sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Camden, New Jersey.




 
 Camden, New Jersey
 
“Some of this actually happened”
 
 

 
Uma crónica de bons malandros é sempre um clássico que, na melhor tradição americana, geralmente acaba por nos entreter. Foi o que me aconteceu com American Hustle. Não sou cinéfilo, o filme está nomeado para 10 Óscares, não me encheu as medidas, mas gostei bastante do guarda-roupa, dos diálogos e, claro, da estética capilar.
 

 
 
 

 
Gostou do guarda-roupa, mas não lhe encheu as medidas? Ok…
 
 
 
Some of this actually happened
Confesso que ainda não tinha lido nada sobre o argumento, por isso fiquei curioso com o aviso deixado aos espectadores no início do filme: “Some of this actually happened”.
Numa rápida pesquisa online fiquei a saber que, embora seja ficcionado e com os naturais exageros, o guião tem por base a história verídica de uma operação do FBI “montada” para apanhar políticos e realizada no final dos anos 70 com o nome Abscam (Arab Scam ou Abdul Scam, na versão do FBI mais politicamente correcta). A história da operação fez história e várias personagens são relacionadas com protagonistas reais, como é o caso do bom vilão interpretado por Christian Bale, Irving Rosenfeld, na vida real Melvin Weinberg, ou do ambicioso polícia “caça-corruptos” da trama, Richie DiMaso, associado a um agente do FBI de nome Anthony Amoroso, Jr.

 
Melvin Weinberg

 

 
A operação, the real one, é rica em factos e em personagens, mas acabei por me deter no destino do Mayor de Camden, New Jersey, no filme, Carmine Polito (Jeremy Renner), nos idos anos 70, Angelo Errichetti.
 
O momento em que Carmine Polito sela a amizade com Irving Rosenfeld. A oferta de um micro-ondas:
 


 
 
 

No filme, Polito a receber uma oferta de um punhal das mãos do sheik.

Na vida real, Angelo Errichetti ao lado do “sheik do FBI”.
 
 
Angelo Errichetti, que morreu no início deste ano, era um político local popular, Mayor entre 1973  e 1981,  que foi detido em 1 de Dezembro de 1978 pelo FBI após receber um suborno em troca da promessa de uma licença para um casino em Atlantic City. Foi condenado e esteve preso durante 32 meses entre 1983 e 1986.


Angelo Errichetti, em 1978

 
Apesar da condescendência com que esta personagem política é tratada em diversos relatos, Angelo Errichetti parece fazer parte de uma muito pouco digna linhagem de políticos corruptos em que a municipalidade de Camden, New Jersey,  parece ser pródiga.
 Na Wikipedia (aqui),  ficamos a saber que, para além de vários recordes nas estatísticas de crime violento, Camden tem um notável currículo de três mayors  presos, na sua história recente. Para além de  Errichetti, também Arnold Webster, em 1999 e Milton Milan, em 2000, se revelaram demasiado criativos na função e acabaram presos. Webster fez-se pagar a si próprio 20,000$ dos fundos da rede de escolas públicas, da qual anteriormente tinha sido superintendente. Milan apresenta um cadastro público mais variado, que vai desde a acusação de lavagem de dinheiro do tráfico de droga, de receber subornos da máfia, à pitoresca história de simulação de roubo do seu próprio computador para receber o seguro e vendê-lo por três vezes o seu valor a um ingénuo estagiário (?!)  (aqui) Foi condenado a 6 anos de prisão.

Milton Milan, um antigo marine, que prometeu “dar a volta à cidade” e acabou preso.


Que injustiça! O nosso Mayor até fazia de Rei Mago e dava presentes às crianças…
 


Claro que Camden, New Jersey, é um caso sério de falhanço urbano e social, elevadas taxas de desemprego, associadas entre, outros fenómenos, à desindustrialização, e que vai muito para além destes episódios. Mas deixem-me referir só mais um caso. Trata-se do Senador Estadual Wayne R. Bryant, eleito no distrito eleitoral de Camden, e que entre 1995 e 2008,  além de outras acusações, terá desenvolvido um imaginativo e lucrativo esquema de remunerações por “no-show jobs” em troca de favores políticos. Foi condenado a 4 anos de prisão. 
O bom do senador queria aumentar a pensão, acabou na prisão:
 

 
Wayne R. Bryant


Sim, Camden, New Jersey não é propriamente o melhor exemplo de qualidade de governação e por isso não me devia ter espantado quando andava por outras leituras e descobri que foi a única cidade da história dos Estados Unidos a receber um bailout  estadual [i] 
A precisar de “marketing territorial”, ou uma simples relação causal? A primeira imagem que apareceu quando procurei Camden, New Jersey no Google:
 

O orçamento anual de Camden é de 150 milhões de dólares mas as receitas de impostos são apenas 25 milhões, e é graças em grande medida à “generosidade” dos contribuintes do Estado de Nova Jérsia que serviços como a recolha de lixo ou as escolas públicas têm sobrevivido na última década.
Anos 30:
 


 
Anos 2000:


 
Deprimidos? Animem-se. Apesar deste triste blues, Camden, New Jersey tem um fantástico Adventure Aquarium.

 
 
 

Segundo se pode ler aqui, neste “investimento âncora”, que iria revitalizar a economia e criar emprego, foram gastos 99 dos 175 milhões de dólares  destinados pelo plano de recuperação económica elaborado em 2002, quando o Estado assumiu a gestão do município.  De início só estavam previstos 25 milhões de dólares para a ampliação do Aquário, mas o "desenvolvimento" falou mais alto e outras infra-estruturas, como universidades e hospitais tiveram de ficar para trás.
O facto é que desde 2001 não há notícia de mais detenções de mayors, mas Camden New Jersey continua a ter um impressionante registo nos piores índices de desemprego dos Estados Unidos.

A actual Mayor de Camden, Dana L. Redd, com o Governador de New Jersey, a explicar o programa de intervenção do Estado nas escolas do município. (aqui)
 
Camden, New Jersey é uma notável combinação de corrupção, má governação e desagregação social.
Os efeitos do governo dos Carmine Polito desta vida têm mais piada nos filmes americanos do que na vida real.
 
Nuno Sampaio
 


 
 





 
[i] C. Randall Henning e Martin Kessler, Fiscal federalism: US history for architects of Europe’s fiscal union, Bruegel Essay And Lecture Series p.14




Porto, 1944.

 
 
 
 
 
Colecção Cortez Liberato



 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

From Russia with love.



Aleksandr Rodchenko




 
Russo morto à facada por preferir prosa em vez de poesia

Uma discussão entre dois russos sobre os méritos da poesia e da prosa acabou com um deles, um antigo professor, a matar o amigo à facada, disseram hoje investigadores.

Os dois amigos estavam a beber na cidade de Irbit, nos montes Urais, quando começaram a discutir literatura, «sobre qual dos géneros literários, poesia ou prosa, é mais significativo», de acordo com uma declaração dos investigadores da região de Sverdlovsk.

«O anfitrião insistiu que a verdadeira literatura era a prosa, enquanto o convidado, um antigo professor, defendeu a poesia», acrescentaram.

«A discussão literária tornou-se rapidamente num conflito e o amante de poesia, de 53 anos, matou o oponente à facada», disseram os investigadores. O antigo professor, que se escondeu em casa de um amigo, foi detido mais tarde.

Em Setembro passado, uma discussão entre dois amigos, na cidade de Rostov-on-Don, sobre qual dos dois gostava mais do filósofo alemão Immanuel Kant, acabou com um deles a alvejar o outro na cabeça. A vítima sobreviveu.




 
 
 



Zurique.

 
 
 
1956
(Colecção Cortez Liberato)





Fear Not.

 
 
 
 



 
         Sobre isto, sabe-se pouco, mas haveria muito a dizer. Andava aqui há meses para contar-lhe a história mas, num dia aziago, varreu-se-me tudo do espírito e fiquei no mato. Recentemente, acho que na semana passada, reapareceu-me outra vez tudo à frente e, graças a essa epifania internética, agora já posso escrever, não muito, sobre The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General Assembly. É uma obra de arte que nos esmaga o fôlego só de lhe dizermos o título. Aliás, nem sequer há a certeza de que tenha sido concebida como obra de arte. Muito provavelmente, não. Agora explique, quem puder ou souber, o que leva um homem solitário, sem dizer a ninguém, a alugar uma garagem e a passar todas as noites, cinco a seis horas, durante catorze anos, a fazer isto pela calada. Pouco se sabe do autor desta obra, ou desta coisa, hoje exposta no Smithsonian.




The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General Assembly



James Hampton nasceu em 1909, numa terreola da Carolina do Sul. O seu pai cantava gospel e era pregador, daqueles que vão pregar para fora e passam meses a pregar, a pregar, a pregar, deixando mulher e quatro filhos à espera em casa, com a mesa posta. Aos dezanove anos, Hampton Jr. saiu de casa de seus pais e foi viver para Washington, D.C. Andou aos biscates, foi cozinheiro em vários cafés e candidatou-se à função pública. Na ficha de candidatura, e como é próprio dos grandes artistas, parece que exagerou um bocadito nas habilitações literárias. Incorporado nas Forças Armadas aquando da 2ª Guerra, Hampton serviu no Texas, em Seattle, no Havai e nas selvas de Saipan e Guam. Como seu pai, também pregou, mas na modalidade de carpinteiro. Na tropa, de facto, foi carpinteiro, o que certamente lhe terá sido útil para mais tarde manufacturar The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General Assembly. Terminado o serviço militar, empregou-se como porteiro da General Services Administration, que é uma agência independente do governo federal que vê, com independência, como é que as outras agências do governo se estão a governar. Manteve esse emprego até à morte, a qual ocorreu de cancro. Entretanto, no dia 2 de Novembro 1950, apareceu-lhe a Virgem Maria, acompanhada da Estrela de Belém. Não era a primeira vez que tinha visitas de cerimónia: em 1931, já Moisés lhe tinha aparecido à frente, descendo sobre Washington, D.C. Inspirado por conhecer gente tão importante, James Hampton começou a pensar em fazer uma coisa em grande. Saíram 180 peças. Em folha de prata e alumínio, vidros de lâmpadas, cartão prensado, madeira e outros materiais, muitos dos quais apanhados no lixo. Várias peças têm versos bíblicos, uma ostenta a inscrição «Feita em Guam, em 14 de Abril de 1945», o que significa que talvez ainda Hampton estivesse no meio da selva, a carpintar no mato, e já andasse encrençado em fazer The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General Assembly. Era homem de poucas falas, mas chegou a dizer que gostava de ter uma «mulher santa» para o ajudar neste projecto. Não se sabe a quem terá dito isto, uma vez que não lhe conheceram amigos e morreu solteiro. Em 1950, alugou uma garagem e iniciou a obra. Saía da portaria do serviço por volta da meia-noite e metia-se ali, na garagem. Todas as noites, cinco a seis horas. Isto durante catorze anos. Não os passou propriamente sozinho, já que, segundo parece, Deus visitava-o de vez em quando, para vistoriar os trabalhos. Pelo menos, Hampton acreditava que sim. Uma senhora, que lhe levava comida à garagem, ficou maravilhada com a obra e contactou um jornal. Os repórteres foram lá, viram aquilo, riram daquilo, e por ali ficaram. Hampton morreu em 1964. A irmã, que veio da Carolina do Sul para reclamar o corpo, viu então The Throne pela primeira vez, e também ficou maravilhada. O senhorio propôs-lhe que ficasse com as 180 peças. Ela não tinha casa para guardar aquilo tudo. O The Throne, ainda vá. Mas era demais levar de volta o conjuntinho das 180 peças de The Throne of the Third Heaven of the Nations’ Millenium General Assembly O senhorio queria desamparar a garagem, mas, à semelhança do comendador Joe Berardo, era um homem muito consciencioso e sensível às artes. Achou que aquilo valia a pena ser visto. Chamou um repórter e este, ao contrário dos colegas que já lá tinham ido, não só não gozou com a naiveté da obra como escreveu sobre ela. Depois, por uma coincidência incrível, arrendou o espaço a um fotógrafo (ou escultor, noutras versões) que deu o devido valor àquilo e convocou pessoas entendidas, da National Collection of Fine Arts.




 
Diz-se que o senhorio só deu com a obra um mês depois de Hampton morrer, quando apareceu na garagem para reclamar da renda em atraso, 50 dólares mensais, e rebentou com o cadeado, ficando ofuscado com tanto brilho lá dentro. Talvez esteja certo, mas no melhor texto que li na Internet sobre o The Throne, afirma-se que Hampton terá dito ao senhorio: «That’s my life. I’ll finish before I die» (ver também este). É provável, portanto, que o senhorio tenha dado uma espreitadela naquilo que o seu inquilino andava a fazer. Quando, depois da morte de Hampton, pensava no destino a dar ao The Throne, o senhorio disse coisas de grande sabedoria bíblica: «You can’t just destroy something a man devoted himself to for 14 years». Mais certeiro ainda: «It seems to be an example of the futility of life.»




 

 

 
 
Ao que parece, a obra não chegou a ser acabada, pois os peritos descobriram na garagem mais uns acrescentos que Hampton queria acrescentar, mas entretanto morreu. Por outro lado, parece haver algo de mítico no meio desta mitologia toda, pois a ideia de um Hampton recluso e solitário parece exagerada, sobretudo se tivermos em conta que existem fotografias que o mostram ao lado do trono, algumas das quais até bastante monárquicas, com o artista  de coroa na cabeça. Apesar de tímido, Hampton não era meigo quanto aos títulos e, à falta de habilitações literárias, chamava-se a si próprio «St. James, Director for Special Projects for the State of Eternity». Assim, sem mais.
 
 

 

A obra salvou-se, hoje repousa no Smithsonian American Art Museum, devido a uma doação anónima feita em 1970. Quanto à estrutura, é densa e complexa, sobretudo muito rica, apesar de o seu criador ser pobre e ensimesmado, recolhendo grande parte das matérias-primas nas ruas da capital dos Estados Unidos ou comprando garafas de cerveja vazias aos vagabundos bêbados de Washington D.C. para depois lhes retirar os rótulos, de ouro e prata.   



 

 
Quando o The Throne foi descoberto, um corrupio de gente importante foi lá vê-lo, em êxtase. Artistas, congressistas, embaixadores, um mar de gente. Mas foi preciso uma curadora de arte dizer que aquilo era arte, e da boa, para darem valor ao trabalho do rapaz. Até aí, em vida, gozaram com o kitsch. James Hampton não se deve ter importado muito com a troça, pois não queria fama ou proveito, queria apenas fazer aquilo. Para ele, era fazer aquilo e escrever, tendo deixado um manuscrito de 108 páginas, numa linguagem cifrada, que está disponível aqui, e tem sido estudada por muitos criptanalistas.  aqui um texto a esse propósito que é mais intrincado do que tudo o que Hampton possa ter escrito. Não percebi nadinha.




 
Apesar de a sua obra ser muito religiosa e mística, Hampton não frequentava a igreja. Acreditava que, se havia um só Deus, as diferentes religiões eram desnecessárias.  De vez em quanto, passava pela igreja, e parece que foi um encontro com um pastor, que se queixava de não existir uma estátua a Cristo na capital federal, que o conduziu a fazer o The Throne. Mas, uma vez mais, pouco se sabe.

 
 
         O conjunto, muito rendilhado, foi alvo de restauro recente e está agora disponível à vista desarmada. Para quem morar longe, pode viajar aqui com zoom pelas variadas peças. A obra tem sido alvo de várias leituras e há gente que se dedica a interpretar as inscrições e as múltiplas e múltiplas alusões, cifras e charadas neo e veterotestamentárias que The Throne contém. Exalta-se o seu carácter de arte popular e espontânea, a espiritualidade que lhe subjaz, muito afro-american. Mas, talvez mais do que a obra de 180 peças, e toda a espiritualidade que as envolve numa aura reluzente de ouro e prata, interessa a história do homem solitário que a concebeu e construiu. Noite após noite, durante catorze anos. Sem almejar fama ou dinheiro, sem ter a certeza que concluiria a obra que estava a fazer.  Sem saber que destino teria tanto trabalho após a sua morte. Hoje está no Smithsonian, mas bem poderia ter acabado no lixo. É esse o ponto, a chave de tudo: a coragem solitária de um homem com a teima e a crença de fazer uma coisa. Fazer uma coisa, só isso, não mais do que isso. A peça central é o Trono. Não por acaso, encimado por duas palavras apenas: Fear Not.
 
 
António Araújo
 
 
 
 

Combater a syphilis sem ir a Faro.

 
 
 
 
 
 
Vanguarda, Março de 1897
 
 
 
 
 
 
 
 

O Inverno em Providence.

 
 
 
 
Fotografia de Onésimo Teotónio de Almeida




quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Zurique.

 
 
 
 
1956
(Colecção Cortez Liberato)
 

 

Assumpto estranho ao serviço policial.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
O Tempo, Março de 1897




terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Olavo de Carvalho.

 
 
 
 




Quando publiquei aqui um textinho marreta sobre a cultura da direita portuguesa, voz amiga, que pouco conheço pessoalmente mas muito estimo intelectualmente, chamou-me a atenção para uma lacuna: Olavo de Carvalho. Disse-me que alguma nova direita dos blogues anda obcecada com Nelson Rodrigues, esquecendo este publicista panfletário, reaccionário, panfleteiro e caceteiro. Jornaleiro, mas também em livro (O imbecil colectivo ou O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota). Note-se: quem me falava não era um «olaviano», tão-pouco entrava numa compita, inexistente e risível, Nelson vs. Olavo. Não entendia, simplesmente, o motivo pelo qual Olavo, concorde-se ou discorde-se do que diz, não é mais conhecido pela intelectualidade de direita portuguesa. Pelo menos, não é falado. Atenção: Olavo é rebarbativo, mas Olavo não é o Ratinho, nem o seu show desgraçado. Olavo tem talento na prosa, por muito que discordemos da substância da opinião. É inteligente e lesto no gatilho, letal na frase curta. Isto não é um panegírico a Olavo, nem sequer li os livros dele. Mas, do que li, vale a pena conhecer. Não para concordar nas teses ou professar o ideário. Apenas para conhecer quem até pode ser nosso adversário. Olavo de Carvalho, brutal. Arrasador na provocação.