Steve Jobs falava fluentemente arménio.
Pelo menos, é o que alguns dizem, baseando-se
no facto do fundador da Apple ter como mãe adoptiva Clara Hagopian, nascida nos
Estados Unidos, mas de ascendência arménia. E não, não estamos a citar a
Wikipedia, mas o dossier secreto de Steve Jobs no FBI.
Todos conhecem a história dos pais biológicos e dos pais adoptivos de Jobs e
que opinião tinha este sobre o assunto. Quando lhe diziam que Paul e Clara eram
os seus «pais adoptivos», Steve replicava «são os meus pais, são 100% meus
pais». Os outros, os biológicos, eram apenas «esperma e um óvulo», nada mais do
que isso. Mas daí a saber falar arménio por via materna vai um grande passo.
Seja como for, é provável que, no mínimo, conhecesse os caracteres da língua da
sua mãe Clara – e é quase impossível não vermos a marca da beleza delicada da caligrafia
arménia no desenho de tudo quanto sai do ventre da Apple.
A
exaltação da maternidade é uma característica secular da cultura arménia.
Décadas de guerras e horríveis tormentos fizeram o resto. Em 1915, o genocídio
do povo arménio deixou-nos essa palavra – a expressão «genocídio» foi cunhada
para descrever estes massacres – e imagens devastadoras. Imagens de mães em
fuga, carregando os filhos às costas. De todas, a mais poderosa é aquela em que
uma mãe chora a morte da sua menina.
Não
admira, por conseguinte, que em Erevan exista uma escultura monumental
intitulada «Mãe da Arménia». Aliás, existem esculturas com esse nome em vários
pontos do país. Mas se a glorificação da maternidade – e da coragem guerreira
das mulheres da Arménia – é um traço multissecular daquele país, a escolha da
«Mãe da Arménia» deve-se, muito possivelmente, ao amplexo tão maternal quanto
sufocante de uma outra mãe, esta severíssima. A Mãe Rússia. Não é por acaso que nas antigas repúblicas da URSS – em
Kiev, na Ucrânia, ou em Tlibissi, na Geórgia – existem igualmente estátuas colossais de
mulheres de armas, jovens esbeltas mas de ar belicoso, pouco ou nada maternal (ver a estátua de Kiev aqui no Malomil, e a da Geórgia aqui).
Mãe da Geórgia (1958)
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A
Mãe da Arménia data de 1967.
Naquele lugar havia sido inaugurada, em 29 de Novembro de 1950, uma obra
diferente, a maior estátua de Estaline erigida na Europa. A autoria desse
monstro devia-se a Sergey Merkurov (1881-1952), o escultor predilecto de
Estaline. Nascido justamente na Arménia, Merkurov foi Artista do Povo da URSS,
membro da Academia Soviética das Artes e director de um dos mais belos museus
de Moscovo, o Pushkin. A ele se devem largas dezenas de máscaras mortuárias (no
Museu Merkurov existe a única máscara mortuária autêntica de Lenine, além dos
rostos derradeiros de Tolstoi, Gorky, Mayakowski). Do seu cinzel saíram as três
maiores estátuas de Estaline que existiam na defunta União Soviética. Era primo
do místico Gurdjieff e praticou actos notáveis, como ter salvo da ira
revolucionária a estátua de Catarina, a Grande, que Merkurov discretamente
empacotou para Erevan. Ao que parece, teve a tristíssima ideia de, para o 70º aniversário
de Estaline, lhe oferecer uma muito dispendiosa estátua chamada, pasme-se,
«Morte de um Líder». José Estaline, como é evidente, não apreciou a simpatia – recusou
a oferta e o artista caiu em desgraça. Mas, por maiores que tenham sido os seus
feitos escultóricos, o nome de Merkurov será sempre associado ao famoso
«Abecedário Erótico» que desenhou em 1931. O blogue The Charnel-House publicou-o em
abundância, pelo que, por pudor, vamos apenas deixar aqui uma das mais castas imagens.
Apenas pro memoria, até porque o
alfabeto obsceno já foi reproduzido entre nós, no blogue História Maximus. As
figuras têm uma clara inspiração na iconografia erótica greco-romana – o que
não admira, dada a formação clássica de Merkurov – e possuíam, aparentemente,
um propósito iconoclasta e provocador. Mas, na verdade, o seu objectivo era
conformista e servil, visando ferir a susceptibilidade ortodoxa e a influência
da igreja para com isso agradar ao novo poder soviético.
Sergey Merkurov
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Abecedário Erótico, de Sergey Merkurov (1931)
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Ross
Wolfe, escritor, tradutor e autor do blogue The
Charnel-House, agradece a Agata Pyzik, ensaísta de origem polaca que,
segundo ele, foi quem deu a conhecer ao mundo anglófilo o alfabeto lascivo de
Merkurov. Agata Pyzik, que vive em Londres desde 2010, publicou
recentissimamente um livro, com o título Poor But Sexy, Culture Clashes in Europe East and West, Ainda que centrando-se
muito no caso da Polónia, sua terra natal, a tese que defende não anda longe da
sustentada por André Meier em 2006 no documentário Do Communists Have Better Sex?
Nesse documentário afirmava-se que os alemães de Leste tinham uma vida sexual muito mais activa e
interessante do que os seus irmãos do lado ocidental do Muro. Mesmo que estes
tivessem mais liberdade e maior poder de compra, os cidadãos da RDA
beneficiavam de leis mais flexíveis em matéria de divórcio e aborto, além de
uma política muito mais efectiva de controlo de natalidade. Sem pôr em causa a
conclusão geral sobre a abundância e variedade do sexo na Alemanha de Leste,
importa ter presente o seguinte: as alemãs e os alemães, quando jovens, parecia
estar dispostos a optar pela monogamia, pelo menos jurídico-formal. Casavam
muito mais cedo, em média, do que os cidadãos da Alemanha ocidental. Porquê?
Entre outras coisas, para conseguirem subir na lista de espera dos apartamentos
distribuídos pelo Estado. Ao fim de três anos, em cada três mulheres da RDA
duas estavam divorciadas. E com filhos a cargo. Não admira que 90% das crianças
da RDA tenham sido, desde tenra idade, educadas em Kindergarten. A dada altura, dada a escassez de géneros, só vendiam
fraldas a quem tivesse um documento comprovativo de maternidade: em resposta,
as alemãs de Leste, apresentavam os seus bebés nas caixas dos supermercados. Um
país curioso, desparecido há 25 anos, que, com a cumplicidade da indústria
farmacêutica do Ocidente, permitiu que 14.000 dos seus cidadãos tenham sido usados como cobaias humanas no uso experimental de novos fármacos ou produtos
congéneres (quimioterapia, antidepressivos, anticoagulantes, até pasta
dentífrica). Desconhece-se o número de vítimas, como não se encontrou um único
documento em que as «cobaias» dessem o seu consentimento – o seu consentimento informado – a estas
experiências farmacológicas. O negócio rendeu cerca de 16,5 milhões de marcos
às autoridades da RDA. Os pacientes não receberam um cêntimo.
Voltemos
à Mãe da Arménia ou, melhor dizendo,
regressemos à base. A monumental escultura de Estaline, como se disse, fora
desenhada por Merkurov, autor do não menos escandaloso abecedário erótico. A
base era do arquitecto Rafayel Israyelian (1908-1973), que expressamente
afirmou que concebera o pedestal como uma basílica arménia, com três naves. Diz-se
que a construção tem claras semelhanças com a Igreja de Santa Ripsima,
construída no século VII. Não deixa de ser irónico que, na base de uma estátua
a Estaline, desenhada por um escultor que fizera um abecedário pornográfico com
fitos anticlericais, esteja um edifício inspirado numa igreja do século VII.
Já
Estaline durou menos tempo. Praticamente a seguir à sua morte, várias estátuas
em sua homenagem desapareceram da paisagem do Leste da Europa. Assim aconteceu,
por exemplo, na Karl Marx Allee, em Berlim, hoje só restando no Café Sybille um
pedaço do bigode e uma orelha da estátua do Pai dos Povos, que já mostrámos aqui. Também na capital da
Arménia se fez desaparecer Estaline. Na Primavera de 1962, a estátua foi
removida, o que exigiu um aturado trabalho de desconstrução, que matou um
soldado e fez vários feridos.
Substituíram Estaline pela Mãe da Arménia, agora uma estátua de Ara Harutyunyan. Com uma altura de 22 metros, feita de cobre, forma com o pedestal em basalto um conjunto de 51 metros de altitude. A basílica original mantém-se, sendo hoje um museu militar dedicado à 2ª Guerra e, em especial, aos mortos da Guerra de Nagorno-Karabakh, o conflito entre a Arménia e o Azerbaijão que terminou com um cessar-fogo em 1994 mas que, em substância, permanece por resolver. Entretanto, em Erevan, a belicosa Mãe da Arménia tornou-se um ícone, infinitamente reproduzido, quase sempre num registo kitsch pavoroso.
A Estátua de Estaline, em Erevan
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Substituíram Estaline pela Mãe da Arménia, agora uma estátua de Ara Harutyunyan. Com uma altura de 22 metros, feita de cobre, forma com o pedestal em basalto um conjunto de 51 metros de altitude. A basílica original mantém-se, sendo hoje um museu militar dedicado à 2ª Guerra e, em especial, aos mortos da Guerra de Nagorno-Karabakh, o conflito entre a Arménia e o Azerbaijão que terminou com um cessar-fogo em 1994 mas que, em substância, permanece por resolver. Entretanto, em Erevan, a belicosa Mãe da Arménia tornou-se um ícone, infinitamente reproduzido, quase sempre num registo kitsch pavoroso.
Num
território martirizado por séculos de conflitos, as mulheres ora pegavam em
armas, ora ficavam em casa, cuidando dos filhos, esperando que os homens
regressassem da frente. Entre as que se destacaram em combate, Sose Mayrig
(1868-1952). Há quem diga que Mãe da
Arménia se inspira nela, ou noutras como ela. Sose Mayrig lutou contra os
turcos, de armas na mão, juntamente com o marido e os filhos do casal. Animou as
tropas, era admirada pela sua bravura. Não abandonou os combates mesmo depois
de ter sido ferida, de ter perdido o marido e todos os filhos.
Nos
anos vinte, cansada de guerra, estabeleceu-se em Alexandria, no Egipto, onde
morreria em 1952. Mas ainda hoje existem na Arménia muitas mulheres como ela.
Eis uma imagem desconcertante: na aldeia de Degh, na fronteira com o
Azerbaijão, uma senhora com a bonita idade de 106 anos não baixa os braços. De metralhadora A-47 em punho, defende a sua casa, agora e sempre. Com os
azeris por perto, há que estar alerta.
Mães
da Arménia foram, e são, também as mulheres e mães dos mortos em combate. A
expressão «mãe da Arménia» vulgarizou-se na linguagem corrente e na iconografia
do país. Existem estátuas de mães-coragem em vários lugares. Em Gyumri, uma
mãe-escultura datada de 1975.
Outra, mais erótica e dinâmica, em Ijevan. Em Abril deste ano, foi inaugurado no Memorial do Genocídio do Povo Arménio,
em Erevan, uma escultura de Serouj Ourishian que figura uma mulher fugindo dos
massacres, protegendo uma criança.
Estátua de Ijevan
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Estátua de Erevan,
Memorial do Genocídio do Povo Arménio
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Uma
das mais conhecidas e emblemáticas imagens de mães arménias é da autoria de Chanik Aramian, e
data de 1861, chamando-se «Arménia de Luto» ou «Ruínas da Arménia», tendo sido reproduzida em bordados, tapeçarias.
A partir da década de 1870, tornou-se um símbolo patriótico da nação arménia. É
espantosa a semelhança existente entre essa gravura e a fotografia estereoscópica
tirada por Onnes Kurkdjian circa 1877-1880, mostrando
uma mulher entre ruínas, que pode ser vista aqui.
Recentemente, e tirando partido da popularidade do termo «mãe da Arménia», foi desenvolvido um projecto artístico, mas também de intervenção cívica e política, intitulado mOther Armenia (ou aqui). Dez fotógrafas arménias apresentaram o seu país segundo um ponto de vista feminino. Imagens de pessoas que vivem nas margens da sociedade (uma série é dedicada aos transsexuais), outras das viúvas ou das mães de soldados mortos. Interiores vazios, com fotos e recordações (ver o vídeo, aqui)
O
trabalho mais marcante, neste contexto, é o de Sara Anjargolian, a série «An Absent Presence». Sara fotografou
os familiares dos soldados mortos em circunstâncias acidentais, nunca
esclarecidas. Não eram militares em combate. Estas «Mães da Praça de Maio» (e
desculpem o lugar-comum, óbvio em demasia) reúnem-se na Praça da República, em
Erevan, em frente aos edifícios ministeriais. Exigem saber em que condições
morreram os seus filhos. Numa das imagens, Nana Muradyan observa as fotografias
da autópsia do seu filho. Valery apareceu morto em 2010, numa base militar. As
forças armadas sustentaram que se tratou de um suicídio, mas a família acredita
que Valery foi assassinado para encobrir outro crime, possivelmente o furto de
combustível. Nana afirma que, dias antes de morrer, Valery lhe dissera que
tinha recebido um telefonema anónimo, dizendo-lhe para manter o silêncio quanto
ao roubo de gasolina que testemunhara. Ofereceram-lhe uma quantia pelo seu
silêncio: 3000 dram, a moeda local. O equivalente a sete dólares. Dias depois,
apareceria enforcado na base militar onde servia.
As forças armadas são uma das instituições
mais reservadas e fechadas da Arménia. Nos últimos anos, têm-se acumulado queixas de maus-tratos e homicídios nos quartéis. Às dezenas, jovens aparecem
mortos, dizendo-se que pereceram por acidente ou que se suicidaram. As mães da
Arménia temem que os seus filhos cumpram o serviço militar obrigatório. A
guerra terminou oficialmente em 1994, mas os mortos continuam. E, com eles, as mães
da Arménia.
António Araújo
Obrigado pela referência ao meu blog. Tenho divulgado alguns artigos seus por lá. Continuação de bom trabalho.
ResponderEliminarCumps,
JJHN
Muito obrigado pelas suas palavras.
ResponderEliminarCordialmente,
António Araújo
Excelente. É sempre saudável passar por aqui. O ar é bom e a história simples.
ResponderEliminarBem haja
JD
Muito obrigado pelas suas amáveis palavras
EliminarCordialmente,
António Araújo