assistente de um, ora assistente de outro, não chega a formar-se completamente.

P. – E como é que vê a Universidade como o termo do ensino liceal, ou seja, após o ensino liceal como é que surge a Universidade? Surge como algo de natural, de continuidade, ou como uma forma de estudar completamente diferente?

R. – Ora bem, no fundo, a Universidade é uma escola de especialização. Evidentemente, uma especialização que pode abranger uma matéria muito vasta e, especialmente, uma especialização que tem um certo nível filosófico. A disciplina fundamental nas Universidades é, parece-me a mim, a Filosofia. E assim como há uma especialização de tipo humanístico, pode haver uma especialização de tipo tecnológico. Mas, para isso, é preciso que os liceus dêem uma formação relativamente completa, que abrangesse também estudos humanísticos.

         P. – Vê então esse humanismo como uma consciência crítica do progresso tecnológico?

         R. – Sim, tem que ser uma consciência crítica, evidentemente. 
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P. – No livro A Cultura em Portugal revela alguma admiração pela obra de Keiserling, Annalyse Spectrale de l’Europe. Keiserling acaba por fazer ressaltar o espírito provençal, uma certa luminosidade, uma abertura dos portugueses, que não vê nos castelhanos, mas, no fundo, a opinião dele é um pouco negativa sobre os portugueses, é um pouco a opinião de António Vieira...

R. – Quer dizer, os portugueses devem assumir a sua existência como defesa contra os castelhanos. No fundo, é isso que ele defende, que ele diz. Sentem-se obrigados a reagir...

P. – Há bocadinho falámos na obra de Oliveira Martins. Na realidade, lembro-me, pelo menos quando andava no liceu, que os professores de História e Português menosprezavam um bocado Oliveira Martins, porque não era propriamente um literato nem era um historiador, era assim uma coisa... Mas, ao mesmo tempo, eu comecei a interessar-me e comecei a lê-lo e pareceu-me que havia ali uma espécie de pensamento... Qual é no fundo o valor actual que vê nessa obra tão vasta e que é tão mal conhecida?

R. – É de facto um homem muito discutível mas, por isso mesmo, é que é muito interessante. Se não fosse discutível, por exemplo… agora ia falar duma pessoa, mas não vale a pena... não digo quem é, mas não é nada discutível aquilo que lá está: são números, são estatísticas, são coisas assim, não se discute. Bem, o Oliveira Martins, esse fala da psicologia das pessoas, da maneira de ser, fala, por exemplo... é o homem que chamou a atenção para o sebastianismo, é ele que apresenta o sebastianismo como um fenómeno colectivo português.

P. – Não será antes, como apresentam versões mais modernas, um messianismo? Uma tendência messiânica desligada um pouco do sebastianismo. No fundo, o sebastianismo é um fenómeno mais datado; agora, retirar daí um messianismo, esse sim é que parece ser uma vertente cultural ou constante da mentalidade portuguesa...

R. – Pois claro.

P. – Mas voltemos aos números e à História. A «Nova História» limitou-se a substituir os nomes dos reis pelas flutuações de preços de cereais...

R. – Mas não dizem nada! Eu conheço uma história, que não se passou comigo mas passou-se com uma pessoa que me está muito próxima, que tinha que fazer um estudo não sei sobre que cidade brasileira, uma coisa assim, e fez números, números, números… - era uma cidade em relação à qual existem muitos números, e depois fez muitos números, era sobre o açúcar, creio eu - e a pessoa que estava a ouvir perguntou-lhe: «então, e qual é a conclusão?» e eles ficaram muito atrapalhados e disseram «pois é, isso é que nós queríamos saber... Não somos capazes de tirar nenhuma conclusão daqui». Realmente, há muitos casos em que não é preciso tirar conclusões ou, então, tiram-se falsas conclusões. 

P. – Isso não terá sido uma influência do marxismo sobre as ciências sociais?

R. – Eu creio que do marxismo e do positivismo ao mesmo tempo, porque o nosso marxismo – é uma coisa curiosa – o nosso marxismo, é engraçado, é profundamente positivista, porque o positivismo foi a filosofia que se implantou mais em Portugal e no Brasil (por via de Portugal).

P. – E no Brasil foi levado até um extremo ainda maior. Haviam lojas positivistas… 

R. – E havia o culto positivista. Mas sobre essa formação positivista é que se implantou o marxismo, digamos, quase que já nada hegeliano, por isso é que um marxismo que se costuma dizer, automatista ou qualquer coisa assim... Mas, como dizia – isto é do Unamuno – o Unamuno dizia assim «os portugueses têm menos espírito filosófico que os castelhanos que os espanhóis – ele dizia espanhóis – se bem que os espanhóis já tenham muito pouco». Quer dizer, os portugueses ainda conseguem ter menos. É isto, não é? Uma coisa que falta em Portugal é o espírito filosófico. Temos um António Sérgio, enfim, que pelo menos chamou a atenção para certas coisas, mas mesmo em relação a Espanha não temos um homem da categoria de um Ortega y Gasset.

 
P. – E qual o juízo que faz do chamado movimento da filosofia portuguesa: Álvaro Ribeiro, José Marinho, etc.?

 
R. – Eu já falei nisso. Não percebo, não consigo descobrir onde é que está a filosofia portuguesa. Houve um tempo em que se dizia que o Montaigne pertencia à filosofia portuguesa visto que tinha nascido de um casamento com uma portuguesa. Se a filosofia portuguesa é isto, não sei...Bem, mas eu estou certamente e fazer uma crítica maldosa...


P. – É o mesmo juízo que se faz em relação a Espinosa...

R. – Ah, pois é! Pois é! Espinosa o que é, é um judeu, nascido na sinagoga, que emigrou, pronto, como tantos. Os judeus tinham geralmente um nível intelectual elevado porque não havia judeus analfabetos e bastava isso para os elevar e promover numa sociedade que era em grande parte constituída por analfabetos.

P. – Outra coisa: hoje em dia as pessoas falam muito da obra de Luís de Camões, mas, no fundo, como se fosse uma obra morta. Será que as obras culturais morrem também? E, concretamente, qual o seu valor hoje em dia, como é que devemos ler Camões?

R. – Eu acho que tenho dado umas aulas interessantes sobre Os Lusíadas, têm interessado bastante os alunos. O que é preciso é não as ler superficialmente, tem que se ler com muita atenção, duma maneira viva, discutindo, interpretando, etc. Eu creio que é possível... o Pessoa está vivo – não sei se conhecem, mas está vivo – e quase todas as obras morrem, até porque a língua envelhece. Mas, por exemplo, um homem como Gil Vicente, eu acho que é um homem... o maior homem de teatro que nós tivemos. Ainda hoje basta ler um bocadinho de Gil Vicente para a gente se começar a rir, para a gente visualizar imediatamente situações. O que se passa é que a gente perde essa preparação linguística, mas por exemplo se o senhor for educado na aldeia e conhecer um bocadinho o vocabulário da aldeia basta-lhe isso para entender Gil Vicente. Eu conheço uma mulherzinha que é minha comadre na aldeia dos meus pais que fala como Gil Vicente. O Gil Vicente percebe-a com certeza melhor do que eu: o mesmo vocabulário, as mesmas expressões, as mesmas comparações, esse tipo de coisas.
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P. – Falando dessa função lúdica da cultura, do rir com Gil Vicente. Naquele confronto que existe sempre entre Eça de Queiroz e Camilo. Camilo não é também um exemplo dessa vertente lúdica ou humorística.

....R. – Sim, aliás, o Eça também.

....P. – Mas mais refinado...

         R. – Sim, talvez, talvez, mais afrancesado. Talvez... Camilo... mas olhe, eu deveria abster-me de dizer isto, mas no fundo eu não aprecio muito o Camilo. Isto é uma questão de gosto. Ele tem coisas engraçadas, A queda dum Anjo, por exemplo, é engraçado, mas... não é autor do meu tempo, já há uma certa distância histórica em relação a ele, ao passo que o Eça, se pudesse estar no meio de nós, começava a falar e a gente começava todos a rir, a interessar-se, etc.

P. – Voltando à influência do positivismo: é claro que houve una influência muito grande do positivismo no Brasil, mas também houve uma grande reacção. Há aquele episódio de Canudos, do António Conselheiro...No fundo é o choque duma cultura que vem de fora, essa é a ideia de António Quadros.

R. – O António Quadros diz muita coisa…. Não, Canudos... aquilo é um país disperso, em que o nível de cultura das massas é baixo. Mas isso não tem nada que ver com o positivismo.

P. – Mas o Sampaio Bruno é um exemplo dessa reacção...

R. – Sim, o Sampaio Bruno é outra coisa. O Sampaio Bruno é um homem que vale a pena ler, insere-se na polémica anti-positivista, mas eu creio que Canudos… Quem vê bem aquele episódio de Canudos é aquele cineasta brasileiro que esteve aqui há anos, o Glauber Rocha.

P. – E na obra de Euclides da Cunha, Os Sertões. Também o Mario Vargas Llosa escreveu a História da Guerra do Fim do Mundo sobre o episódio de Canudos...

R. – Bem, no fundo Canudos é um fenómeno de um país profundamente cristianizado.

P. – E até que ponto é que o positivismo não deformou o século XIX e ainda hoje se nota bastante? Em Direito ainda hoje se tenta muito reagir contra esse positivismo. Até que ponto esse positivismo não será também uma atitude mental mais fácil?

R. – Não sei, é uma atitude dogmática, é uma atitude pouco especulativa, pouco inquisitiva. Desgraçado país...olhe, esta coisa é espantosa: quando veio o 25 de Abril houve a ideia da criar cadeiras de materialismo dialéctico, como se as pessoas não tivessem já bastante disso, não é? E eu uma vez assisti a uma sessão na Faculdade de Letras, de comemoração não sei de quê, e disse: «o que é preciso não é criar cadeiras de materialismo dialéctico, é criar cadeiras de idealismo dialéctico, isso é que os portugueses não sabem». A falta de especulação…, mas caímos sempre na mesma coisa: aqui nós, no extremo da Europa, somos um país entre areias, pinhais e calhaus... No fundo, isto é o fim, é o fim da Europa, não é? 

P. – O exemplo das cadeiras de materialismo dialéctico... Havia uma certa hegemonia marxista...

R. – Havia.

P. – E, ultrapassada essa hegemonia marxista, criou-se se uma certa situação de vazio nas Ciências Sociais …

R. – Pois é, pois é, precisamente pela nossa incapacidade filosófica.

P. – Mas essa incapacidade filosófica é um defeito da nossa cultura ou a nossa cultura define-se à margem da Filosofia?

         R. – Não sei, há coisas que nunca se saberão.

         P. – Mas, à parte de não existir essa tendência filosófica, o português deve ser talvez um dos povos que mais gosta de discorrer sobre si próprio. Há uma tendência de autognose e de autocrítica constante, no fundo isso talvez seja a substituição da filosofia que não temos...

R. – Mas isso pode ser um sentimento de insegurança, em primeiro lugar em relação aos espanhóis. Portugal está sempre a interrogar-se sobre si próprio porque tem à porta o vizinho espanhol e começa logo por duvidar de si próprio.

P. – E então essa insegurança não levou ao estabelecimento duma relação política privilegiada com a Inglaterra e duma relação cultural com a França?

R. – Não, mas isso é completamente diferente. A Inglaterra é um país longínquo, é um país que não tem nada de comum connosco, é um país em que nós só podemos aproveitar a tecnologia ou a economia. A Inglaterra é um país colonizador, e é por isso que o Oliveira Martins detestou sempre a Inglaterra, desde os primeiros tempos até à morte, porque ele achava que a Inglaterra é que tinha dividido a Espanha, tinha feito aqui uma testa-de-ponte, como em Gibraltar, e, portanto, favoreceu esse movimento autonomista que existiu. Existiu naturalmente, é preciso dizer isto; é preciso dizer que este país tem peculiaridades diferenciais. Mas em relação a Inglaterra, o problema é que os ingleses foram sempre os exploradores disto. Quem é que fez o vinho do Porto? Por exemplo, agora até vinho verde eles fazem …

         P. – Então como vê a relação cultural com a Espanha?

         R. – Eu vejo como solução uma aproximação melhor, um melhor conhecimento da cultura portuguesa pelos espanhóis, porque não têm nenhum. Mas isto através sobretudo dos poetas. O Fernando Pessoa, por exemplo, tem tido um grande sucesso em Espanha e aí está como, digamos, o factor espiritual pode ter inclusivamente consequências materiais; por exemplo, a quantidade de editores que estão agora a explorar o Pessoa, coitado, que nunca recebeu um tostão por coisa nenhuma.

         P. – Então e, por exemplo, aqueles encontros de poetas galaico-durienses ou galaico-minhotos?

R. – Pois, isso está bem, nisso acredito.

P. – Uma forma de relação com a Espanha...

R. – Não é bem com a Espanha, é com a Galiza. É que a Galiza não é Espanha. É Espanha politicamente mas eu geralmente tenho a tendência para não ligar a essas divisões políticas. A Galiza é a Galiza. Encontra-se, claro está, dentro das fronteiras de Espanha e, portanto, das autoridades espanholas, da televisão espanhola e, portanto, enfim, do ensino da cultura espanhola.

 P. – Bem, não sei se o maçamos mais… Muito obrigado.

 R. – Não, mas olhe, foi muito bom conversarmos porque estive imenso a falar de coisas em que habitualmente não penso e que hoje estive a pensar.  
 
 
 
António Araújo, Miguel Nogueira de Brito e Pedro Franco