sábado, 27 de maio de 2023

São Cristóvão pela Europa (218).

 

 

Em Abril, passei também por dois departamentos franceses situados no Norte do País: um apropriadamente chamado Nord, o outro o departamento de Pas de Calais. Ambos pertencem à região de Hauts de France.

No departamento do Nord, comecei por Valenciennes, cidade que pertenceu ao Ducado da Borgonha como grande parte desta Região. Aqui Carlos o Temerário reuniu o 12º capítulo da Ordem do Tosão de Ouro. Foi o último sob a égide da Borgonha, na Igreja de São Paulo, destruída na Revolução Francesa juntamente com o Convento dos Dominicanos:

 


 

Já aqui mostrei a estátua de são Cristóvão, da autoria de Pierre Schleiff (1601-1641) que está no Museu de Belas Artes de Valenciennes e é proveniente da Igreja de São Nicolau.

No exterior encontra-se uma réplica:

 


A poucos quilómetros, na comuna de La Sentinelle, existe um nicho com uma pequena imagem representando o nosso Santo:

 



Em Gouzeaucourt, uma pequena Capela de São Cristóvão tem uma imagem no topo:

 



 

 

                                                                            Fotografias de 22 de Abril de 2023

 

                                                                                                              José Liberato







quarta-feira, 24 de maio de 2023

São Cristóvão pela Europa (217).

 

 

Obra-prima da pintura europeia do Século XV é o retábulo Agnus Dei da autoria sucessiva dos irmãos Hubert Van Eyck (1366-1426) e Jan Van Eyck (1390-1441).

Inaugurado em 1432, foi encomendado para a Catedral de Gand, a Catedral de São Bavon ou São Bavão em português.

Objecto de um profundo restauro foi colocado em 2020 na Capela do Santíssimo Sacramento em condições excepcionais de apresentação.

A sua história é muito atribulada. Esteve em risco de ser queimado pelos iconoclastas, foi roubado por Napoleão e esteve exposto no Louvre. Caído Napoleão, foram devolvidos alguns painéis, mas outros foram vendidos ao Rei da Prússia e expostos num museu em Berlim.

Foram roubados na I Guerra Mundial pelos alemães que os reuniram aos que já estavam na sua posse, mas perdendo a Guerra, tiveram de os devolver na integralidade

Em 1934 dois painéis foram roubados, mas só um foi encontrado. O exibido hoje é uma cópia.

Durante a II Guerra Mundial esteve depositado em Pau em França, mas foi apreendido por Hitler. No final da Guerra é colocado numa mina de sal na Áustria e salvo pelos Monuments Men de ser dinamitado. Há um filme de George Clooney sobre este grupo de militares.

Trata-se de um políptico que pode ser apreciado fechado e aberto. Fotografei-o não obstante os reflexos.

Fechado é assim:

 


Estes painéis já foram amplamente descritos pelo nosso amigo Ademar Marques pelo que não vou repetir o que ele escreveu.

http://malomil.blogspot.com/2021/10/em-busca-do-tosao-de-ouro-portugues-de.html

Só sublinhar o aspecto interessantíssimo de haver quem defenda que o modelo que serviu para a imagem da Sibila de Cumas (terceiro pequeno painel a contar da esquerda em cima) ser na realidade Isabel de Portugal, Duquesa da Borgonha, que havia casado em 1430 com o Duque da Borgonha Filipe III o Bom.

Lembremos que Jan Van Eyck veio de propósito a Portugal pintar dois retratos da princesa, filha do nosso rei D. João I. Foram enviados ao Duque por dois caminhos diferentes, mas nenhum deles chegou aos dias de hoje, embora existam cópias.

 


Quando aberto, o retábulo apresenta-se desta maneira gloriosa:

 




Mas trago o retábulo aqui por alguma razão…

É que no painel da direita em baixo podemos ver São Cristóvão conduzindo os peregrinos. Curiosamente não se vislumbra o rio habitual na iconografia. Apresenta-se como gigante, descalço e com o seu cajado.

 

 


 

Esta é a Catedral vista do exterior:

 

 

Numa outra capela da catedral encontramos ainda uma imagem do nosso Santo:

 


 

                                                                        Fotografias de 24 de Abril de 2023.

 

                                                                                                        José Liberato






domingo, 21 de maio de 2023

Carta de Bruxelas.

 





                                                                    O regresso das palavras

 


O texto com que Charlotte Delbo abre o livro, A Medida dos Nossos Dias, incluído em Auschwitz e Depois (CFB Editores, 2018, pp. 315-321), intitula-se significativamente «O regresso». Não se trata de tornar a uma Ítaca abandonada a contragosto e tomar posse do mundo que nunca se perdeu: os rostos familiares, os objectos ordenados como lhes compete, as ocupações próprias de uma condição social e os deuses que zelam pela harmonia do todo. Através dos perigos arrostados, Ítaca permanece o Norte magnético: corrige os desvios, anula os erros e, sobretudo, é a memória que vivifica, que tanto mais estende as suas asas acolhedoras e fiéis quanto mais demorado e acidentado é o regresso. Quanto mais longe dela, mais brilha a origem. À memória que guia Ulisses como a varinha do vedor indica a água, fonte da vida, responde a memória que guia Penélope nas suas astúcias, de olhos postos no que há-de vir. O reencontro será feliz e rico: uma realidade confirmada e potenciada pelo tempo vivido.

A experiência concentracionária do regresso é de outra ordem.  A viagem de regresso, conforme descrita por Delbo, desrealiza gradualmente as sobreviventes, como se o mundo normal arrebatasse a vida dos regressadas.  Em primeiro lugar e, num aparente paradoxo, depois da fome concentracionária, no próprio corpo, «[v]ia-as [as companheiras] a transformarem-se sob os meus olhos, tornarem-se transparentes, tornarem-se vagas, tornarem-se espectros.» Uma tal desaparição física, corpórea, não é um dado, um facto bruto. Pelo contrário, deriva da experiência mais originária da perda de sentido. É a linguagem que dá a medida da realidade. Por isso, Delbo acrescenta de imediato «[a]inda as ouvia, mas começava a não perceber o que diziam.» A libertação, o ansiado regresso, não é o reencontro com um mundo abandonado, o reconhecimento em comunhão com o que lá ficara, paciente, esperando. À chegada, o mundo desapareceu, os outros desapareceram, o próprio eu solta as amarras; erra, desliza, flutua, são os verbos que Delbo usa repetidamente. Fora do mundo, «[n]ão sentia nada, não me sentia existir, não existia.»  Para se reapossar do mundo é necessário – precisamente o oposto de Ulisses e Penélope – um esforço de memória, «mas porque dizer: um esforço de memória se já não tinha memória?» A cabeça esquecida é a cabeça vazia, incapaz de reflectir, «como reflectir, quando já não se possui uma única palavra, quando se esqueceram as palavras todas?» E, no entanto, esse momento de suspensão da continuidade do eu é necessário como uma reacção química que aparentemente isola os elementos de um composto. É nele que se funda a passagem entre duas condições de vida incomensuráveis. Uma passagem entre uma linguagem concentracionária que Primo Levi por momentos julgou possível, como se pudesse existir uma experiência verdadeira do Lager, verdadeira precisamente no sentido de ser dada numa linguagem própria, sem um denominador comum com a linguagem normal. Uma linguagem que não fosse uma linguagem do mundo da vida, da experiência humana, mas da morte, da morte em vida. O tempo da incompreensão a que se refere Delbo não deixa de poder ser compreendido. Significa isso que também nesse meio tempo houve linguagem, por mais tacteante que tenha sido. Com ironia, e sempre com espanto, interroga-se: «Quanto tempo fiquei assim, em suspensão de existência? (Como vêem, depois voltei a encontrar as palavras).» A resposta à pergunta está dada entre parêntesis: o tempo durante o qual não encontrou as palavras. Esse é o tempo em que o seu corpo não tinha peso, a sua cabeça não tinha peso, chegando ao extremo do que começara com a desrealização das companheiras, também elas sem peso, também elas sem palavras compreensíveis. Um exemplo claro que evidencia a ligação umbilical aos outros e ao mundo, por esta ordem e pela linguagem.

O regresso às palavras, ou talvez melhor, o regresso das palavras faz-se pela recusa da possibilidade de uma linguagem do Lager. A linguagem dos homens normais retoma o seu lugar quando se nega o privilégio da verdade ao Lager, como se aquilo fosse a verdade do homem perante o qual a vida normal fosse falsa. Delbo dá conta da sensação de estranheza, de inautenticidade, no encontro com os outros e, ratificando o modelo hermenêutico do texto como um tu, com os livros. «Tal como baixava os olhos para não ver as caras porque as caras se despiam sob os meus olhos, porque, a partir do momento em que as fixava, via tudo das pessoas através das caras delas, e isso incomodava-me ao ponto de ser obrigada a baixar os olhos, e também me afastava dos livros porque via através das palavras. Via a banalidade, a convenção, o vazio. [...] Tudo, caras e livros, era falso, tudo me mostrava a própria falsidade [...].» A falsidade geral só pode ser medida pela linguagem pseudo-verdadeira do Lager, que é a linguagem adâmica satanicamente invertida. Em vez da identidade plena e feliz entre coisa e palavra, é uma identidade degradada, já não a identidade da vida mas sim a da morte em vida, como se o acto de desumanização fosse a verdade. Por isso, a descrição de Delbo do regresso das palavras não acompanha um processo de reconstrução da linguagem a partir de elementos quimicamente isolados. A palavra vem como palavras, num sistema impreciso, indefinível, enigmático: «Como é que tudo se passou? Não sei. Um dia, peguei num livro e lio-o.» Ou seja, deixou de «viver num mundo sem mistério». Não lhe é possível calcular esse momento em que passa a haver sentido; não por acaso, o logos grego foi traduzido por ratio mas também por verbum.

Num texto breve (Voltar do campo voltar ao normal, pp. 371-373), Delbo vê o regresso à vida como a saída da história. Que história? Não a história com maiúscula, a epopeia cumulativa da Humanidade, nem, em declinações famosas, a história que lê o passado à luz de uma ideologia. Trata-se antes da história que diz o que cada qual é, que o esbulha da sua interioridade; a história que transforma o homem numa superfície, sem mistério, sem perigo e, por isso, sem banalidade, sem inautenticidade e sem falsidade. Já não é história, é mitologia, que rouba o tempo e dele faz espaço exterior. É a palavra – fatum – que vem do exterior, avassaladora, cega como uma aluvião que soterra as casas e as vidas. Sair da história para entrar na vida não é um momento de criação que seja acessível aos não concentracionários. Dá testemunho do nascimento da linguagem e da vida antes da história. A vida regressada tem de excluir o horror absoluto como factor capaz de alterar todas as contas. O que não acontece por inércia, por esquecimento; mas por uma decisão. «Inspirar piedade, não, não queria, mas para admitir que Auschwitz não entra na balança do deve e do haver, precisamos de nos endurecer brutalmente.» (p. 412).  Se a luta de Jacob o deixou marcado por um poder superior a quem pede a benção, aos concentracionários a luta com o mal legou-lhes uma maldição: endurece-te brutalmente. Talvez Primo Levi ou Jean Améry tenham sucumbido a uma tal maldição, o que amplia a lista dos agravos. Charlotte Delbo não. Viu o mal e lutou. Talvez se tenha endurecido brutalmente, a forma de coxear que Auschwitz lhe impôs, mas venceu o mal regressando à vida, à vida toda, à vida até ao fim.

 

                                                                                                            João Tiago Proença

     






sexta-feira, 19 de maio de 2023

São Cristóvão pela Europa (216).

 


 

Mâlines (Mechelen em flamengo) é uma cidade da Bélgica cheia de História.

Sede do primeiro Tribunal de Contas, criado por Carlos o Temerário, é posteriormente a cidade de Margarida de Áustria, grande protectora do seu sobrinho Carlos V até chegar à maioridade.

A Igreja de São João Baptista é uma das inúmeras igrejas da cidade. Essencialmente do Século XIV é belíssima. Assistiu a todas as desgraças da História, em particular nesta Região: incêndios, explosões, guerras.

Em 2008, a igreja foi restaurada e nos trabalhos revelaram-se frescos do Século XIV que anteriormente se encontravam tapados. E, como é habitual, São Cristóvão surgiu.

Várias vezes visitei a igreja sem acesso aos frescos. Foi agora.

O estado de conservação não é brilhante, mas impressiona a descoberta de algo que esteve escondido durante vários séculos:

 



 

Antuérpia é a segunda cidade da Bélgica.

A Catedral de Nossa Senhora de Antuérpia é o monumento mais marcante da cidade. Pela sua dimensão (ocupa um hectare de superfície) e pelas suas obras de arte.

Nestas avultam várias telas de Peter Paul Rubens (1577-1640). Como sempre de grandes dimensões e de enorme beleza.

Dispunha da informação de que uma das telas representava São Cristóvão. Mas os quadros de Rubens na Catedral são quatro e nenhum é sobre o nosso Santo.

O mistério foi resolvido quando percebi que um dos quadros é um tríptico, susceptível de se fechar. Trata-se da extraordinária Elevação da Cruz. Depois de fechado o tríptico, lá está São Cristóvão:

 





 

                                                                      Fotografias de 23 e 24 de Abril de 2023

 

                                                                                                            José Liberato


terça-feira, 16 de maio de 2023

São Cristóvão pela Europa (215).

 

 

A Igreja de São Martinho e São Cristóvão em Moorsele é do Século XVI, mas as suas origens remontam o Século XII.

 


Moorsele é uma povoação hoje fazendo parte do município de Wevelgem na Província da Flandres Ocidental na Bélgica. Como muitas outras localidades da Região sofreu devastações sucessivas em diversas guerras religiosas e nas guerras mundiais, em especial na Primeira.

A igreja contem um óleo representando o nosso Santo:

 


 

Na Valónia, Província de Hainaut, perto da cidade de Tournai, situa-se a comuna de Celles. A igreja paroquial é dedicada a São Cristóvão e é do Século XV.

 


No interior, um altar com a imagem do Santo e um tríptico evocando episódios da Sua lenda. Em mau estado.

 


O vitral da direita evoca São Cristóvão:

 



Um outro vitral representa o Santo numa imagem mais tradicional. Há também um grande mural:


 


 

                                                                                   Fotografias de 23 de Abril de 2023

 

                                                                                   José Liberato






quinta-feira, 11 de maio de 2023

São Cristóvão pela Europa (214).

 


Flobecq é uma comuna belga na Província de Hainault.

Se bem que pertencendo à Valónia e sendo francófona, situa-se na fronteira linguística entre o flamengo e o francês. É uma comuna “à facilités”, o que no jargão belga significa que o cidadão se pode exprimir perante a Administração numa língua nacional diferente daquela que é a oficial. No caso, a língua oficial é o francês mas pode utilizar-se o flamengo.

A igreja paroquial é dedicada a São Lucas mas possui muita iconografia de São Cristóvão:

 

 

No interior, uma imagem:

 




Um vitral representando o Santo:




E outro representando o seu martírio:



Numa aldeia da comuna, La Houppe, há uma Capela de São Cristóvão:

 



No interior, a respectiva imagem:




                                                                    Fotografias de 23 de Abril de 2023

 

                                                                     José Liberato


Um gigante da literatura visitou a URSS do deus Estaline e denunciou a fraude.

 


 


 

Nunca entendi como um documento histórico e documental como o que André Gide escreveu por ocasião da sua viagem à URSS, em 1936, jamais tenha conhecido tradução portuguesa. Posso perceber que o Estado Novo não consentiria que um dos maiores vultos da literatura contemporânea, alicerçado em ideologia anticapitalista, que tenha feito o elogio fúnebre de Máximo Gorki, em plena Praça Vermelha, perto de Estaline e outros consagrados da época, viesse dizer abertamente que guardava a esperança a despeito das monstruosidades que observara, algumas bem próxima das que podiam ser praticadas pelo regime de Adolfo Hitler. Teria sido o maior embaraço para a nossa despótica censura. Mas que em democracia tenha preciso chegarmos em 2023 para conhecer este primor da escrita e a tremenda denúncia deste espírito independente é para mim incompreensível. É urgente conhecer e guardar nas estantes Regresso da URSS, por André Gide, Publicações D. Quixote, 2023.

Antes de mais, o primor literário, temos aqui observações esplendentes do consagrado Prémio Nobel da Literatura de 1947. Oiçam só: “Garanto que há qualquer coisa de trágico na minha aventura soviética. Enquanto entusiasta convicto, fui para admirar um novo mundo, e ofereceram-me, para seduzir, todas as prerrogativas que eu detestava no antigo.” Dirá no prefácio que houvera da sua parte admiração e amor pela URSS. “Ali, ocorria uma experiência sem precedentes que nos enchia os corações de esperança, e da qual esperávamos um progresso imenso, um impulso capaz de arrastar toda a humanidade. Nos nossos corações e nos nossos espíritos, ligávamos decididamente o destino glorioso da URSS ao futuro da própria cultura.” Visitou, percorreu largos troços do país, assediado pela classe política e pelo aparelho do partido comunista, preferiu ir conversar com gente política, o que permitiu ditar a seguinte observação: “Ali existe o bom e o mau; direi mesmo: o excelente e o pior. O excelente foi obtido muitas vezes à custa de um enorme esforço. O esforço nem sempre obteve, em toda a parte, aquilo que pretendia obter. Pode por vezes pensar-se: ainda não. Por vezes, o pior acompanha em dobro o melhor. E passa-se do mais luminoso ao mais sombrio com uma brusquidão desconcertante. Acontece com frequência que o viajante, de acordo com convicções pré-estabelecidas, seja apenas sensível a um ou ao outro. Demasiadas vezes, os amigos da URSS recusam-se a fazer o mal, ou pelo menos a reconhecê-lo; de modo que, demasiadas vezes, a verdade sobre a URSS é dita com ódio, e a mentira com amor.”

Não esconde a alegria profunda que usufruiu no contacto direto, em acampamentos infantis ou estaleiros, por exemplo, afirma mesmo que em nenhum outro lugar contacto com quem quer que seja se estabelece de forma tão fácil. Observou as numerosas filas em que centenas de pessoas esperam pacientemente; constata a indolência de muitos, uma massificação sem gosto, móveis feios; e não esconde o seu completo desapontamento com a falta de liberdade de opinião, a fábrica de manipulação montada pelo comunismo: “Na URSS, é aceite à partida e uma vez por todas que, sobre qualquer questão, não pode haver mais do que uma opinião. Além disso, as pessoas têm uma mente tão condicionada que esse conformismo se torna fácil, natural, insensível, ao ponto de não parecer que haja qualquer hipocrisia nisso.” E refletindo sobre tantos padrões de falta de qualidade dirá que a felicidade dos operários russos é feita de esperança, confiança e ignorância. Mais adiante, dirá mesmo que o cidadão soviético vive numa extraordinária ignorância do estrangeiro. “Convenceram-no de que tudo no estrangeiro, em todos os domínios, corre muito pior do que na URSS. Esta ilusão é habilmente mantida, pois é importante que todos, por menos satisfeitos que estejam, se congratulem com o regime que os preservem dos piores males.”

Deu-lhe para perceber que estava à assistir à reconstituição de camadas da sociedade ou mesmo de classes, via-se à vista desarmada o aburguesamento, o espírito pequeno-burguês. E procurou observar as diferentes tiradas ou palavras de ordem, o uso inflacionado de contrarrevolucionário. “O menor protesto, a menor crítica está sujeita às piores penas.” E empregará uma frase que lhe merecerá pesadas críticas quando o livro foi publicado: “Duvido que em qualquer outro país, mesmo na Alemanha de Hitler, o espírito seja menos livre, mais limitado, mais receoso (aterrorizado), mais submissivo.”

Todo este discurso de André Gide irá pôr os comunistas franceses em rebuliço, como é que aquele gigante literário, convidado pelo deus Estaline a discursar sobre Máximo Gorki se atreveu a escrever: “A efígie de Estaline está em toda a parte, o seu nome em todas as bocas, e os louvores que lhe são feitos surgem também sem falta a todos os discursos. A duração, amor ou medo, não sei; sempre e em toda a parte ele está presente.” A receção do seu escrito foi alvo de um vendaval. Gide atrevera-se a fazer reparos, ao nível de um qualquer “contrarrevolucionário”: fizera críticas demolidoras à guerra antirreligiosa, ao condicionalismo férreo das mentalidades, a maus-tratos a trabalhadores agrícolas. Gide não perdeu tempo, respondeu aos insultos, apreciou algumas críticas de boa-fé, e para surpresa do leitor verificará que o genial escritor de Os Moedeiros Falsos estava altamente documentado, como se não tivesse viajado à procura de ver a esperança, e reponta com os moralistas que o criticam: “Uma análise superficial, um julgamento apressado, foi dito do meu livro. Como se não fosse precisamente a primeira impressão, na URSS, o que nos encantou! Como se não fosse ao olhar mais profundamente que encontrámos o pior. É no fundo do fruto que o bicho se esconde. Mas quando digo que esta maçã tem bicho, acusam-na de não ver claramente ou não gostar de maçãs. Se me tivesse contentado em admirar, não me teriam feita essa censura; e nesse caso, seria merecida.”

E rebate as acusações que lhe fazem, ponto por ponto, deita por terra as infantilidades dogmáticas, lembra que esse colosso do cinema que era Serguei Eisenstein foi obrigado a uma autocrítica idiota, teve que parar um novo filme por não estar de acordo com as exigências da doutrina; desmonta a propaganda de que estava a pôr termo ao analfabetismo, de que o operariado era altamente participante, todo um embuste, os sovietes já não funcionavam, e volta-se para os comunistas franceses para os acusar de não terem mentido aos operários.

Não se deve ler a primeira narrativa de Gide sem se ler a sua resposta aos críticos, a altíssima qualidade da sua escrinha não desfalece, desmonta as mentirolas sem humilhar os fanáticos.

Trata-se de um relato magistral na denuncia da monstruosidade do estalinismo. Gide foi à URSS atraído pelas questões sociais e não esconde a desilusão de ver a esperança tão maltratada.

De leitura obrigatória. 


Mário Beja Santos