sábado, 31 de outubro de 2015

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Gente feliz com lágrimas.

 
 
 
O sul-coreano Chae Hee-yang, de 65 anos, reencontra o seu pai,
o norte-coreano Chae Hoon-sik, de 88 anos
Coreia do Norte, 20 de Outubro de 2015
 
 
 
         Graças à Cruz Vermelha, desde há alguns anos que, de vez em quando, famílias separadas da Coreia podem reunir-se durante um par de horas. Há 65.000 pessoas na Coreia do Sul em lista de espera para reencontrarem os seus familiares do Norte. São seleccionadas por sorteio. A semana passada houve mais um reencontro. O primeiro que se realiza em cinco anos. 398 sul-coreanos, pertencentes a 96 famílias, viajaram até ao Norte. Aí, aguardavam-nos 141 norte-coreanos. Gente que não se falava há 60 anos, ou mais. Chae Hee-yang, de 65 anos, viu pela primeira vez na vida o seu pai, Chae Hoon-sik, um norte-coreano de 88 anos. Um homem, um ser humano, com quase 90 anos, conhece um filho que nunca viu – ou, melhor, que só viu quando era um bebé, criança de meses. Pai e filho sabem que, muito provavelmente, nunca mais voltarão a encontrar-se. Com quase 90 anos, as hipóteses de um reencontro são ínfimas, inexistentes. Nunca mais voltarão a encontrar-se, um pai e um filho. Verdadeiramente, aquilo que vemos são imagens de uma despedida num leito de morte. Durante 12 horas, em sessões de duas horas, famílias separadas trocam fotografias para recordação, falam do que não sabemos. Depois, entram num autocarro e vão embora, entre lágrimas e suspiros. Será que tiveram palavras para trocar uns com os outros? É difícil saber. Mas uma coisa é certa: perante estas imagens, quem fica sem palavras somos nós.
 
 

 
 
 

Ai, Weiwei.





O último ou penúltimo TLS tem uma bela crítica a uma exposição do artista chinês Ai Weiwei na Royal Academy of Art, que estará patente até 17 de Dezembro.          

         Não é este o momento para apreciar a obra de Weiwei, que tem coisas boas e outras um bocadito joana vasconcelos (ninguém é perfeito). Só queria recordar que, como se conta aqui, a LEGO se recusou a disponibilizar a Weiwei uma quantidade substancial de mercadoria (a pagar, julgo) com o argumento de que a empresa dinamarquesa não se envolve em «obras políticas». Como?! Ainda há uns meses, no MOCAK, o Museu de Arte Contemporânea de Cracóvia, vi  e escrevi aqui sobre uma exposição chamada «A experiência de Auschwitz», em que uma das obras apresentadas, data de 1996, se chama KZL Lego, de Zbigniew Libera (n. 1959) e foi feita em parceria com a LEGO. Isso não é «política»? Para quem tenha dúvidas, recomendo um livro recente, sobre o qual falarei em breve: de Gabriel D. Rosenfeld, Hi Hitler! How the nazi past is being normalized in contemporary culture.

         Um artista perseguido como Weiwei… que vergonha para a LEGO! Medo das retaliações? Avidez pelo mercado chinês? Que vergonha...
 
António Araújo

quinta-feira, 29 de outubro de 2015



impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 18 - EARL HINES

 

 

Depois de Nova Iorque se ter fixado como o pólo magnético do jazz, para onde até Louis Armstrong haveria de abalar de malas aviadas em 1929, Chicago só não ficou às moscas porque Earl Hines perseverou em promover o Grand Terrasse Café como o maior salão de dança e sala de concertos do continente norte-americano – não se lhe pode totalmente negar a premissa, dado que o Cotton Club ficava em Manhattan, uma ilha no Atlântico…
Para trás ficava, assim, a audaciosa segunda formação dos abrasadores Hot Five de Louis Armstrong (1927-28), louvada como o evangelho (a boa nova!) do jazz. Nesses dias, Earl Hines ascendera à condição de discípulo predilecto do mestre, que dignou-se conceituá-lo de semi-igual – ninguém seria estulto a ponto de pretender nivelar-se acima dos calcanhares de Armstrong – pelo feito de ter transposto para o piano as complexidades harmónicas que Stachmo perpetrava no trompete e ao dar um protagonismo inédito à mão esquerda na criação melódica, facilitado pelo facto de ser ambidestro além de virtuosista.
O Grand Terrasse Café, inaugurado em 1928, sobre os alicerces do Sunset Café, com 100 mesas onde abancar, tinha como sócio maioritário Al Capone, empresário de sucesso, patrocinador político e benemérito dos pobres de Chicago, que só depois de preso por meras pendências fiscais seria vilificado pela opinião pública. Earl Hines, detentor de uma peculiar noção de elegância e requinte, nunca omitiu que fumou alguns charutos, tu cá tu lá, com Scarface, nem que era visita assídua do actor George Raft quando passava por Los Angeles, assim como até ao fim da vida, prudentemente nunca contou as muitas histórias de gangsters que testemunhara, urdidas na cozinha e nas traseiras do Grand Terrace.
À frente da casa, Earl Hines conduziu com zelo a sua orquestra durante a era do swing, fazendo dela o farol irradiante do Midwest; nesses anos 30 Chicago era uma poderosa praça radiofónica, donde as ondas se propagavam sem obstáculo por toda a planície central americana. A disciplina imposta por Hines tão dura seria que à banda puseram-lhe o alcunha de “plantação”. Trabalhavam sete dias por semana, com três concertos diários das nove e meia da noite até às três e meia da madrugada; menos aos Sábados: quatro actuações, das dez às cinco. Nos meses de Verão recolhiam os dividendos da popularidade com sobrecarregadas digressões pelo país fora – toda a gente queria ouvir e ver ao vivo a vedetas da rádio.
 

A Monday date 1928-1946
2010
Vsom
Earl Hines (piano), Louis Armstronh (trompete) Jimmy Noone (clarinete)
[Das variadas antologias de Earl Hines que se foram publicando, esta será provavelmente a mais ilustrativa das que estão agora no mercado, com uma qualidade sonora bastante aceitável graças a uma remasterização decente.]
 
 
Estas glórias e penas foram-se extinguindo com o crepúsculo da década de 40. O Grand Terrace fechou as portas em 1950 e a Earl Hines de pouco valeu ter incubado na sua orquestra os oficiais do bebop Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Sarah Vaughan. Mas em vez de se reformar fez-se à vida, primeiro inserido nos nostálgicos “all stars” de Armstrong e depois, enfastiado com o revivalismo, reunindo pequenos combos, tocando aqui e ali. Começou então a reafirmar o que o público – e quem sabe se também ele – havia esquecido: era um pianista portentoso! Acabou por ser “redescoberto” em 1964, após uma série de recitais a solo em Nova Iorque.
Talvez por ter sido periférico e por ter sido longevo – em 1975 ainda dava cartas como se julgasse ter 30 anos, estranhando um pouco que o venerassem como um pioneiro depois de tantos anos de oblívio – Earl Hines é compendiado com menor relevância do que outros reis do swing; mas se lhe puxarem o lustro este “earl” brilha tanto como Duke ou Count.
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 
 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Outono na Nova Inglaterra.

 
 




Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida

 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O Preço das Artes.

 
 
 
 
Há um par de meses, quando se preparava o ano lectivo, António Araújo, no seu blogue Malomil dava-nos a conhecer a sua indignação perante o custo de alguns manuais escolares envolvidos em “blocos pedagógicos” que as editoras apresentam aos alunos e respectivas famílias como material indispensável para o sucesso, quantas vezes com a conivências, por omissão, de escolas e professores, acrescento eu. No caso era um bloco pedagógico para o 11º ano de Biologia e Geologia, daqueles que inclui cadernos de actividades e mais alguma coisa que sirva para somar parcelas na factura. Com a extensão da escolaridade para 12 anos e a generalização do Ensino Secundário, esta prática dos blocos pedagógicos – já muito comum nos 2º e 3º ciclos do Ensino Básico – tem-se estendido ao Secundário, beneficiando as editoras com as mudanças de metas de aprendizagens e de conteúdos programáticos que, ano a ano, vão inutilizando os manuais comprados anteriormente.
Mas, se o negócio dos manuais e demais “materiais auxiliares”, com destaque para os livrinhos com as provas finais de ciclo e exames que estão online gratuitamente no site do IAVE, tem andado de vento em popa em tempos de redução do número de alunos, o que dizer dos encargos que implica a frequência, mesmo no Ensino Básico, de disciplinas como Educação Visual?
Há umas semanas, com uma folha A4 pautada com as linhas quase todas preenchidas com todo o tipo de materiais imagináveis, lá fomos nós, petiza, mãe e pai, fazer uma visita a uma grande cadeia de materiais escolares e de escritório, acabando a expedição com uma conta acima dos 50 euros, apesar de em casa já existirem alguns dos materiais solicitados e de em vários casos a opção ter sido mesmo pela marca branca e, caso se parta ou extravie, que é o mais certo ao longo do ano, logo se compra outro.
E estamos a falar de Ensino Básico, de uma disciplina de frequência obrigatória, numa escola pública, num sistema de ensino obrigatório, universal e alegadamente gratuito. Tudo para além da aquisição do próprio manual ou bloco pedagógico.
Entendamo-nos sobre um ponto: eu até concordo que alguns materiais, para trabalhos específicos, mais onerosos, possam ficar a cargo dos orçamentos familiares com essa capacidade. Agora, pedir que se comprem borrachas e lápis específicos, folhas de papel de três ou quatro variedades, incluindo as brancas mais comuns, faz-me lembrar o pedido feito há alguns anos – talvez ainda seja – por algumas escolas do 1º ciclo para que os alunos levassem rolos de papel higiénico de casa, porque o fornecimento lhes chegava tarde e em quantidades insuficientes. Estamos a falar do Ensino Básico, do ensino público obrigatório e a mim quer parecer, como professor (em escola onde tal não acontece) e encarregado de educação, que começamos a entrar num território muito complicado quando é necessário solicitar aos alunos a aquisição de todo este material para uma área curricular já de si tão maltratada quanto o é a das Artes. Eu sei que para Educação Física é necessário comprar sapatilhas, fatos de treino e camisolas. E sei que em algumas escolas, à maneira das privadas, se exige que sejam camisolas compradas na própria escola, ajudando a “gerar receitas”.
Sei de tudo isso, mas acho que no caso das Artes – e nem imagino como será no Ensino Secundário – isto gera uma dupla situação de injustiça relativa, não apenas em relação a alunos com menos recursos, como quanto à forma como estas disciplinas são encaradas, quando são feitas tais exigências. Porque, mesmo que queiramos o contrário, estes são factores repulsivos, que sacrificam uma área de estudos que parece cada vez mais desprezada.
E considero isto ainda mais grave porque, em matéria de desporto ou mesmo do chamado “ensino artístico”, existe uma oferta de actividades dentro e fora das escolas públicas (há, por exemplo subsídios e ensino articulado para alunos que sigam estudos na área da Música) que não se encontra em relação às Artes Visuais, em que os alunos que sintam especial apetência por esse tipo de expressão ficam restringidos a uma aula semanal e a uma quase total ausência de ofertas para aperfeiçoar as suas competências, sem ser à custa de um forte investimento familiar e, mesmo assim, só em grandes centros urbanos.
Se as Humanidades estão a ser trucidadas, em especial no Ensino Secundário, pela ideologia redutora das STEM, as Artes Visuais (desenho, pintura, ilustração, seja no sentido tradicional ou em variantes mais actuais, como os suportes digitais ou a chamada arte urbana) são completamente ignoradas e sobrevivem num espartilho curricular que só se compreende num contexto de miopia intelectual.
E quando no meu país há escolas públicas que não têm condições – ou optam por fazer essa poupança – para colocar umas folhas de papel, lápis, borrachas, réguas e algum material básico de pintura nas mesas dos alunos há algo que está profundamente errado nas prioridades estabelecidas para uma Educação a que se exige que entre em competição com as melhores do mundo.
 
Paulo Guinote
 
(publicado no jornal Público, de 26/10/2015; aqui publicado no Malomil com autorização de Paulo Guinote: obrigado, Paulo, um abraço!)
 
 

domingo, 25 de outubro de 2015

sábado, 24 de outubro de 2015

Vidas singulares: George Bell (1942-2014).

 
 
 

 
 
         O nome de George Bell nada nos dizia até há poucos dias. Até ao dia em que o New York Times fez uma extensa reportagem sobre ele. Porque morreu, não mais do que isso. Uma reportagem grande, cara de fazer, sobre a sua vida mas em especial sobre a sua morte. É estranho que alguém seja notícia só porque morreu. Obituários há muitos, mas de gente que teve uma vida digna de ser lembrada. Não merecerá a biografia de Bell sequer uma recordação? Pelos vistos, não. Trabalhou em  transportes e mudanças, reformou-se em 1996, um acidente laboral. Fora isso, pouco a registar. George só foi notícia por morrer em casa sozinho, num apartamento de Nova Iorque pejado de lixo. Morreu só, como milhares de nova-iorquinos (e não só). Cinquenta mil por ano, dizem as estatísticas. Na vida solitária de Gorge Bell houve um dia – de manhã ou de tarde – em ele que escreveu o seu nome na porta de casa, para que soubessem que morava ali. E houve dias em que gravou cassetes com músicas, e colocou uma fita a indicar o nome dos músicos que fizeram ou cantaram essas músicas, ainda que não saibamos se George Bell as ouviu, ou não. Dele pouco sabemos, mesmo numa reportagem extensa do New York Times. Sabemos  que morreu só, pouco mais. No funeral não apareceu ninguém. A cremação foi acompanhada pelos funcionários municipais que tratam destes assuntos lutuosos. Uma cremação demora, dizem, cerca de três horas. Onde apareceu muita gente, uma multidão de gente, foi no leilão do seu carro, um Toyota de 2005. É estranho pensar que apareceu mais gente para lhe comprar o carro do que no seu funeral.

 
 

 
 
 

 
 
       George, ao que parece, era muito apegado aos seus pais, de ascendência escocesa. Uma fotografia mostra-o novinho, ao lado do pai, no Natal de 1956, com árvore enfeitada e TV de sala. O pai morreu cedo. À medida que foi envelhecendo, a mãe começou a sofrer de artrite. George tratou dela com carinho e desvelo, levando-lhe comida, dando-lhe banho até  morrer. Com George as coisas não se passaram assim. Não casou nem teve filhos. Chegou a estar noivo, mas rompeu o noivado por não aceitar as exigências contratuais da futura sogra. A noiva casou com outro homem, que morreu há anos, em 2002. No entanto, George e Eleanore, assim se chamava ela, continuaram a trocar cartas ao longo de muitos anos. No último cartão que lhe mandou, no Dia dos Namorados, Eleanore disse-lhe que pensava muitas vezes nele, ademais com amor. Eleanore também vivia sozinha, carregada de dívidas, e morreu em casa de ataque cardíaco. Foi cremada, George nem soube do óbito. Mas incluiu-a no seu testamento. É estúpido tentar saber se George Bell foi um homem feliz. E talvez seja indigno destapar a sua intimidade apenas porque morreu sozinho. Muito possivelmente, a sua vida foi demasiado solitária e triste. Mas quem sabe, quem pode dizê-lo ao certo? No meio de tudo isto, só há uma certeza. Ou melhor, duas. A primeira é que, um dia, todos partilharemos o destino de George, sozinhos ou em companhia. A outra certeza é esta: quem comprou o Toyota pensou ter feito um bom negócio. Senão, não o comprava, diz a lógica material da vida. Morreu George, ficou o Toyota. E um relógio de pulso, da marca Relic. Um desempregado arrematou-o por três dólares, triplicando a base de licitação.






       George M. Bell, Jr.,  1942-2014, assim diz a placa minúscula no depósito das suas cinzas.  E agora, contada a história, ninguém se atreva a dizer que esta vida foi triste ou  vivida em vão. Milhares de pessoas sabem hoje quem foi George Bell, o da fama póstuma, que teve direito a extensa reportagem do New York Times. Apenas por ter morrido, é certo. Mas morrer é pouco? Olhem, fiquem com esta: do pouco que dele sei, George Bell foi um homem melhor do que muitos que por aí conheço.

 
 
António Araújo
 
 

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O elefante na sala de estar.




Elephant, de Alan Clarke (1989)
 
 
 

Elephant, de Alan Clarke, é um dos muitos filmes que integram o ciclo «Terrorismo Representação», apresentado no DocLisboa 2015. Sobre o elefante na sala de estar, um texto no Ípsilon, hoje, aqui.
 
 
Elephant, de Alan Clarke (1989)
 
 
 

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Política e consciência.


 

Václav Havel (1936-2011)

 


«Política e consciência» foi um texto redigido por Václav Havel em Fevereiro de 1984, como discurso a ser lido na Universidade de Toulouse, onde lhe foi atribuído o título de doutor honoris causa. Tendo passado pela prisão e sem passaporte, Havel não pôde deslocar-se a França. Na cerimónia, realizada em 14 de Maio de 1984 na Universidade de Toulouse-Le Mirail, foi representado pelo dramaturgo inglês Tom Stoppard. O texto circulou clandestinamente em Praga como samizdat, sendo publicado pela primeira vez em língua inglesa na Salisbury Review, em Janeiro de 1985. Publica-se um extracto desse texto, a partir da versão publicada in Václav Havel, Open Letters. Selected Writings, 1965-1990, org. de Paul Wilson, Nova Iorque, Vintage Books, s.d., pp. 249ss. De 1989 a 1992, Havel foi Presidente da Checoslováquia, o primeiro a ser democraticamente eleito em 41 anos. Mais tarde, seria Presidente da República Checa, de 1994 a 2003. O escritor, intelectual, dramaturgo e político, um dos artífices da «Revolução de Veludo», morreu a 18 de Dezembro de 2011.
 
***
 
 
De vez em quando, tenho oportunidade de falar com intelectuais do Ocidente que viajam até ao nosso país e decidem incluir no seu itinerário uma visita a um dissidente – uns por interesse genuíno, desejo de compreender e expressar a sua solidariedade, outros por mera curiosidade. Além dos monumentos góticos e barrocos, os dissidentes são aparentemente o único ponto de interesse neste ambiente tão árido e uniforme. Estas conversas são geralmente instrutivas: aprendo muito com elas e começo a entender muita coisa. As questões que com mais frequência me colocam são estas: pensam que podem realmente mudar o que quer que seja, sendo tão poucos e não tendo qualquer influência?  São adversários do socialismo ou, ao invés, ambicionam melhorá-lo? Condena ou desculpa a instalação de mísseis Pershing II e de mísseis de cruzeiro na Europa ocidental? O que podemos fazer por vós? O que é que o leva a agir assim quando da sua atitude só resultam perseguições e detenções – e nenhum resultado visível? Deseja que o capitalismo seja reintroduzido no seu país?
Estas perguntas são bem-intencionadas, e nascem de um genuíno desejo de compreender a realidade, mostrando que os seus autores se preocupam com o mundo, presente e futuro.
Ainda assim, estas questões e outras do mesmo género fazem-me concluir até que ponto os intelectuais do Ocidente não compreendem – e, em certos aspectos, não são capazes de compreender – o que aqui se passa, aquilo por que nós, os dissidentes, lutamos; e, acima de tudo, o significado dessa luta. Tomemos, por exemplo, a questão: «O que podemos fazer por vós?». Muita coisa, sem dúvida. Quanto mais apoio, interesse e solidariedade tivermos de pessoas que pensam livremente pelo mundo fora, menos riscos correremos de sermos presos, e maior será a esperança de não sermos uma voz a gritar sozinha no deserto. No entanto, esta questão, na sua essência, parte de uma visão errada. Na verdade, em última instância o ponto não é ajudar-nos a nós, um punhado de «dissidentes», a manter-nos fora da prisão durante mais algum tempo. Nem sequer se trata de ajudar estes povos, os Checos e os Eslovacos, a viver um pouco melhor, um pouco mais livremente. Estes povos necessitam, antes de mais e acima de tudo, de se ajudarem a eles próprios. Esperaram vezes demais pela ajuda dos outros, dependeram dela em excesso, e demasiadas vezes tudo acabou em mágoas e ressentimentos: ou o apoio prometido falhou no último momento ou teve o efeito contrário às expectativas. Num sentido mais profundo, há algo diferente que está em causa – a salvação de todos nós, tanto de mim próprio como do meu interlocutor. Ou será que tudo isto não diz respeito a todos nós por igual? Não são as minhas vagas esperanças também as esperanças dos outros? Não é a minha prisão um ataque aos outros? E os desaires que os outros sofrem não me afectam também a mim? A opressão de seres humanos em Praga não é uma opressão de todos os seres humanos? A indiferença ou a ilusão perante o que aqui se passa não contribui para que noutros lugares possa vir a acontecer o mesmo? Será que o infortúnio dos outros não pressupõe o nosso próprio infortúnio? A questão não reside no facto de um dissidente checo, como qualquer pessoa ameaçada, necessitar de apoio. É fácil fazer cessar essa ameaça, bastando deixar de ser «dissidente». A questão central é saber o que representam os esforços vãos e a sorte de um dissidente, o que isso revela da condição, das oportunidades e dos problemas do mundo, em que medida isso pode servir de alimento ao pensamento dos outros e para o modo como estes encaram o seu – e, por consequência, o nosso – destino partilhado; em que medida isto é um aviso, um desafio, um perigo ou uma lição para aqueles que nos visitam.
Agora a pergunta sobre o socialismo e o capitalismo! Tenho de dizer que ela me dá a sensação de estar a emergir das profundezas do século passado. Julgo que estas categorias, ideológica e semanticamente confusas, passam à margem do ponto essencial. A questão é completamente distinta, muito mais profunda e, como a anterior, relevante para todos nós. E a questão consiste em saber até que ponto queremos, seja por que meios for, restaurar a experiência pessoal dos seres humanos como medida de todas as coisas, colocando a moralidade acima da política, a responsabilidade acima dos nossos desejos, dando um sentido à ideia de comunidade humana, devolvendo significado ao discurso dos homens, reconstruindo, como centro de toda a acção social, o «Eu» autónomo, integral e digno. Um «Eu» responsável por todos nós, porque estamos ligados em comunhão a algo superior, tendo a capacidade de sacrificarmos alguma coisa – e, em caso extremos, de sacrificarmos todas as coisas – da nossa vida privada, banal e próspera (da «regra do quotidiano», como Jan Patočka costumava dizer) em nome daquilo que confere verdadeiro significado à vida.
[…]
Falo deste modo pois, olhando para o mundo da perspectiva que o destino me deu, não posso evitar a impressão de que muitas pessoas no Ocidente percebem pouco o que está em causa no nosso tempo.
Se, por exemplo, voltarmos a olhar para as duas alternativas políticas entre as quais oscilam actualmente os intelectuais ocidentais, parece que existem apenas duas formas de jogar o mesmo jogo, permitidas pelo anonimato do poder. Assim, mais não há do que duas formas distintas de caminhar rumo ao mesmo destino, o totalitarismo global.
[…]
Indubitavelmente, na perspectiva da defesa e dos interesses do mundo ocidental, não é bom que alguém diga «Melhor vermelho do que morto» [«Better red than dead»]. Mas, do ponto de vista de um poder global e impessoal, que transcende os blocos de poder e que, na sua omnipresença, representa uma verdadeira tentação diabólica, nada pode ser mais vantajoso. Esse slogan é um sinal indesmentível de que quem assim fala abdicou da sua humanidade. Abandonou a sua capacidade pessoal para defender algo que o transcende e para, in extremis, sacrificar a própria vida em nome daquilo que dá sentido à vida. Patočka escreveu um dia que uma vida que não estiver disposta a sacrificar-se por aquilo que lhe dá sentido é uma vida que não merece ser vivida. É justamente num mundo povoado por essas vidas e por essa «paz» − um mundo que se rege pela «regra do quotidiano» − que as guerras deflagram com mais facilidade. Num mundo assim não existe uma barreira moral contra as guerras, uma barreira assegurada pela coragem do sacrifício supremo. A porta abrir-se-á, de par em par, para a irracional «segurança dos nossos interesses». A ausência de heróis que sabem aquilo por que estão a morrer é o primeiro passo para o amontoado de cadáveres dos que serão massacrados como gado. O slogan «Better red than dead» não me irrita enquanto expressão de rendição à União Soviética; aterroriza-me enquanto expressão da renúncia dos povos do Ocidente a qualquer ambição de uma vida com sentido, e à aceitação de um poder total. Na verdade, aquilo que o slogan realmente diz é que não existe nada pelo qual valha a pena dar a vida. Ora, sem o horizonte do sacrifício supremo todo e qualquer sacrifício deixa de fazer sentido. Então, nada vale nada. Nada significa nada. O resultado é uma filosofia que nega abruptamente a nossa humanidade. No caso do totalitarismo soviético, essa filosofia mais não faz do que auxiliar os seus interesses. No caso do totalitarismo ocidental, é essa filosofia que o constitui e lhe dá corpo, directa e primordialmente.
Em suma, não consigo ultrapassar a minha convicção de que a cultura do Ocidente é muito mais ameaçada por ela própria do que pelos mísseis SS-20. Quando um estudante francês de esquerda me disse, com um brilho de sinceridade nos olhos, que o Gulag era o imposto a pagar pelos ideais do socialismo e que Soljenitsine era apenas um homem amargurado, deixou-me num estado de profunda tristeza. A Europa é incapaz de aprender com a sua própria história? Será que aquele jovem amável é incapaz de perceber que mesmo o mais promissor projecto de «bem-estar geral» está condenado a ser desumano a partir do momento em que pressupõe uma só morte involuntária – isto é, uma morte que não corresponde ao sacrifício da vida em nome do sentido da vida? Será ele incapaz de compreender tudo isso até ao dia em que se veja encarcerado numa prisão de estilo soviético nos arredores de Toulouse? Será que a novilíngua do nosso mundo penetrou de tal forma no discurso humano que duas pessoas deixaram de ser capazes de comunicar até sobre uma realidade tão simples?              
 
Tradução de António Araújo
 
 
   


impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 54 - CHET BAKER




 
Fotografia de Bob Willoughby (1953)



 
Fotograma de Bruce Weber (1988)

 

 
Causou pungente impressão no público europeu o regresso de Chet Baker no final da década de 70.
Tal como tantos outros músicos de jazz antes dele, Baker procurara no Velho Continente o aplauso e a tranquilidade que os Estados Unidos, por serem muito mais competitivos, dificilmente concedem. Ao contrário do que sucedera cerca de quinze anos antes, quando acabou banido da Alemanha e da Grã-Bretanha, desta vez logrou alguma estabilidade musical, experimentando o período mais prolífico da sua carreira. Foi também na Europa que recebeu a morte, que há tanto tempo o perseguia, ou ele desafiava. E morte desastrosa, concertada com o fado da sua vida, estatelando-se de um quarto de hotel para a rua, sabe-se lá se por acidente se empurrado – em ambos os casos a mando da heroína.
Distantes estavam os primórdios dos anos 50 em que um fugacíssimo lustro foi quanto bastou para que muito mais tarde Chet Baker e James Dean fossem reverenciados como as figuras icónicas de uma geração e da versão de Los Angeles da tendência estilística denominada de West Coast Cool. Cada um por seu lado, Dean radiando o glamour reluzente do cinema, Chet (apenas 2 anos mais velho), o outro lado da moeda, projectando as sombras expressionistas da boémia, ambos apresentaram-se como rebeldes sem causa, atraídos pelo perigo frívolo – não tiveram idade para ir à guerra – galhardeando a T-shirt branca e os jeans dobrados nos tornozelos, mas sobretudo um olhar de menino triste sublinhado pela poupa tão irrepreensível que dir-se-ia lacada. Foi como se tivessem inventado a adolescência.
Também tal como James Dean, Chet Baker gozou um êxito muito precoce e fulminante. Aos 22 anos de idade integrou o memorável quarteto sem piano de Gerry Mulligan e nele participou na origem do cool jazz. Passados dois anos, em 1954, cantou em “Chet Baker Sings” e a sua voz fez furor, por na secura e na falta de vibrato, ser tão divergente ao que era esperado de um crooner. Daqui em diante termina a sincronia de Baker com Dean, porque o trompetista impediu-se de morrer cedo e ter um belo cadáver, ao derivar na inexorável mas morosa degradação da droga.
 

 
The Touch of Your Lips
1979 (1994)
SteepleChase - SCCD 31122
Chet Baker (trompete), Doug Raney (guitarra),
Niels-Henning Ørsted Pedersen (contrabaixo)
 
É um espectro o Chet Baker a quem a editora dinamarquesa SteepleChase deu acolhimento em 1979. No rosto curtido como de um pescador desvanecera-se a aura de bad boy de outrora e sulcavam-se as marcas do calvário por que passara. O pior fora terem-lhe partido os dentes numa rixa, obrigando-o a reaprender a embocadura do trompete. Na gravação do disco “The Touch of Your Lips”, manifestamente incapaz de arcar com o fragor da bateria ou a amplitude do piano, foi defendido pelo guitarrista Doug Raney, domiciliado em Copenhaga havia dois anos, e o contrabaixista local Niels-Henning Ørsted Pedersen, que no Clube Montmartre robustecera o pulso acompanhando uma bela galeria dos grandes intérpretes que passavam em digressão pela Dinamarca.
Nem no apogeu Chet Baker revelara dons instrumentais de virtuoso. O seu cariz e a sua popularidade estavam, precisamente, em contrastar a intensidade dada como vernácula do jazz, com uma acústica límpida e estendida, derramada de modo descontraído. Mas o que dantes tinha o atrevimento de sugerir indiferença ou displicência, em 1979 expunha, de maneira cruel, as inúmeras imperfeições e debilidades técnicas de Chet Baker. Ora é exactamente por esta brecha que o prodígio se introduz em “The Touch of Your Lips”; socorrendo-se de uma paleta de recursos harmónicos minimal, de uma meia-dose de acordes que em nenhum momento sobrelevam o registo médio, desprendendo frases lineares e rarefeitas e cantando numa voz a que lhe falta o fôlego, Chet Baker supera em pathos o que lhe escasseia em perícia.
Talvez por ser uma das obras mais melancólicas do jazz, “The Touch of Your Lips” nunca falha em comover quem ouve.
 
 
 
 
José Navarro de Andrade