O Bristol Club era um
local de diversão nocturna existente nas primeiras décadas do século XX em
Lisboa, no cruzamento da Rua Jardim do Regedor com a das Portas de Santo Antão,
num prédio onde mais tarde esteve sediado o Benfica. Uma das portas da casa, na
Rua do Jardim do Regedor, ainda lá está, igual, com a sua decoração arte nova
em latão. Aberto em 1918, fechou no início de 1928, adiante veremos
porquê.
Porta (hoje) e cartaz do Bristol Club (anos 20).
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O Bristol era um dos
muitos “antros de perdição” do centro de Lisboa, como se dizia na boa imprensa.
Naquela zona – povoada por salas de espectáculos como o Coliseu dos Recreios, o
Politeama (aberto 1913), o Eden Theatro (1914), o Tivoli (1925), o Odeon (1927),
etc. – proliferavam então os clubs nocturnos, com salas de baile, salas de
jogo, bares, restaurantes e bilhares. A poucos metros do Bristol havia, nas
Portas de Santo Antão, o feérico Majestic Club, aberto em 1918. Nos anos 20
chamou-se Monumental e é a actual Casa do Alentejo. O primeiro club a aparecer em
Lisboa tinha sido o Maxim’s, que funcionou no Palácio Foz a partir de 1908, com
dancing, salas de jogo e roleta, bar e restaurante onde se podia comer pela
madrugada dentro. Nas Portas de Santo Antão o primeiro local nocturno a abrir
foi o Club Palace (1917), onde hoje está a Associação Comercial de Lisboa, que
era frequentado por uma dama francesa que animava o mercado retalhista da
cocaína na capital, segundo o bem informado “Repórter X”, Reinaldo Ferreira. A
lista dos clubes das années folles lisboetas
é longa, incluindo o pomposo Regaleira Club (Largo de S. Domingos, aberto em
1921), o Club Ritz (Restauradores), o Olympia Club (Rua dos Condes, 1911), o
Club Montanha (Rua da Glória), o Clube dos Patos (onde se depenavam os ditos,
sito no Largo do Picadeiro) e ainda o Club Mayer, depois Avenida Parque, o Club
Internacional, o Palais Royal e o Salão Alhambra, todos perto dali.
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Lino António, pintura sem título, 1925, para o Bristol Club (actualmente no CAM).
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Em 1925-1926, o Bristol
Club, que tinha aberto sete anos antes, foi inteiramente remodelado com
dispendioso investimento de Mário Ribeiro, o dono, na arquitectura, decoração e
iluminação interiores. Foi convidada a nata dos artistas portugueses para o
efeito, do arquitecto Carlos Ramos aos escultores Canto da Maia e Leopoldo de
Almeida, tendo sido adquiridas pinturas de Almada Negreiros, António Soares,
Eduardo Viana, António Soares, Lino António, etc. O Bristol ficou o mais moderno
club de Lisboa, muito elogiado também por visitantes estrangeiros, como os
escritores Ramón Gómez de la Serna e Valéry Larbaud.
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Lino António, Natureza Morta, 1925, para o Bristol Club (hoje CAM). |
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Juntamente com a
Brasileira do Chiado, que em 1925 cobriu as suas paredes de pinturas compradas
aos artistas modernistas, o Bristol Club tornou-se, no dizer de José-Augusto
França, no museu de arte moderna que a capital não tinha. Parte destes quadros
são hoje pertença do CAM da Fundação Gulbenkian e do Museu do Chiado.
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Eduardo Viana, Nu, 1925, para o Bristol Club (hoje Museu do Chiado).
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Eduardo Viana, Nu, 1925, para o Bristol Club (hoje CAM).
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Almada Negreiros, Nu, 1926, para o Bristol Club (hoje CAM).
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A revista ilustrada ABC publicou em 1927 uma série de capas
de promoção do Bristol Club, da autoria de Jorge Barradas, todas elas preenchidas
por “mulheres Bristol”, quer dizer, mulheres de cabelos à garçonne, de lábios,
rosto e olhos pintados, vestindo a última moda, quase sempre fumando e bebendo.
O Bristol ditou a moda do cabelo curto, da saia curta, da pintura e maquilhagem
generosas, da silhueta masculinizada, imagem feminina dali a pouco imitada por
mulheres de várias condições.
Capa da revista ABC por Jorge Barradas, Agosto de 1927.
Repare-se na flûte de champanhe.
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Raras flûtes de champanhe do Bristol Club à venda na Net.
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Uma capa e um original (CAM) com motivos Bristol, de Jorge Barradas, para a revista ABC, 1927. |
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Um dos maiores atractivos destes
clubs e do Bristol em especial era a música ao vivo e o dancing. O jazz e as
novas danças, como o charleston, one-step, fox-trot, rag, shimmy, tango, etc.
tinham ali os seus palcos por excelência. Quem não sabia dançar podia recorrer
aos serviços da Academia de Danças de Salão, convenientemente situada na Rua
das Portas de Santo Antão. Artistas femininas estrangeiras, contratadas como
cartaz, exibiam ali os seus dotes, alternando com espectáculos em teatros da
capital, como o Trindade, o Variedades e o Coliseu. O Bristol tinha uma
componente mais artística, associada à corrente modernista, visível no abundante
recurso à pintura e arte decorativa distintamente moderna, bem como em certo
tipo de eventos que ali tinham lugar, como um concurso de desenhos organizado
em 1925. O club gabava-se também ser “a mais completa galeria de arte de
Lisboa”. Mário Ribeiro, o proprietário, era considerado um mecenas.
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Capas Bristol de Jorge Barradas, para o ABC, Abril e Maio de 1927 . |
“Uma mulher Bristol”.
Capa de ABC por Jorge Barradas, Março de 1927
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Bohemios e papillons à volta do champanhe no Bristol.
Capa de ABC por Jorge Barradas, Junho de 1927
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Luta de classes
Como era frequentado exclusivamente
por gente endinheirada, o Bristol Club teve também a visita da organização
terrorista Legião Vermelha, que em Abril de 1925 ali foi tentar um assalto. O saldo
foi a morte de um conhecido bombista do bando e um ferido da casa, o porteiro.
A onda de assaltos aos clubes nocturnos foi assunto de reportagens gráficas do Domingo Ilustrado, semanário dirigido
por Leitão de Barros que relatava os crimes com grande realismo visual. Em
Dezembro de 1927 o semanário fechou para dar lugar ao Notícias Ilustrado. A Legião Vermelha foi recambiada para Timor, em
1929.
O assalto da Legião Vermelha ao Bristol Club (Domingo Ilustrado, 26 de Abril de 1925).
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Outro assalto a um club elegante (Domingo Ilustrado, 1 de Março de 1925).
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Ditadura Militar
O jogo, a prostituição e a cocaína, esta
denunciada nos jornais, foram os argumentos invocados pelas autoridades da
Ditadura Militar para, em 1927, começar a encerrar os clubes nocturnos – todos
eles, incluindo o Bristol, o Monumental, o Clube dos Patos e o velho Maxim’s,
que foi o último a fechar, em 1933. O jogo foi desterrado de Lisboa e oferecido
pela Ditadura em concessão à Estoril-Sol. Três quartos de século depois, o jogo
regressou à capital pela mão de Santana Lopes, novamente oferecido à
Estoril-Sol.
Fernando Pessoa letrista de fado
Em fins de 1927, quando os militares,
desgostados com a liberalidade dos costumes, estavam a encerrar os clubes
nocturnos lisboetas, Fernando Pessoa, então um adepto da Ditadura, escreveu o poema
com mote “Fado da Censura”, com o enigmático ante-título Cantiga do “Bristol”. Pessoa não era um frequentador desses clubes,
preferindo-lhes os cafés e as chamadas leitarias, “onde não bebia leite”. Mas tinha
amigos que eram assíduos desses locais, como José Pacheco, director da revista Contemporânea, em que fez publicidade ao
Bristol Club. O “Fado da Censura”, por definição impublicável, era contra a mordaça
censória, que já começara a incomodar o escritor. Uma cópia a químico do poema ficou
esquecida na famosa arca do autor, de onde só saiu há pouco tempo. Porque lhe
chamaria Pessoa “Cantiga do Bristol”? Talvez se destinasse a ser cantada nos
salões do dito, à porta fechada, talvez fosse um comentário à ameaça de
encerramento do clube, não sabemos. O alvo do poema era a “Guarda”, simbolizando
o regime policial e censório em gestação sob a Ditadura.
Começo da “Cantiga do Bristol” ou “Fado da Censura” (1927), original da BNP.
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Cantiga do “Bristol”
FADO DA CENSURA
Neste campo da Política
Onde a Guarda nos mantém,
Falo, responde a Censura;
Olho, mas não vejo bem.
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Há um campo lamacento
Onde se dá bem o gado;
Mas, no ar mais elevado,
Na altura do pensamento,
Paira certo pó cinzento,
Um pó que se chama
Crítica.
A Ideia fica raquítica
Só de sempre o respirar.
Por isso é tão mau o ar
Neste campo da Política.
Às vezes, nesta planura,
Se o vento sopra do
Norte,
O pó torna-se mais forte,
E chama-se então Censura.
É um pó de mais grossura,
Sente-se já muito bem,
E a Ideia, batida, tem
Uma impressão de pancada,
Como a que dão numa
esquadra
Onde a Guarda nos mantém.
O pó parece que chove,
Paira em todos os
sentidos,
Enche bocas e ouvidos,
Já ninguém fala nem ouve.
Se a minha boca se move,
Logo à primeira abertura
A enche esta areia
escura.
Só trago e me oiço
tragar.
É uma conversa a calar.
Falo, responde a Censura.
Vem então qualquer
vizinho,
Dos que podem abrir boca;
No braço, irado me toca,
E diz, “Não vê o caminho?
O seu dever comezinho
De patriota aí tem.
Vê o caminho e não vem?!”
Para isso, bolas aos
molhos!
Se este pó me entrou prós
olhos,
Olho, mas não vejo bem.
Nesse final de 1927, Fernando Pessoa
escreveu o famoso panfleto O Interregno.
Defesa e Justificação da Ditadura Militar, defendendo a necessidade de um
estado de transição chefiado pelos militares. O que poucos saberão é que a
folha volante original foi proibida pela censura da mesma Ditadura Militar. O
texto acabou por ser publicado em folheto, em 1928, com alterações.
José
Barreto
O charleston no Bristol Club Dancing.
Capa de ABC por Emmerico Nunes, Fevereiro de 1927.
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Fontes
Cecília
Santos Vaz, Clubs nocturnos modernos em
Lisboa: sociabilidade, diversão e transgressão (1917-1927),
tese
de mestrado, ISCTE, 2008.
José Augusto
França, Os Anos Vinte em Portugal,
Presença, 1992.
Manuel
Villaverde, “Rua das Portas de Santo Antão e a singular modernidade lisboeta
(1890-1925): arquitectura e práticas urbanas”, Revista de História de Arte , n.º 2 (2006), pp. 142-176.
Domingo Ilustrado (1925-1927), Hemeroteca Digital
Almanaque Silva,
“Em flagrante delírio”,
Blogue da Rua
Nove, “Chic? Só o Bristol Club”,
Caro José Barreto,
ResponderEliminarParabéns pelo excelente artigo sobre este histórico nightclub de Lisboa.
Tenho estudado estes espaços e recentemente tive oportunidade de os divulgar no meu livro "Roteiro do Jazz na Lisboa dos anos 20 - 50".
Pode dizer-me onde estão à venda as flutes do Bristol Club?
Envie-me por favor a resposta para joaomoreirasantos@gmail.com
Cordialmente,
João Moreira dos Santos
Um artigo muito interessante sobre os clubs de diversão e a vida nocturna de Lisboa na primeira metade do século XX, valorizado pelas ilustrações de quadros de conhecidos pintores modernistas e de capas d revista ABC, com desenhos de Jorge Barradas.Parabéns e obrigada.
ResponderEliminarExcelente artigo. Parabéns.
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