quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Memórias Perdidas - 7


 
 
 
 
 
                No outro dia, nesta rubrica «Memórias Perdidas», falou-se aqui das recordações de um militante de primeira hora do PPD, mais tarde deputado pelo PSD. Um homem da Guarda. Hoje, memórias de Viseu, vindas do outro lado da barricada. Mas, e esse é o ponto que interessa, mais afinidades do que poderíamos julgar.
Jaime Gralheiro fala de uma «"guerra" quase pessoal» ao referir-se aos tempos do PREC. Culpabiliza a Aliança Democrática (sim, a AD de final anos 1970 e princípios dos 80) por ter «morto» Abril e os seus sonhos. Desengane-se, porém, quem julgar que este é um livro amargurado, ressabiado, derrotado. Longe disso. O que resgata Gralheiro da ressentida amargura, o que o salva de ser (mais) um testemunho doloroso, é, por um lado, a evocação das suas raízes, omnipresente e enternecedora; e, por outro lado, a joie de vivre do autor, alegria incontida, que transborda em cada linha deste Os Dois Prec’s no Distrito de Viseu.
Filho de um volframista endinheirado, Jaime nasceu em Macieira do Sul, a aldeia mais serrana da freguesia, nas faldas do monte S. Macário. Era o «menino» da aldeia, o mais rico e filho de ricos, o primeiro a ver um automóvel. Quando a viatura dele se abeirou, o diálogo foi beirão, próprio de Mestre Aquilino:
- Cuidado pequeno! Olha o automóvel!
- Arreda, filho da puta!
Tivesse o carro ido noutra direcção e, se calhar, não teríamos o menino-Jaime a contar à rapaziada da sua criação como era um automóvel, veloz e luzente. Para que os outros percebessem, teve de lhes fazer no chão, com o auxílio de um pau, o desenho de um automóvel. Os outros não perceberam nada, insistindo na analogia com os carros de bois, os únicos que seus olhos tinham visto em vidas nascidas nos anos 30, século passado.
Depois, Jaime cresceu, cursou Direito em Coimbra, aí conheceu a sua primeira mulher, que faleceu subitamente. Desde 2000, tem uma «nova companheira e impulsionadora» (sic), Marília, e nas fotografias o casal parece muito feliz, ainda bem.        
   Católico progressista, Jaime fixou escritório em São Pedro do Sul. Devido às suas actividades oposicionistas, foi interrogado pela PIDE mas a coisa ficou por aí. Recebeu Abril por um telefonema de Carlos Carvalhas, seu conterrâneo. Foi uma revolução no café. Referimo-nos ao Café Edgard, sendo Edgard um comerciante e fotógrafo e mestre de outro fotógrafo, este mais de renome, Homem Cardoso. Pois no Café Edgard, São Pedro do Sul, reunia-se a elite da localidade, em rigorosa divisão, antes de 1974. À direita do balcão, por esta ordem: o deputado do círculo, o presidente da câmara, o senhor cónego (pároco da freguesia e arcipreste do concelho), o senhor marquês de Reriz, o juiz de direito, o procurador da República, o delegado de saúde e demais médicos e os quatro advogados da comarca. Também aí se sentava o chefe das Finanças, o gerente da Caixa Geral de Depósitos, o chefe dos Correios. Ah, e o comércio mais relevante: Fradique Carvalhas, António José Bandeira Carvalhas (pai de Carlos Carvalhas), António Silva (também conhecido por Mamouros) e, claro, os dois irmãos Custódios. Além deles, os três farmacêuticos, o dentista da localidade, os professores do colégio e o comandante do posto da GNR. Este último distinguia-se por nunca levar a esposa ao café, no que era acompanhado apenas pelo senhor cónego (pároco da freguesia e arcipreste do concelho). A meio da sala do Edgard, numa geografia social rasgada ao milímetro, ficavam os pequenos comerciantes, funcionários públicos, professores primários, empregados bancários, estudantes e passantes.
À direita, num patamar inferior, separado por um degrau e por um gradeamento em ferro forjado, a plebe da edilidade: caixeirada, alfaiates, ferreiros, ferradores, carpinteiros e mecânicos. Não consta que Zeinal Bava fosse cliente do Edgard. Mas, à graxa, estava o João Manco, de muletas, devido a uma poliomielite contraída em gaiato, que abrilhantava o calçado de quem pedia, fosse em que andar fosse da pirâmide social de São Pedro do Sul. Empregados: um alto e ágil, o Zeca; outro baixote e surdo, o João. Tudo sob a batuta diligente de Mestre Edgar, colocado atrás do balcão. Foi aí, no Café Edgard, que, após a madrugada inteira e limpa, o Dr. Jaime Gralheiro proclamou Abril, a bom som:
- Meus senhores, como sabem, foi derrubado o Fascismo em Portugal pelo Movimento das Forças Armadas. Amanhã, às 14h00, haverá em Viseu uma manifestação de apoio aos militares que devolveram a liberdade ao Povo Português e para a qual estão todos convidados.
Fez-se um silêncio incómodo. Mas lá saiu a manifestação, como saíram comícios, sessões de esclarecimento do MDP/CDE, campanhas no Alentejo, e uma amizade com o Vasco Gonçalves (e esposa), que perdurou até à morte deste.  
Jaime Gralheiro, esse, continua vivo. Recordando, em memórias perdidas, os seus tempos d’infância e meninice, a terra onde ficava a casa dos do Ferreiro, com quem o seu pai tinha uma zanga, a casa da tia Glória Ribeiro e a casa da Liberata, «que vivia sozinha e gostava de fazer favores a quem lhos sabia pedir». Sem esquecer, claro, a casa da Tia Nazaré do Sapateiro, gente boa, que recebeu os pais de Gralheiro quando estes ainda eram pobres, remediados remendados, antes da descoberta mágica do volfrâmio milionário. Foi lá, na casa da Tia Nazaré do Sapateiro, que nasceu Jaime, aqui sumariamente apresentado em linhas que não resumem uma vida inteira. Fica o livro, que pode ser adquirido nas sempre magníficas e viseenses Edições Esgotadas (o que, convenhamos, é um nome um bocadito suicidário para uma empresa editorial com fins lucrativos).
 
António Araújo


7 comentários:

  1. Ao contrário do que diz, há muito poucas afinidades entre o Alexandre Monteiro, anteriormente por si falado, e o Jaime Gralheiro (que, aliás, não continua vivo). Mas suponho que para um lisboeta sejam todos figuras patuscas da província profunda e até se encontram todos no mesmo balcão do mesmo café ;)

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    1. Nada disso, meu caro Caramelo, são vidas. Vidas vividas, e contadas em memórias escritas. É isso que me interessa divulgar aqui, sem facciosismos sectários. O Cesare Pavese dizia que «a vida é política». Talvez o seja. Mas o importante é viver para contá-la, como dizia outro escritor. Aqui o faço, com simples e naturalidade.

      Um abraço cordial,

      António Araújo (que espera ser mais do que um lisboeta deslumbrado por «figuras patuscas da província»)

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    2. Caro António Araújo, dizer que são "vidas vividas" é um truísmo, que vale tanto para o Mandela, como para o meu amigo Cesar que é técnico de computadores. Como sei que é culto e inteligente, e por isso o leio, acho que percebeu perfeitamente o meu anterior comentário.
      Outro abraço

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  2. Jaime era uma figura muito engraçada. Verdadeira dinamite era a mulher. Ele um moderado... Meu Avô, Governador Civil de Viseu durante alguns anos do Estado Novo, achava um piadão às "revoluções" do Gralheiro.

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  3. E sim, o Jaime já morreu... Mas ainda viu o cine-teatro da cidade (não se riam) de São Pedro do Sul tomar o seu nome.

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  4. José Daniel, essa foi uma homenagem que lhe fizeram, plenamente justificada. Não sei se o seu Avô lhe contou, mas o Jaime Gralheiro teve uma vida dedicada ao teatro, não só como fundador de uma companhia em São Pedro do Sul (onde levou o Garcia Lorca, por exemplo), como como encenador e, sobretudo, dramaturgo. Era um homem bom, para além de excelente advogado, sendo nacionalmente conhecido o seu trabalho sobre os baldios, e teve uma notável intervenção cívica, tanto antes, como depois do 25.A. Talvez por esta altura o próprio António Araújo já se tenha dado ao trabalho de saber quem foi a pessoa sobre a qual escreveu. Bastaria um mínimo de atenção para descobrir, por exemplo, que ele já morreu. Lamento o tom chocarreiro e um bocado sobranceiro do texto, apenas isso.

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  5. Meu caro António Araújo, viva!
    Como sabe, sou um leitor regular do seu blog, «Malomil».
    Face ao último «post» que colocou sobre o DR. Jaime Gralheiro, tenho que lhe referir, para que não sejam suscitadas interpretações menos adequadas da pessoa em causa, os seguintes factos.
    O senhor Dr. Jaime Gralheiro, para além de uma atividade politica pública intensíssima, era um advogado ilustre e combativo da comarca de São Pedro do Sul com quem tive o privilégio de trabalhar durante o período em que fui juiz nas comarcas de Vouzela e Viseu, tendo igualmente realizado com ele inumeros julgamentos nas comarcas de São Pedro do Sul e Oliveira de Frades, no inicio dos anos noventa do século passado. 
    O senhor Dr. Jaime Gralheiro não era no entanto «apenas» um advogado. Foi um jurista eminente, com obra publicada sobre as matérias de Baldios [«Regime Juridico dos Baldios em questão», in Poder Local, n.º 15, Setembro-Outubro , 1979; Comentário à(s) Lei(s) dos Baldios, Livraria Almedina, Coimbra, 1990].
    Mas o Dr. Jaime Gralheiro foi sobretudo um dramaturgo com algumas obras publicadas e encenadas, das quais saliento Onde Vaz, Luis, (Revista dos feitos do Sec. XVI, onde entra Camões e outros figurões que logo sabereis...), peça estreada no Teatro do Picadeiro, em setembro de 1981, pela Companhia de Teatro Experimental de Cascais; A longa marcha para o esquecimento, Edição CETA, Circulo Experimental de Teatro de Aveiro e Arraia Miuda, Editorial Inova, Porto, 1975.
    Não  posso deixar de sublinhar, para memória futura, estes factos, entre outros, que demonstram bem o valor e a relevância da sua intervenção cívica, profissional e intelectual que sempre foram reconhecidas por quem teve o privilégio de com ele pessoal ou profissionalmente, privar.
    Um abraço 
    Com amizade
    José Mouraz Lopes 

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