Porventura uma das mais admiráveis narrativas sobre
qualquer comunidade operária: George Orwell, 1936, o relato das condições de vida dos
mineiros do Norte de Inglaterra
No ano que precede a sua ida para Barcelona, onde
participou na guerra civil de Espanha, em plena frente, George Orwell passou 2
meses numa perfeita intimidade com a comunidade operária de Yorkshire e
Lancashire. Pergunta-se como foi possível termos sido arredados da tradução de
um relato luminoso, feito da observação direta, alguém que convive com a
sujidade, pobreza, deploráveis condições de trabalho nas minas, questiona a
assistência social face a um desemprego sem precedentes. É óbvio que a segunda
parte do trabalho, onde Orwell dá o seu próprio testemunho ideológico, está
completamente datado e não possui o impacto literário que é sua vida em terras
mineiras. É um relato que tinha fins claros, falar das condições deprimentes
nas regiões industriais no norte do país. A impressão que ainda hoje nos
provoca este documento é estarrecedora. Logo no arranque desta prosa que nos
prende irremediavelmente: “Os primeiros sons da manhã eram os do matraquear dos
tamancos dos operários descendo a rua empedrada. Éramos geralmente quatro a
dormir neste quarto, e bem feio lugar era este, com aquele aspeto de
transitória profanação dos quartos desviados do fim a que se destinavam.”
Descreve o lugar detalhadamente, quem ali habita, a família explora o negócio,
a clientela mais permanente, a sujeira omnipresente, até a sordidez à mesa: “Ao
pequeno-almoço davam-nos duas fatias de bacon, um ovo estrelado descorado, e
pão com manteiga que muitas vezes fora cortado de véspera e apresentava sempre
as marcas do polegar. Por mais diplomáticas que fossem as minhas tentativas,
nunca consegui levar o Sr. Brooker a deixar que fosse eu a cortar o meu pão com
manteiga; tinha de ser ele a passar-mo fatia a fatia, cada uma deles firmemente
agarrada sob aquele enorme polegar sujo. O almoço consistia em geral de um
daqueles pudins de carne que se vendem em latas prontos a comer. Para a hora do
chá havia mais pão com manteiga e uns bolos a desfazerem-se. Ao jantar, um
queijo de Lancashire mole e descorado e bolachas.” E não deixa de anotar o que
sentiu quando dali partiu: “O comboio levou-me dali, através de monstruoso
cenário de escombreiras, chaminés, montões de sucata, carreiros de lama de
cinzas com as marcas dos tamancos que se entrecruzavam. Estávamos em março, mas
o tempo estivera horrivelmente frio e por todo o lado se viam montes de neve
enegrecida.” E recomeça o texto com uma observação quanto à importância do
carvão na civilização do tempo: “A nossa civilização está assente no carvão, de
um modo mais completo do que alguém imagina até parar para pensar nisso. As
máquinas que nos mantêm vivos e as máquinas que fazem as máquinas dependem
todas elas direta ou indiretamente do carvão. No metabolismo do mundo
ocidental, o mineiro de carvão ocupa o segundo lugar mais importante a seguir
ao homem que lavra a terra. O mineiro é uma espécie de cariátide encardida
sobre cujos ombros assenta quase tudo o que não é encardido.” E quase com
brutalidade vamos descer com ele ao fundo de uma mina de carvão, um dos mais
impressionantes textos que me foi dado ler, vale a pena exemplificar: “A
primeira impressão que temos, que se imporá a todas as mais durante algum
tempo, é o estrépito medonho, ensurdecedor, do tapete rolante que transporta o
carvão para fora. Não se consegue ver até muito longe porque o nevoeiro formado
pelo pó de carvão nos devolve o feixe de luz da lanterna, mas é suficiente para
vermos a cada um dos nossos lados a fileira de homens ajoelhados, em intervalos
de quatro ou cinco metros, enfiando as pás por debaixo do carvão retirado e atirando-o
com um movimento rápido por cima do ombro esquerdo. É deste modo que alimentam
o tapete rolante, uma tira de borracha em movimento que corre a um metro ou
dois por detrás deles. Através deste tapete flui constantemente um rio
cintilante de carvão.” E impõe-se descrever o trabalho e os homens: “É um
trabalho terrível o deles, um trabalho quase sobre-humano medido pela bitola de
uma pessoa comum. Porque não só removem quantidades monstruosas de carvão, como
ainda por cima o fazem numa posição que duplica ou triplica o esforço. São
obrigados a manter-se de joelhos o tempo todo – seria difícil levantarem-se sem
baterem no teto – e alguém que tem de fazer o mesmo não terá dificuldade em
compreender o tremendo esforço que isso envolve. Manejar uma pá é comparativamente
fácil quando se está em pé, porque se pode usar o joelho e a anca para dar
impulso à pazada; se ajoelhados, todo o esforço se concentra nos músculos do
braço e do ventre. E o resto das condições não torna as coisas propriamente
mais fáceis. Há o calor e o pó do carvão que entope a garganta e as narinas e
se acumula nas pálpebras, e o matraquear incessante do tapete rolante, que
naquele espaço confinado mais parece o matraquear de uma metralhadora. Só vendo
os mineiros no fundo da mina e nus poderemos entender que homens
extraordinários eles são. Na sua maior parte são de pequena estatura, mas quase
todos apresentam o mais nobre dos corpos; ombros largos num tronco que se vai
estreitando até à cintura delgada e flexível, nádegas pequenas pronunciadas e
coxas musculosas, sem uma ponte carne a mais em parte nenhuma. Nas minas mais
quentes usam apenas uns calções leves, tamancos e joelheiras; nas minas ainda
mais quentes, só tamancos e joelheiras. Pela figura mal se pode ver se são
novos ou velhos. Podem ter qualquer idade até aos 60 ou mesmo 65, mas quando os
vemos completamente pretos e nus todos têm o mesmo aspeto.” Iremos saber os
seus horários de trabalho como mais tarde conviveremos com as suas famílias e
conheceremos a sua habitação. E descemos ao fundo da mina como se pode imaginar
o fundo dos infernos, é um texto que se retém para o resto da vida: “Entramos
na jaula, que é uma caixa de aço com a largura de uma cabine telefónica e duas
ou três vezes o seu comprimento. Cabem lá dentro 10 homens, mas que ficam
apertados coo sardinhas em lata, e um homem alto não pode ficar direito em pé.
A porta de aço fecha-se atrás de nós e alguém, manejando o guincho que fica lá
em cima, larga-nos no abismo. A meio da descida, a jaula chega a atingir uma
velocidade de 100 quilómetros à hora, provavelmente. Quando nos arrastamos para
fora a chegar ao fundo estaremos talvez a uma profundidade de mais de 350
metros.” E começa o percurso pelas galerias, caminha-se curvado, é preciso
andar de gatas, o regresso deixa-nos completamente extenuados. E Orwell observa
a toda a volta o que se passa debaixo da terra, as máquinas, os ruídos, os
horários, as folhas de salário, questiona os acidentes, as doenças terríveis:
“São propensos a sofrer de reumatismo e um mineiro com problemas de pulmões não
dura muito naquele ar saturado de pó, mas a doença profissional mais
característica é o nistagmo. Trata-se de uma doença dos olhos que faz com que
os globos oculares oscilem de um modo estranho quando perto da luz. Deve-se
presumivelmente ao trabalho em condições de semiobscuridade e por vezes conduz
à cegueira total.” Iremos percorrer estas cidades industriais, os falanstérios,
conversar com desempregados, saber como se gere a magreza dos rendimentos, e
Orwell despede-se com um registo da família da classe operária, ele próprio se
sente emocionado com uma paisagem cultural que minimamente não previa. Não
conheço documento literariamente tão impressionante como este.
De leitura obrigatória, acresce a belíssima tradução.
Mário Beja Santos