sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Elevar-se, renascer e voltar a ser, uma fantasmagoria com portas e quartos, uma obra-prima.




 

Aclamado como um dos livros mais importantes de 2022, e não só da literatura espanhola, Montevideu, por Enrique Vila-Matas, Publicações Dom Quixote, 2023, é o que se podia chamar uma viagem no quarto do escritor, imobilizado depois de uma operação com transplante de rim, o escritor catalão que é considerado como a figura literária contemporânea espanhola de topo resolve fazer uma incursão um tanto fantasmagórica, dando como pretexto que estava em crise de imaginação, uma crise que vai desencadear um corrupio de enigmas, saltitando em cidades de dois continentes, obcecado  vai parecer com a porta de um quarto de um hotel, ao tempo chamado Cervantes, houve ruídos, descobre uma ligação de quartos, começará uma digressão alucinante. Vários críticos deste fenomenal romance chamam a atenção para um parágrafo: “Converteste-te nos últimos tempos num escritor ao qual as coisas acontecem de verdade. Oxalá compreendas que o teu destino é o de um homem que deveria estar já a desejar a elevar-se, renascer, voltar a ser. Repito-te: elevar-se. Nas tuas mãos está o teu destino, a chave da porta nova.”

Uma das características dominantes da obra é enfatizar quer a ambiguidade do mundo, na sua modernidade líquida de relações que aparentam ser densas, afetivas, atenciosas e não passam de comportamentos artificiais, sorrisos postiços, atendedores automáticos onde uma voz melodiosa promete um encaminhamento rápido.

Como se inicia a viagem? O escritor está em Paris e deixa claro que deixou de escrever. Pode ser que tenha deixado de ter coisas para contar, ou de quando está a contar não conta tudo, isto não esquecendo que há também uma tendência para narrar sem dizer nada. Percorre bares icónicos de Montparnasse, há um turbilhão de referências de muita cultura, fala-se do cineasta Werner Herzog, o escritor Antonio Tabucchi, de Herman Melville, mas também de Kakfa, cotejam-se memórias infindáveis, vamos sendo arrastados nesta viagem alucinante que mete autores e obras, ganha corpo um encontro com Madeleine Moore, irá ter consequências, ela terá escrito uma obra que não mereceu os melhores elogios deste seu amigo barcelonês. Posta esta digressão parisiense, há uma transferência de memória para Cascais, fora convidado para um festival de cinema pelo produtor Paulo Branco, reconheceu-o no terraço do hotel, Jean-Pierre Léaud, que se celebrizara num filme de culto, Os Quatrocentos Golpes, de Truffaut, irá agitar-se a altas horas da madrugada com as risadas do quarto ao lado, daí desliza para outros episódios, nisto recebe a notícia que lhe morrera o pai, regressa a Barcelona.

Agora sim, entrámos nesse mundo enigmático que mete portas, quartos contíguos, sinais e estranhas vozes. O pretexto é dado por um conto do escritor Julio Cortázar, intitulado A Porta Condenada, tudo se passa no hotel Cervantes em Montevideu, o protagonista da história é Petrone. De noite, no quarto, Petrone ouve o choro de um bebé. Falando na manhã seguinte com o gerente, fica a saber que não há crianças no hotel, o choro permanece. Agora o autor está em Montevideu e quer voltar ao local do hotel Cervantes. Aquele quarto não tivera número, agora era o 205. Ali instalado, vasculha tudo. Desloca-se o armário, fica a descoberto a metade de uma porta, ele teme avançar com tudo às escuras, bloqueia a porta entreaberta. “Porém, ao sentar-me na minha cama, ouvi que no quarto às escuras havia um objeto, certamente mínimo, que rolava, três intermináveis segundos, pelo chão.”

Neste ponto do romance vem-me à memória uma obra cinematográfica que também aparece com a crise de inspiração, trata-se do filme 8 e ½, de Frederico Fellini, parece que o filme está condenado a não existir porque o realizador sente-se completamente seco, o emocionante vem depois, com a chegada dos elementos associados ao filme que parecia estar projetado ele realizar, encontros e desencontros, memórias de infância, somos arrastados e isso é o assombroso do génio de Fellini na torrente desta criatividade, presumíveis cenas reais que vão engalanar a construção do filme até ao seu climax. É o que se passa aqui em Montevideu, aqueles dois quartos do antigo hotel Cervantes entram em cena e nunca mais de lá saem, já se este em Paris e Cascais, faz-se menção de algo que se passou com portas em Reiquiavique, depois na Suíça em St. Gallen, Bogotá, Barcelona, de novo Paris, como se de novo se fechasse o círculo. Entra e sai gente da trama da obra, relações que se enlaçam e desenlaçam rapidamente, o autor viaja, vai fazer conferências de temas insípidos. E volta a Barcelona. Mário Desdini, filho de um bom amigo, pede para encontrar o autor, este aproveita a oportunidade já que o jovem é estudante no Instituto de Matemáticas de Orsay, em Paris, de lhe contar tudo o que se passara, ele procura dar uma explicação: “Os caminhos aleatórios são caminhantes que se decidem passear ao acaso num determinado labirinto. O tipo de pergunta interessante é: voltam sempre ao ponto de partida, ou conseguem escapar? É uma questão, em muitos casos, fácil de responder, porque só há duas forças que competem: uma é a geometria do labirinto, e outra o caráter aleatório do passeio. A ideia é que, quando o caminhante regressa à origem, o jogo volta a começar esquecendo o passado, de maneira que a probabilidade de voltar x vezes à origem é a mesma probabilidade de que x caminhantes, no mesmo labirinto, voltem ao ponto de partida, à origem, uma vez.” Reaparece Madeleine Moore, estamos de novo em Paris, haverá uma retrospetiva da obra desta no Centro Pompidou, reaparecerá um quarto único, de novo um quase estado alucinatório de quarto sem saída, de novo um enredo sem fim, embora a artista lhe tenha dado uma chave para abrir a porta do fundo, com a possibilidade de entrar num quarto contíguo, tudo vai falhar, procuram-se explicações que não têm resposta, agora dá-se um salto até à Suiça, conversa-se na Biblioteca Medieval de St. Gallen, volta-se a falar em Julio Cortázar, Enrique Vila-Matas volta de novo ao hotel e ao quarto que dera origem ao conto de Cortázar, caminhamos para o fim da viagem, que ele escreve assim:

“Quando alguém passa uns meses a escrever em redor de um espaço com mistério, este vai-se tornando obsessivo para ele e pode acabar por acontecer que o choque enormemente que alguém mais possa falar desse espaço que ele tem tão alojado na mente.” E em jeito de despedida, para tornar tudo mais intricado, abre caminho para uma solução dos enigmas:

“Tive uma recordação da minha mãe, que, uma manhã, depois de lhe ter perguntado com insistência por que razão o mundo era tão estranho, se postou no meio do Paseo de San Juan me disse que já estava cansada da pergunta e que ia dizer-mo pela última vez: o grande mistério do universo era que houvesse um mistério do universo.”

Imperdível, obviamente.


                                                                                                    Mário Beja Santos




quinta-feira, 28 de setembro de 2023

São Cristóvão pela Europa (235).

 


 

Prosseguindo no distrito austríaco de St. Veit an der Glan, em Deutsch-Griffen situa-se a Igreja de São Tiago, do Século XII.

Ostenta um fresco de São Cristóvão, do fim do Século XIV.


 


 

Em St. Peter bei Tagenbrunn, a igreja de São Pedro também tem o seu mural.

 



 

Na aldeia de Karnberg, a igreja de São Martinho tem um São Cristóvão deteriorado. Como já expliquei, o facto de alguns frescos estarem mutilados pela construção de uma janela deriva muitas vezes de a janela ter sido construída em época em que o fresco se encontrava ainda oculto.

 



No município de Liebenfels, na sede do município e nas aldeias de Sörg e Glantschach, encontrei imagens do nosso Santo.

Os Bombeiros de Liebenfels têm um mural no seu quartel:

 


Em Sörg, a igreja paroquial homenageia São Martinho. É uma belíssima igreja fortificada e possui também um mural representando São Cristóvão:

  



Finalmente em Glantschach, a Igreja de Santo André com o seu fresco:

 



                                                                Fotografias de 31 de Julho de 2023.

 

                                                                                                    José Liberato


sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Uma prosa tão segura e formosa que ganhou a intemporalidade.

 


 

 

Diplomata e teatrólogo, o asturiano Julián Ayesta escreveu o seu único título de ficção em 1952, é um registo tão vivo e admirável que passadas estas décadas engrenamos sem qualquer dificuldade na Espanha destes anos 1950 e somos galvanizados por um quadro que tem tanto de idílico como de rigoroso da transição da infância para a adolescência, do relato saímos esmagados, ninguém pode prever tanta simplicidade a descrever os afetos que qualquer um de nós pôde experimentar ou sonhar, poucas coisas há de tão sublime como o primeiro amor.

Logo o arranque da prosa, um almoço no jardim: “O doce de ginja brilhava vermelhíssimo entre as vespas amarelas e pretas e o vento remexia os ramos dos carvalhos e as manchas do sol corriam sobre o musgo, sobre a erva macia e húmida e sobre a cara dos convidados e das mulheres e dos homens que estavam a fumar e a rir todos ao mesmo tempo. E brilhavam também os cálices azuis do Marie Brizard e os talheres de sobremesa. E os pontinhos de luz – os grandes perseguindo os pequenos, corriam sobre a toalha cheia de nódoas roxas de vinho e de migalhas.”

É, pois, um cenário sensorial, luzes, risos, cheiros, notas de conversas, uma cadeira que se partiu. E todos partem para a praia, de tarde, porque o melhor banho era ao fim da tarde, e o retrato volta a encenar-se com a descrição daqueles familiares à beira-mar, os comentários chocarreiros, aquela tia que nadava com umas pulseiras que nunca tirava, e não faltava a comida, logo a tortilha, depois a limpeza dos restos do banquete, começavam a aparecer as estrelas. Era assim que se passava o verão, os primos eram ainda meninos, o tio Arturo vinha contar histórias às meninas, ao deitar havia lutas de almofadas no quarto das raparigas, os rapazes vieram para a brincadeira, torna-se percetível que Helena irá ter um papel central em toda a trama.

A obra muda de prisma e rotação, é o ideário católico quem mais ordena, desvela-se o que vai na cabeça de uma criança, o sofrimento de Jesus na cruz, a presença de Lúcifer, a submissão à autoridade da Igreja, a inquietação pelo pecado mortal, o papel do diretor espiritual, a permanente ansiedade de afastar os maus pensamentos e maus pensamentos podia ser imaginar uma mulher a fazer as suas necessidades, e então ficava-se enojado, mas havia o refúgio em Nossa Senhora, o autor entra numa aparente deriva sobre tais sonhos até lugares exóticos para se chegar ao quadro do arrependimento: “E escondíamos a cabeça entre as mãos e chorávamos, com os olhos ardendo de raiva pela nossa miséria, e depois, quando esse primeiro arrebatamento passava, chorávamos com uma pena e uma dor muito fundas, que nos faziam pele de galinha, e se puséssemos a mão no peito reparávamos que quase não nos batia o coração. Era uma grande tristeza pela distância de Deus, porque Ele não nos via nem nos escutava e não se importava que O amássemos nem que estivéssemos dia e noite a lutar contra o Diabo.” E daqui se transfere a graça de Deus para a sala de jantar e para as conversas corriqueiras, e as alegrias à mesa, surgia um quadro de harmonia, que assim se exprimia: “Eu senti uma felicidade tão grande por dentro que todo o meu corpo tremia e eu ria sem saber porquê. Sentia-me cheio da graça de Deus, em paz com Deus e, com todas as pessoas que amava amigas e felizes a meu lado, teria adorado que o mundo parasse naquele momento e que o tempo deixasse de passar e que aqueles instantes durassem para sempre.”

E virá de novo o verão, faço relevo à burra e ao jardineiro, que era o dono da carroça que vinha buscar os primos que chegavam de Madrid para passar o verão. Mais prosa com todos os sentidos: “Há uns prados cobertos de orvalho e outros já cheios de sol e papoilas. Cheirava a morangos de maio e ao sol azul (…) As ruas de Gijón estão com uma sombra lilás muito limpa e fresca e não há quase ninguém porque as ruas de manhã estão perfumadas pelo cheiro das algas do mar.”

A família reencontra-se, chilreiam comentários leves, é a alegria do reencontro, há paragens para beber cidra, cantarola-se. Helena ganha forma: “Começava a fazer calor e passavam vespas a zumbir e moscas brilhantes. Ao fundo, entre as árvores, viam-se prados verdes, aldeões trabalhando entre os milheirais, carros azul-claros, bois e uma nesga de mar. Vinha um cheiro da erva húmida aquecida pelo sol do meio-dia, e eu, morto de felicidade, com Helena a meu lado, semicerrava os olhos e mergulhava no fundo dos meus pensamentos. Pensava no verão que me esperava junto a Helena, sob aquele céu, entre os prados verdes, os rios e as árvores, sabendo que ela gostava de mim, e quase se me enchiam os olhos de lágrimas.” E há um passeio pelo bosque, a ternura do encontro a dois, ele aproxima-se, ela tenta fugir, ela foge depois de o morder, dá-se a reaproximação, Helena põe-lhe um curativo na ferida, recomeça a perseguição, lá vai ele, felicíssimo. Temos agora a tarde e o crepúsculo, de novo o convívio, o fumo dos charutos dos homens, a sala de jantar mergulhada na penumbra e desse escuro ouvem-se as cigarras e os grilos. Vão até à praia os dois. “Helena e eu íamos calados. De vez em quando, Helena parava, colhia umas quantas amoras e oferecia-me metade. E continuávamos a caminhar muito próximos, sem dizer nada, mas tremendo. Algumas vezes o meu amor – que era a Helena, tão linda, com a pele tão morena e o cabelo tão louro e os olhos azuis e tão livre e valente – parava outra vez para apanhar amoras e picava-se num espinho. Oferecia-me então o seu dedo ensanguentado e eu chupava-lhe o sangue, que era tão vermelho, tão salgado, tão lindo cintilando ao sol.”

E chegam à praia, pequena e de difícil acesso, lançam-se contras as ondas frias, bancas e espumosas, nadam juntos, o autor socorre-se da antiguidade clássica, e aquele jovem, tremendo, com voz rouca, confessa o seu amor a Helena, e ela corresponde.

E esta noveleta que já não tem idade termina de uma forma ímpar:

“Não falámos mais. Íamos juntos, sós, entre o silêncio do crepúsculo. Íamos só entre o silêncio do mundo. Sós entre o silêncio do tempo. Sós para sempre. Juntos e sós, andando juntos e sós entre o silêncio do mundo e do mar e do mundo, andando andando. E tudo era como um grande arco e nós íamo-lo atravessando e do outro lado estava o nosso mundo e o nosso tempo e o nosso sol e a nossa luz e a nossa noite e as estrelas e os montes e os pássaros e sempre…”

Há um poder de sugestão, uma magia das palavras que se desprende deste relato da iniciação amorosa, uma tremenda elegância na forma que nos embarga a leitura, e chegamos ao fim com a convicção que um dia a ela retornaremos, tal a sua intemporalidade que nos recorda a inocência perdida.


Mário Beja Santos



quinta-feira, 21 de setembro de 2023

O mais pungente relato de sobrevivência nos campos da morte nazis.

 





 

 

Livro publicado em 1958, é um relato que nos toca desde a primeira página por uma serenidade que vai evoluindo para o quadro de uma existência onde pontifica, como único objetivo encontrar uma razão para sobreviver, vendo os familiares e amigos partirem para fornos crematórios e, todos os outros, levarem a existência mais degradante que se possa imaginar. Noite, por Elie Wiesel, Publicações Dom Quixote, 2023, é uma dolorosa viagem desde uma pequena cidade da Transilvânia até aos campos da morte onde se consumou o Holocausto. É então o autor um jovem de quase 13 anos, profundamente crente, estudioso do Talmude, assíduo frequentador de uma sinagoga hassídica (o hassidismo é um dos movimentos judaicos). Estamos em 1941 e de repente começaram as expulsões dos judeus estrangeiros levados pela polícia húngara. Alguém volta no final do ano seguinte e alerta para o extermínio judaico. A comunidade em que ele se insere recebe notícias maravilhosas da frente russa, estava-se na primavera de 1944. Nisto surgem os soldados alemães, começam os decretos humilhantes, criam-se guetos, segue-se a deportação, abandona-se tudo, Eliezer segue com a família, pais e irmãs, para um novo gueto e depois a estação do caminho de ferro. Até aqui, temos uma descrição comum a muitos outros relatos. O título desta narrativa é metafórico, a noite transfigura, a alvorada é longínqua, é o lastro da vida de cada um que faz resistir, superar o negrume do mais horrendo dos presentes que a existência pode oferecer.

A bestialidade manifesta-se na viagem de comboio, viajam esfomeados, surgem casos de loucura, e assim se chega à estação de Auschwitz, Birkenau. Homens à esquerda, mulheres à direita, em fila de cinco, Eliezer mente, diz que tem 18 anos, segue no grupo dos homens, por ali perto passeia-se o famoso Dr. Mengele, já não há ilusões, os fornos crematórios estão a funcionar. E há aqui uma nota que nos prende por inteiro: “Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca esquecerei aquele fumo. Nunca esquecerei os pequeninos rostos das crianças cujos corpos eu vi transformarem-se em espirais sob um céu mudo. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram para sempre a minha Fé. Nunca esquecerei aquele silêncio noturno que me privou, para a eternidade, do desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram o meus Deus e a minha alma, e que transformaram os meus sonhos em cinzas. Nunca esquecerei, mesmo que tenha sido condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.”

E entramos num cenário da crueldade, da desumanidade, vestidos de farrapos, o cabelo rapado, os amigos e vizinhos encontram-se e choram, parece que desapareceu o instinto de sobrevivência, o amor próprio. Eliezer procura amparar-se com o pai, são lhes destinados trabalhos rudes, um oficial das SS avisa-os: “Auschwitz não é uma casa de repouso. É um campo de concentração. Aqui, têm de trabalhar senão, vão direitos para a chaminé. Para o crematório.” São as chamadas incontáveis. Eliezer sai de Birkenau e vai para Auschwitz. Um responsável do bloco, um jovem polaco, fala-lhes com humanidade: “Um longo caminho repleto de sofrimento espera-vos. Mas não percam a coragem. Já escaparam ao perigo mais grave: a seleção. Reúnam as vossas forças e não percam a esperança. Todos veremos chegar o dia da libertação. Afastem o desespero e assim de vós afastarão a morte. Somos todos irmãos e sofremos todos o mesmo destino. Ajudem-se uns aos outros. É a única maneira de sobreviverem.” Procuram-se familiares e amigos, a quem ali acaba de chegar e pergunta onde encontrar os seus familiares, o melhor é mentir, dar um pouco de esperança. Os médicos selecionam quem vai para o crematório ou quem continua no trabalho desumano, tudo ao som de uma marcha militar.

Os dentistas retiram coroas de ouro, o Terceiro Reich precisa de ouro. Os bombardeamentos do exército salvador são insistentes, pressente-se que a guerra caminha para o colapso nazi. Há enforcamentos exemplares, os alemães estão implacáveis. A esperança dos judeus ainda não desfaleceu, é o que o autor descreve na véspera do Roch Hashaná, abençoado seja o Eterno, eleva-se a voz do celebrante entre as lágrimas, os soluços e os suspiros da assistência, vem depois o Yom Kippur, o dia do Grande Perdão, Eliezer sente um grande vazio. Estamos já em janeiro de 1945, no meio de um grande sofrimento, Eliezer é operado a um pé. O pai de Eliezer está cada vez mais enfraquecido. Com o Exército Vermelho a aproximar-se, os judeus são forçados a marchar com a neve a cair em flocos, é uma descrição lancinante, percorrem-se povoações e são novamente transportados em vagões próprios para animais, procura-se desesperadamente sobreviver ao frio. “Um dia em que estávamos parados, um operário alemão tirou da sua sacola um bocado de pão e atirou-o para o vagão. Foi uma correria. Dezenas de homens esfomeados lutaram desesperadamente por causa de algumas migalhas. No vagão onde o pão tinha caído, uma verdadeira batalha tinha eclodido. As pessoas lançavam-se umas sobre as outras, pisando-se, dilacerando-se, mordendo-se. Aves de rapina soltas das amarras, com o ódio animal nos olhos: uma extraordinária vitalidade tinha-se apoderado delas, tinha aguçado os seus dentes e as suas unhas.” E assim chegaram ao campo de Buchenwald, é aqui que o seu pai vai falecer, não resistiu a tanto sofrimento. A 10 de abril, com os libertadores à porta do campo, há um movimento de resistência e os SS fugiram. À tarde chegou o primeiro tanque norte-americano.

Eliezer é transferido para um hospital onde passou duas semanas entre a vida e a morte. E assim finda este tão dramático e pessoal testemunho de um candidato à morte que sobreviveu e dedicou a sua vida a tantas causas da faz e que recebeu em 1986 o Prémio Nobel:

“Um dia, consegui levantar-me, depois de ter reunido todas as minhas forças. Queria ver-me ao espelho, que estava na parede em frente. Desde o gueto que não me via a mim mesmo.

Do fundo do espelho, um cadáver contemplava-me. O seu olhar nos meus olhos nunca me abandonou.” Alguém comentou que este testemunho dilacerante devia ser de leitura obrigatória para toda a humanidade. Faço votos para que assim seja.



Mário Beja Santos





domingo, 17 de setembro de 2023

São Cristóvão pela Europa (234).

 

 

A Catedral de Gurk é um dos mais importantes monumentos da Áustria.

A sua construção iniciou-se cerca de 1140 no local onde Santa Ema havia fundado um mosteiro.

O capítulo da Catedral (grupo que apoia o bispo na sua acção) comemora este ano o seu 900º aniversário.

 


Logo à entrada, um tríptico representando a morte de Nossa Senhora, ladeada à nossa esquerda por São Cristóvão e à direita por Nossa Senhora, Santa Ana e o Menino Jesus.




Numa parede, um enorme fresco representando São Cristóvão.

 


No tesouro da Catedral, um óleo sobre madeira que fez parte de um altar. Oriundo de Deinsberg e datado de cerca de 1480:

 


 

O tríptico que se segue é claramente inspirado pela actividade mineira.

Tem a data de 1514, é proveniente de Plezzut, na Região de Tarvisio, e está pintado sobre madeira de abeto.

Na predela (faixa que se situa na parte inferior de um retábulo), membros da família Staudacher, ligados à célebre família dos Fugger de que já aqui falei. À esquerda, os elementos masculinos, à direita os femininos. São certamente os mecenas do retábulo.

No centro, São Cristóvão e o profeta Daniel, muito venerado pelos mineiros na Idade Média. O fundo por trás dos santos constitui um documento histórico notável pois representa a actividade de exploração mineira no Século XVI com grande pormenor.

Do lado esquerdo ao cimo, Santo Erasmo exibindo os atributos da sua macabra tortura (os intestinos enrolados à volta de um guincho),

Em baixo, Santa Ana, Nossa Senhora e o Menino Jesus.

Do lado direito em cima, São Sebastião. No lugar da apresentação habitual amarrado a um poste e crivado de setas, é representado sentado num trono com as flechas na mão.

E finalmente em baixo, Santa Margarida.

 

 


Nos arredores de Gurk situa-se o município de Weitensfeld am Gurk. Aí encontrei imagens de São Cristóvão em três aldeias.

Em Zweinitz, a Igreja de Santo Egídio tem um mural exterior:


 



Em Altenmarkt, a igreja Paroquial de Santo Emídio e o seu mural:

 



  

E em Kaindorf, na sede dos Saboljeros Austria, clube de motociclistas, um mural com o nosso São Cristóvão.

 

 



 

 

                                                            Fotografias de 30 de Julho de 2023.

 

                                                                                        José Liberato






 [JL1]

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

São Cristóvão pela Europa (233)

 

 

No Norte do distrito de Völkermarkt situa-se Diex.

Na sede do município, a igreja de São Martinho revela muito da História da Região. É uma igreja fortificada, construída para resistir às invasões dos Turcos, como outras apresentadas neste post.



No exterior, um mural representando São Cristóvão. No interior uma imagem no altar do lado do Evangelho.



  



E entramos no Distrito de Sankt Veit an der Glan.

Ao longo do rio Gurk e à sombra dos Alpes de Gurktal, encontrei quatro aldeias com imagens do nosso Santo.

Em primeiro lugar, St. Oswald ob Hornburg, cuja igreja paroquial possui um fresco de São Cristóvão do Século XV, descoberto em 1982.

 


 

No município de Mölbling, passei por duas aldeias: Treffling e Meiselding.

Em Treffling, a igreja de São Miguel, românica, possui um fresco da primeira metade do Século XVI. Curiosamente, o fresco tem incrustados o que parecem ser cenotáfios.

 


 

Em Meiselding, a Igreja de Santo André, possui também um fresco representando São Cristóvão, descoberto em 1997, este muito danificado.

 

 


Strassburg é uma lindíssima cidade do vale do rio Gurk:

 

 

Neste município situa-se a aldeia de Lieding cuja Igreja de Santa Margarida possui vestígios de um fresco de São Cristóvão.

 


 

 

                                                            Fotografias de 29 e 30 de Julho de 2023

 

                                                                                                    José Liberato





segunda-feira, 11 de setembro de 2023

São Cristóvão pela Europa (232).

 

 

O município austríaco de Völkermarkt abrange a cidade capital do distrito do mesmo nome e várias aldeias que têm imagens de São Cristóvão.

A cidade situa-se nas margens do lago conhecido como Völkermarkter Stausee:

 



À entrada da cidade um stand da SKODA tem um mural

 



 

A igreja Matriz é dedicada a Santa Maria Madalena. Ao longo da História sofreu vários incêndios. Mesmo assim, subsistem partes que remontam ao Século XIII.

Exibe um fresco de São Cristóvão da segunda metade do Século XV e um altar representando os catorze santos auxiliares, entre os quais São Cristóvão. A estes estão adicionados São Nicolau, São José e São Lourenço, segundo a minha interpretação, diferente da oficial. Na parte inferior da tela, uma paisagem da cidade.






Quanto às aldeias do município, referirei St. Peter am Wallensberg, Gletschach, Haimburg e St. Martin.

A Igreja de St. Peter am Wallensberg possui, no seu exterior, um mosaico do controverso artista esloveno Marco Rupnik (nascido em 1954). Foi expulso este ano da Companhia de Jesus embora se mantenha padre. Em tempos foi excomungado pela Igreja, mas foi depois reabilitado. É também o autor dos mosaicos da Basílica da Santíssima Trindade em Fátima.

O mosaico tem uma curiosidade. Nele, o Menino Jesus tapa os olhos de São Cristóvão.




 

Em Gletschach, a Igreja de São Tomás tem um fresco exterior:




 

Em Haimburg, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção pertenceu a um convento. Tem um mural de São Cristóvão, do Século XVI, parcialmente oculto por um Cristo Crucificado




Finalmente, em St. Martin, a Igreja de São Martinho também possui um mural, de meados do Século XVI, representando São Cristóvão. Ao lado vestígios ténues do que seria um fresco do Santo, mas do Século XIV.

 



                                            Fotografias de 30 de Julho de 2023

 

                                                                            José Liberato