Aclamado como um dos
livros mais importantes de 2022, e não só da literatura espanhola, Montevideu,
por Enrique Vila-Matas, Publicações Dom Quixote, 2023, é o que se podia chamar
uma viagem no quarto do escritor, imobilizado depois de uma operação com transplante
de rim, o escritor catalão que é considerado como a figura literária
contemporânea espanhola de topo resolve fazer uma incursão um tanto
fantasmagórica, dando como pretexto que estava em crise de imaginação, uma
crise que vai desencadear um corrupio de enigmas, saltitando em cidades de dois
continentes, obcecado vai parecer com a
porta de um quarto de um hotel, ao tempo chamado Cervantes, houve ruídos,
descobre uma ligação de quartos, começará uma digressão alucinante. Vários
críticos deste fenomenal romance chamam a atenção para um parágrafo:
“Converteste-te nos últimos tempos num escritor ao qual as coisas acontecem de
verdade. Oxalá compreendas que o teu destino é o de um homem que deveria estar
já a desejar a elevar-se, renascer, voltar a ser. Repito-te: elevar-se.
Nas tuas mãos está o teu destino, a chave da porta nova.”
Uma das características
dominantes da obra é enfatizar quer a ambiguidade do mundo, na sua modernidade
líquida de relações que aparentam ser densas, afetivas, atenciosas e não passam
de comportamentos artificiais, sorrisos postiços, atendedores automáticos onde
uma voz melodiosa promete um encaminhamento rápido.
Como se inicia a viagem?
O escritor está em Paris e deixa claro que deixou de escrever. Pode ser que
tenha deixado de ter coisas para contar, ou de quando está a contar não conta
tudo, isto não esquecendo que há também uma tendência para narrar sem dizer
nada. Percorre bares icónicos de Montparnasse, há um turbilhão de referências
de muita cultura, fala-se do cineasta Werner Herzog, o escritor Antonio
Tabucchi, de Herman Melville, mas também de Kakfa, cotejam-se memórias
infindáveis, vamos sendo arrastados nesta viagem alucinante que mete autores e
obras, ganha corpo um encontro com Madeleine Moore, irá ter consequências, ela
terá escrito uma obra que não mereceu os melhores elogios deste seu amigo
barcelonês. Posta esta digressão parisiense, há uma transferência de memória
para Cascais, fora convidado para um festival de cinema pelo produtor Paulo
Branco, reconheceu-o no terraço do hotel, Jean-Pierre Léaud, que se celebrizara
num filme de culto, Os Quatrocentos Golpes, de Truffaut, irá agitar-se a
altas horas da madrugada com as risadas do quarto ao lado, daí desliza para
outros episódios, nisto recebe a notícia que lhe morrera o pai, regressa a
Barcelona.
Agora sim, entrámos nesse
mundo enigmático que mete portas, quartos contíguos, sinais e estranhas vozes.
O pretexto é dado por um conto do escritor Julio Cortázar, intitulado A
Porta Condenada, tudo se passa no hotel Cervantes em Montevideu, o
protagonista da história é Petrone. De noite, no quarto, Petrone ouve o choro
de um bebé. Falando na manhã seguinte com o gerente, fica a saber que não há
crianças no hotel, o choro permanece. Agora o autor está em Montevideu e quer voltar
ao local do hotel Cervantes. Aquele quarto não tivera número, agora era o 205.
Ali instalado, vasculha tudo. Desloca-se o armário, fica a descoberto a metade
de uma porta, ele teme avançar com tudo às escuras, bloqueia a porta
entreaberta. “Porém, ao sentar-me na minha cama, ouvi que no quarto às escuras
havia um objeto, certamente mínimo, que rolava, três intermináveis segundos,
pelo chão.”
Neste ponto do romance
vem-me à memória uma obra cinematográfica que também aparece com a crise de
inspiração, trata-se do filme 8 e ½, de Frederico Fellini, parece que o filme
está condenado a não existir porque o realizador sente-se completamente seco, o
emocionante vem depois, com a chegada dos elementos associados ao filme que
parecia estar projetado ele realizar, encontros e desencontros, memórias de
infância, somos arrastados e isso é o assombroso do génio de Fellini na
torrente desta criatividade, presumíveis cenas reais que vão engalanar a
construção do filme até ao seu climax. É o que se passa aqui em Montevideu,
aqueles dois quartos do antigo hotel Cervantes entram em cena e nunca mais de
lá saem, já se este em Paris e Cascais, faz-se menção de algo que se passou com
portas em Reiquiavique, depois na Suíça em St. Gallen, Bogotá, Barcelona, de
novo Paris, como se de novo se fechasse o círculo. Entra e sai gente da trama
da obra, relações que se enlaçam e desenlaçam rapidamente, o autor viaja, vai
fazer conferências de temas insípidos. E volta a Barcelona. Mário Desdini,
filho de um bom amigo, pede para encontrar o autor, este aproveita a
oportunidade já que o jovem é estudante no Instituto de Matemáticas de Orsay,
em Paris, de lhe contar tudo o que se passara, ele procura dar uma explicação:
“Os caminhos aleatórios são caminhantes que se decidem passear ao acaso num
determinado labirinto. O tipo de pergunta interessante é: voltam sempre ao
ponto de partida, ou conseguem escapar? É uma questão, em muitos casos, fácil
de responder, porque só há duas forças que competem: uma é a geometria do
labirinto, e outra o caráter aleatório do passeio. A ideia é que, quando o
caminhante regressa à origem, o jogo volta a começar esquecendo o passado, de
maneira que a probabilidade de voltar x vezes à origem é a mesma probabilidade
de que x caminhantes, no mesmo labirinto, voltem ao ponto de partida, à origem,
uma vez.” Reaparece Madeleine Moore, estamos de novo em Paris, haverá uma
retrospetiva da obra desta no Centro Pompidou, reaparecerá um quarto único, de
novo um quase estado alucinatório de quarto sem saída, de novo um enredo sem
fim, embora a artista lhe tenha dado uma chave para abrir a porta do fundo, com
a possibilidade de entrar num quarto contíguo, tudo vai falhar, procuram-se
explicações que não têm resposta, agora dá-se um salto até à Suiça, conversa-se
na Biblioteca Medieval de St. Gallen, volta-se a falar em Julio Cortázar,
Enrique Vila-Matas volta de novo ao hotel e ao quarto que dera origem ao conto
de Cortázar, caminhamos para o fim da viagem, que ele escreve assim:
“Quando alguém passa uns
meses a escrever em redor de um espaço com mistério, este vai-se tornando
obsessivo para ele e pode acabar por acontecer que o choque enormemente que
alguém mais possa falar desse espaço que ele tem tão alojado na mente.” E em
jeito de despedida, para tornar tudo mais intricado, abre caminho para uma
solução dos enigmas:
“Tive uma recordação da
minha mãe, que, uma manhã, depois de lhe ter perguntado com insistência por que
razão o mundo era tão estranho, se postou no meio do Paseo de San Juan me disse
que já estava cansada da pergunta e que ia dizer-mo pela última vez: o grande
mistério do universo era que houvesse um mistério do universo.”
Imperdível, obviamente.
Mário Beja Santos