quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Antóno Araújo, o Liberalismo e eu (2).


 
 

Tendo recebido de António Araújo resposta ao meu último texto aqui publicado, e sendo já esse meu texto uma resposta à sua crónica no DN, venho pelo presente dar continuidade a este muito estimulante ping-pong digital, essa espécie de epistolografia que teve o seu momento de glória nos primeiros anos da blogosfera e que se encontra agora, infelizmente e talvez por culpa do Sr. Zuckerberg, moribunda.
Não é certo, porém, que tenha as competências necessárias para prolongar indefinidamente este debate, pelo que, perante eventual nova resposta daquele que é um dos literatos portugueses que mais admiro, talvez me limite a convidá-lo para jantar e a apresentar-lhe os meus argumentos diante de um copo de vinho e longe dos olhares de terceiros. Como reza aquela frase que toda a gente conhece e quase ninguém aplica, por vezes é melhor ficar calado e suspeitarem que somos uns tontos do que abrir a boca e acabar com todas as dúvidas.
Nos primeiros parágrafos que escreve, António Araújo, astuciosamente, desvia-se do ringue em que o quis colocar e convoca-me para um outro, bastante mais escorregadio para o tipo de calçado que uso neste momento. De qualquer forma, mesmo correndo o risco de me estatelar, aceito passar para o interior dessas cordas e discutir a problemática da coabitação neste blogue. Aqui vai: considero que o Chega não é flor que se cheire e tenho pena que a Cristina Miranda, com quem partilho este espaço, não tenha o olfacto afinado pelo mesmo diapasão com que temperei o meu. Posto isto, não acho que essa divergência constitua motivo suficiente para me afastar do Blasfémias e muito menos, obviamente, para pedir à Cristina que dê ela esse passo (da mesma forma que as afirmações do centrista Nuno Fernandes Thomaz sobre possíveis entendimentos do CDS com o Chega, uma opinião pessoal que António Araújo evoca no seu texto, não levaram a que ninguém, voluntariamente ou empurrado, batesse com a porta no Largo do Caldas). E também não acho que seja justo ler, como li no Malomil, que estou “ao lado do Chega”. Seria como se eu, “esticando” mais um pouco essa lógica, dissesse que o António, por partilhar a editora Tinta-da-China com o diplomata Franco Nogueira, ministro e biógrafo de Salazar, está ao lado do Estado Novo.
Claro que não vou dizer que seria normal, no Blasfémias, a publicação de um texto apologético de Estaline ou de Mao Zedong. Possível, era, pois ninguém tem de pedir autorização prévia para escrever o que lhe apetece, mas causaria manifesta estranheza dentro e fora de portas, aos colegas de blogue e a todos os que o lêem. Qual será então a diferença para o caso actual, o tal post da Cristina Miranda sobre o André Ventura? (E admito que haverá, de facto, alguma diferença, mesmo sabendo, como sei, que o António Araújo não foi o único a franzir o sobrolho perante as palavras da minha colega.)
A diferença, pelo menos em parte, está já identificada na resposta do António: ao contrário do que se passa em relação ao comunismo e ao fascismo “não diluídos”, nos quais ninguém, por mais imaginação que tenha, consegue desencantar pontos de contacto com o liberalismo, existem outras correntes, menos puras, que às vezes baralham a audiência. Não me refiro, naturalmente, aos diversos graus e nuances que podem (e devem!) coexistir no pensamento liberal, nem sequer ao célebre “conservadorismo liberal” que João Carlos Espada disseca, quase todas as semanas, no Observador. É certo que existem tensões nesse conceito, mas não me parecem irresolúveis (atenção: “conservadorismo liberal” é uma coisa, ter Abel Matos Santos e Adolfo Mesquita Nunes debaixo de um tecto comum que vale neste momento 4,22% dos votos é outra totalmente diferente – uma espécie de “iliberalismo liberal” muito mais difícil de gerir), e fico genuinamente contente com a diversidade e com as divergências: o liberalismo não deve ser rígido, sectário e dogmático, uma vez que a realidade é complexa e exige mais pragmatismo do que demonstrações de pureza ideológica.
Refiro-me, sim, a todas aquelas correntes que se dedicam a esquartejar o conceito de liberdade em pedaços, aproveitando os que consideram mais saborosos e deitando ao lixo os restantes, e que continuam a chamar “liberdade” aos sobreviventes do esquartejamento. E uma dessas correntes parece ser, sem dúvida, o Chega, existindo outras, à esquerda, que embora com uma escolha diferente dos pedaços a descartar, têm um comportamento semelhante.
Concordo, pois, com a essência deste texto que António Araújo publicou no Malomil, e se escolhi criticar o que escreveu no DN em vez de me dedicar ao Chega, isso deveu-se a ter ficado surpreendido com o seu conteúdo (que me diz directamente respeito e sobre o qual já reflecti longamente), a considerar que o autor merece que gaste tempo com ele, e a não me apetecer entrar em polémicas com um partido que procura avidamente as polémicas para se destacar e crescer. Respeito quem votou no Chega, compreendo muitas das preocupações e irritações dos eleitores do Chega, mas prefiro não falar demasiado do Chega, uma escolha que já está a correr mal dado o número de vezes que disse a palavra só nesta frase.
No entanto, em minha defesa, recorro a uma pequena recensão que publiquei no Observador em Maio deste ano e que recaiu sobre o livro Juntos, somos quase um 31. Liberais à solta! editado pela Alêtheia / Oficina da Liberdade. Nesse texto, apesar de ter elogiado a heterodoxia do volume, sublinhei o carácter controverso da inclusão de um capítulo dedicado ao programa económico de Paulo Guedes, ministro do Governo de Jair Bolsonaro. E se fiz esse sublinhado, foi precisamente por considerar que não basta estimular a liberdade económica para que um regime seja denominado liberal ou para que mereça elogios frontais ou velados. O caso de Hayek, que no meio de brilhantes contributos para a causa do liberalismo encontrou espaço para umas inacreditáveis afirmações sobre o Chile de Pinochet, devia ter servido de exemplo.
Na segunda parte da sua resposta, António Araújo, aproximando-se já do ringue escolhido por mim, aborda a problemática da difusão das ideias liberais em Portugal, começando por questionar a opção (julgo que atribuída à Iniciativa Liberal) de se querer começar por cima (“alcançar o centro do poder do Estado para a partir daí iniciar uma «revolução liberal»”) em vez de se começar por baixo, da sociedade para o Estado, através da formação de associações, publicação de livros, organização de seminários e conferências, etc. Não sou militante da IL, apenas simpatizante e eleitor, e por isso não sei se existe algum plano secreto para desencadear um golpe que coloque o João Cotrim de Figueiredo na posição de D. Pedro IV após o desembarque no Mindelo, quando este membro da Casa de Bragança sentiu necessidade de ameaçar os portugueses com um inopinado e infausto “Não me obriguem a libertar-vos!”. Até ver, não me parece que a eleição de um deputado signifique que a IL alcançou o “centro do poder do Estado” nem vislumbro qualquer sucesso numa eventual tentativa de iniciar uma “revolução liberal” a partir da cadeira solitária conquistada no Palácio de São Bento. Agora, se devidamente aproveitada, creio que a eleição de Cotrim de Figueiredo pode ajudar bastante no enraizamento da tal “cultura liberal” referida por António Araújo. Uma cultura que, definitivamente, não nasceu com a IL, e que contou, desde o 25 de Abril, com vários impulsos, dos quais vou destacar, sem pretensões de exaustividade, o Grupo de Ofir liderado por Francisco Lucas Pires, os textos que Pedro Arroja publicou na imprensa nas décadas de 80 e 90 (não desvalorizo as excentricidades e até um ou outro disparate, mas foi indiscutivelmente um “influencer” avant la lettre) e o surto de blogues liberais nascidos na primeira década do séc. XXI (não fiz parte desse surto, comecei a escrever no Blasfémias em Fevereiro de 2017, já a “grande festa” da blogosfera tinha acabado há muito).
Ao contrário de António Araújo – e ao contrário, também, de muitos liberais –, não menosprezo o que foi alcançado até hoje no campo da difusão de ideias. Concordo que o liberalismo ainda tem uma expressão pouco relevante em Portugal, mas não sei se, após décadas de uma ditadura antiliberal de direita (que só tinha como oposição organizada um partido antiliberal de esquerda) seguidas de mais uns longos anos em que só a liberdade política (e nunca a económica) podia ser defendida sem se ser insultado, era possível um cenário diferente. Os portugueses não são masoquistas, claro, mas são, como todos os outros povos, permeáveis ao discurso político dominante. E esse, tendo sido de direita até 74 e de esquerda depois, foi quase sempre, adaptando o conceito de Gramsci, hegemonicamente antiliberal. Como já lembrou neste blogue o actual presidente da IL, num congresso do PSD em 1995, ou seja, 6 anos depois da 2ª Revisão Constitucional, o congressista Luís Filipe Menezes não encontrou melhor do que “liberal” para baptizar pejorativamente os seus adversários internos. E a dimensão da vaia com que foi presenteado mostra bem o carácter insultuoso que se atribuía à palavra. Por isso, apesar da lentidão (que era, na minha opinião, inevitável), julgo que as ideias têm percorrido o seu caminho.
Na terceira parte da sua resposta, António Araújo entra, definitivamente, na questão que deu origem ao meu texto. Parece-me que este trecho vai ao encontro de algumas das coisas que eu disse, o que me deixa contente, sendo que eu também concordo com alguns dos novos argumentos trazidos à discussão.
O caso de António Filipe é interessante e estive para falar nele no meu post original. Ao contrário do que aconteceu com Ricardo Robles, esta polémica, relacionada com um dos mais experientes parlamentares do país, não “pegou”. Foi plantada, regada, podada e acarinhada e, mesmo assim, não deu frutos. E esse insucesso (insucesso para os opositores do PCP, claro) não se deveu à falta de ataques de António Filipe à família Mello/hospitais CUF; deveu-se, isso sim, à inteligência com que António Filipe (que sabe mais de política a dormir do que Ricardo Robles acordado) conduz as suas lutas, dirigidas contra a falta de investimento no SNS e contra as manobras de bastidores dos grupos privados ligados à saúde e não através de ataques aos utentes das clínicas e hospitais particulares, pois estes, humanos que são, limitam-se a tentar evitar os constrangimentos do sector público e a agir de acordo com os incentivos (palavra-chave importantíssima, essencial para se compreender o pensamento económico liberal) existentes. António Filipe só não se “tramou” porque não existia uma verdadeira contradição, tal como, acredito eu, ela não existe no caso dos liberais funcionários públicos. A não ser, claro, que esses liberais direccionem as suas críticas aos próprios funcionários, em vez de as direccionarem ao sistema político-económico que os enquadra.
Vasco Pulido Valente, que António Araújo chama aos seus textos, escreveu em 2006 o seguinte: “a sociedade portuguesa assenta numa «classe média de Estado», que não se tenciona suicidar por puro amor à consolidação financeira”. Também escreveu, nesse mesmo ano, um veemente e espirituoso “as classes médias nunca vão legislar contra os seus interesses. Estamos a pedir às putas que reformem o bordel”, com o qual não concordo, mas já lá vamos, depois de tratarmos do “suicídio”.
Exageros à parte, estaríamos perante uma situação desse género se eu decidisse, por uma questão de escrúpulo liberal obsessivo, despedir-me da função pública. A não ser que a causa do liberalismo precise de mártires, e não me parece que precise, qual é a vantagem, para o país, de eu sair num dia e ser substituído por outra pessoa no dia seguinte, mantendo-se todo o sistema exactamente igual? Coisa diferente seria uma reforma profunda que, apostando na liberalização do meu ramo de actividade (através de privatizações, ou de uma maior abertura ao mercado, ou de um aumento das parcerias com privados, etc.), me transformasse em trabalhador do sector privado. Eu estou disposto a apoiar essa reforma e, nesse caso, sendo português e acreditando que uma economia mais liberal melhorará a vida dos portugueses, o meu interesse próprio e o interesse geral do país estarão alinhados e em sintonia.
É por isso que não concordo com a frase em que VPV menciona os problemas da gestão estratégica de um prostíbulo. Se olharmos para a palavra “interesse” apenas numa lógica imediatista, a afirmação tem lógica. Mas o interesse, próprio ou geral, deve ser apreciado tendo em conta o curto, o médio e o longo prazo. Não estou a desprezar o dia de amanhã, pois ele inclui três refeições que me interessam e que terei de pagar, estou somente a dizer que não devo avaliar o meu interesse olhando unicamente para ele. O que o liberalismo precisa, pois, mais do que de D. Quixotes solitários a autoflagelarem-se pela causa, é de homens e mulheres que, acreditando nela, a tentem transmitir da melhor maneira, convencendo outros dos seus benefícios, para que esta possa reunir o apoio público e eleitoral necessário ao seu aprofundamento. E também precisa, naturalmente, de “tropas” no Estado, pessoas como Cotrim de Figueiredo e Mesquita Nunes, que, curiosamente no mesmo sector – o turismo –, trabalharam em prol da liberalização do país. Se, por exigência moral desproporcionada, estes dois liberais se tivessem recusado a “vencer mensalmente pelo Orçamento do Estado”, Portugal estaria hoje muito mais pobre, e o “bordel”, para voltarmos a Pulido Valente, estaria eventualmente a ser reformado, à força, por “putas” de fora, vindas directamente do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do FMI.
 
(para o António Araújo, com um abraço amigo e votos de um bom feriado)
 
 
Sérgio Barreto Costa



 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

São Cristóvão pela Europa (102).

 
 
 
 
Também na Suécia se encontram imagens de São Cristóvão.
No exterior da igreja de São Pedro em Malmoe, um friso de santos, sendo o terceiro a contar da direita o nosso.
 

 
 
Na Igreja de Santa Gertrudes em Falsterbo, uma muito curiosa imagem dentro de uma estrutura que se fecha com um díptico alusivo:
 
 

 
Em Östra Vemmerlöve, um fresco:
 

 
Em Fjelie, um fresco e uma imagem de madeira:
 
 
 

 
Fotografias de 19 e 20 de Agosto de 2019
José Liberato

domingo, 27 de outubro de 2019

Para um diálogo com um liberal (3).

 
 
 
 
          Tendo Sérgio Barreto Costa publicado no Blasfémias um texto crítico de um escrito meu no Diário de Notícias, e tendo ele a gentileza de me enviar o respectivo link, acedi de imediato a divulgar esse seu texto no Malomil, pela oportunidade que me dá de estabelecer um diálogo frutuoso e intelectualmente estimulante com uma pessoa que muito prezo.

          Irei fazer alguns comentários esparsos, sem preocupações de sistematização, e o Sérgio Barreto Costa, querendo, poderá responder também aqui.
 
          Meu caro Sérgio Barreto Costa,
 
          Entrando na questão que motivou o seu texto, e esperando não prolongar este diálogo para lá dos limites da sua paciência, a resposta parece-me óbvia: é claro que um funcionário público pode ser liberal, e um liberal pode ser funcionário público. A Administração pública portuguesa já não faz, ou ainda não faz, exigência de prova de que não se professa este ou aquele credo político. E o funcionário ou agente do Estado pode, naturalmente, sem mácula para a sua coerência, e menos ainda para o seu conforto, defender o que quer que seja. A isso chama-se liberdade.
          Onde está então o problema? No seu texto, o Sérgio refere o exemplo de Ricardo Robles, que V. castiga – e bem – pela contradição entre o que proclama e o que pratica, ou praticou. Não faz muito sentido, de facto, clamar aos quatro ventos contra a especulação imobiliária e, pela surra, andar a especular imobiliarmente. Não faz sentido, é contraditório, é incoerente.
E pode um comunista ir a um hospital privado? Recordo a Sérgio Costa e aos leitores que não há muito viram António Filipe num hospital particular e logo fizeram um vendaval (ao que parece, ele até estava ali a visitar uma pessoa de família, como o próprio esclareceu, mas aqui tem a notícia da revista Sábado). Pois parece-me que a um militante do PCP não está vedado o acesso ao Hospital da CUF, nem deve estar. Mas agora imagine-se que António Filipe bramava aos quatro ventos contra a investida da família Mello no sector da saúde, contra a falta de qualidade dos cuidados médicos ou contra a exploração dos trabalhadores dos hospitais privados. Seria legítimo e coerente da sua parte ir depois dar dinheiro a ganhar aos Mello, contribuir para o incremento do seu poderio, ou recorrer a mão-de-obra explorada e a serviços médicos que considera calamitoso?
          Pela boca morre o peixe, como se costuma dizer. Para mim, no que posso estar enganado, é tudo, como sempre, uma questão de bom senso, do tom e do modo como se colocam as coisas. Dir-me-á que então tudo é, afinal e apenas, uma questão de estilo e de verbo, não de princípio ou de substância. Exactamente. Na esfera pública, a coerência também se avalia pela forma, pelo estilo, pelas palavras usadas, pelo tom do som, por aquilo que se diz e não diz, pois isso faz da mensagem, isso é a mensagem, não havendo diferença entre forma e conteúdo.
Assim, se eu disser, com contenção e serenidade, com argumentos racionais baseados em factos ou realidades comprovadas, que se tem de repensar a dimensão do Estado, que isso implica muito provavelmente uma redução do número de funcionários, etc., creio não haver problema em ser liberal, comunista ou o que for e manter um emprego no Estado (aliás, se prevalecesse uma lógica radical, um anarquista ou um comunista também não poderiam ser funcionários públicos). Mas se escrevo crónicas impetuosas, se grito e esbracejo contra o gigantismo do Estado e sobre a desmesurada massa dos seus funcionários incompetentes e pouco motivados, que exemplo de coerência dou, sendo eu funcionário público ou aposentado da CGD? Abstenho-me sequer de citar-lhe textos impetuosos de Vasco Pulido Valente ou de Maria de Fátima Bonifácio, dois autores que admiro em muito do que pensam e escrevem, mas não na sua coerência nesta matéria.  
          De facto, como se pode defender inflamadamente a tese das «gorduras» da Administração e proclamar uma dieta drástica, de milhares de funcionários e de centenas de organismos e, ao mesmo tempo, vencer mensalmente pelo Orçamento do Estado? Não sei em que departamento do Estado V. trabalha, meu caro Sérgio, mas não seria ele um potencial alvo de extinção, acaso ficássemos, como muitos propõem, só com a justiça, a diplomacia e as forças armadas? Dir-me-á: nada disso, não se advoga a extinção de tudo, apenas do que está a mais, do que é supérfluo. Mas quem define o que está a mais, o que é supérfluo? Eu, V., uma comissão de burocratas ou um programa partidário? E porque é que, havendo «redução» e «emagrecimento», eles têm de ocorrer para o colega do lado, não para mim? Porque é que a extinção deve acontecer para o departamento Y mas não para o organismo onde eu trabalho onde estou, a filosofar comodamente na companhia de John Locke e de Adam Smith?
          É que, meu caro Sérgio, um dos argumentos que V. aduz para salvar a sua posição baseia-se na ideia de «interesse próprio». Pois é isso que inquina as coisas. Quando eu falo em matéria política tenho de falar em nome do interesse geral, chame-lhe interesse nacional, interesse colectivo, interesse do país ou o que quiser. Não posso construir um programa político com base no meu interesse próprio, não dá. Mas o que sucede então? Raciocino com base no meu interesse próprio de funcionário do Estado ou com base no interesse geral de redução desse mesmo Estado? Dir-me-á que, em caso de conflito, um liberal de boa-fé fará prevalecer o interesse de todos e, numa atitude suicidária, concordará que, de facto, não faz sentido existir o organismo em que trabalha, mais uma «gordura» alimentada pelos impostos dos contribuintes. Mas, assim, lá se vai o «interesse próprio» e, no fundo, o pressuposto que ditou a entrada do funcionário liberal nos quadros do Estado…
É que também há isso: ao aceitar ser funcionário público, não estou, eu próprio, com a minha atitude e egoísmo individuais, a prejudicar o interesse do país, materializado em menos funcionários e menos peso do Estado? E não é essa prevalência do meu interesse egoísta sobre o interesse público, de que eu próprio sou exemplo e encarnação viva, a prova mais cabal de que não se pode deixar tudo à solta e confiar cegamente na mão invisível? Também se pode dar o caso de um liberal a valer só aceitar trabalhar em lugares do Estado que considere insusceptíveis de extinção, a (começar pelo seu…). Mas, sinceramente, meu caro Sérgio, alguém que participa num concurso público pensa assim? Pensa, claro, ou deve pensar, que o lugar para que se candidata é útil, imprescindível até. Mas, ao olhar para os anúncios dos concursos, alguém faz uma triagem «liberal» e só escolhe concorrer a lugares ou entidades que possam escapar a medidas e reformas liberais? Alguém de bom senso procede assim, sacrificando o seu interesse em entrar para o Estado ou, uma vez lá dentro, em movimentar-se na busca de melhores lugares)  
          Como vê, não tenho quaisquer problemas quando um liberal – para mais, um liberal de boa-fé como V. – é também funcionário público. Mas que as coisas precisam de ser mais amadurecidas e ponderadas, disso não duvide.
 
          Um abraço e bom domingo,
 
António Araújo
 
(Continua)





 

sábado, 26 de outubro de 2019

Pato à Pequim.

 
 
1
 
 
 
Uma coisa que não percebo ou, se percebo, percebo que é pelas mais vis e venais razões. O El País aceita ter no seu interior um extenso caderno de várias páginas chamado China Watch que é um descarado panfleto de propaganda ao regime de Pequim. Notícias sobre notícias do império maravilhoso, nem uma palavra sobre direitos humanos, minorias étnicas, Prémio Sakharov, protestos nas ruas. É esta a matriz ética do El País? E, já agora, de muitos jornais portugueses que se prestam ao mesmo serviço? E de sociedades de advogados lisboetas, como a Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, que são membros honorários de uma coisa chamada Associação de Amigos da Faixa e Rota?
          Por uma vez: a China é uma ditadura. Não tem liberdade de expressão, direitos humanos, outras garantias básicas e, portanto, outra vez: a China é uma ditadura. O El País, que eu saiba, não foi um projecto jornalístico criado para apoiar ditaduras ou ser subsidiado por elas. Na China, o El País não existiria – esse é o ponto. E se falassem aos jornalistas do El País ou aos advogados da Morais Leitão que estavam a apoiar Hitler ou Goebbels, ai jesus. Hoje não há Hitler nem Goebbels, ainda que haja candidatos a isso. Hoje, a maior ameaça à democracia e aos direitos humanos à escala mundial é a China. Mas, claro, é melhor olhar para o lado na hora de fazer dinheiro, que a vida custa a todos. DESPREZÍVEL.
 
 
 

Rayma Suprani.

 
 












A cartoonista Rayma Suprani foi exilada por causa das suas vinhetas incómodas para o regime de Chávez e Maduro. Agora, ilustra os traumas do êxodo venezuelano. O site dela, aqui, e a notícia do El País, acoli.
 
 
 

São Cristóvão pela Europa (101)

 
Encontrei mais dois São Cristóvãos na Dinamarca.
Na Catedral de Aahrus, a segunda cidade da Dinamarca, um altar muito antigo tem na sua parte de trás a imagem de São Cristóvão.
 
 

Em Stevns, na Igreja de Højerup, um fresco:
 
 

 
 
Fotografias de 17 e 20 de Agosto de 2019.
José Liberato
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Para um diálogo com um liberal (2).

 
 
 
 
          Tendo Sérgio Barreto Costa publicado no Blasfémias um texto crítico de um escrito meu no Diário de Notícias, e tendo ele a gentileza de me enviar o respectivo link, acedi de imediato a divulgar esse seu texto no Malomil, pela oportunidade que me dá de estabelecer um diálogo frutuoso e intelectualmente estimulante com uma pessoa que muito prezo.
          Irei fazer alguns comentários esparsos, sem preocupações de sistematização, e o Sérgio Barreto Costa, querendo, poderá responder também aqui.
 
          Meu caro Sérgio Barreto Costa,
 
          Como sabe, há um tema que os «liberais» portugueses adoram discutir, com contornos quase obsessivos: a ausência de um «pensamento» ou de uma «cultura liberal» em Portugal. No que incorrem numa contradição nos termos, pois se não há «pensamento» ou «cultura» liberais entre nós, de onde terão surgido os nossos «liberais»?
          Sejamos justos: o que se pode dizer é que essa «cultura» ou esse «pensamento» não estão suficientemente enraizados e sedimentados, que são ultraminoritários, que não têm expressão num país dominado pelo Estado e, pior ainda, pelo «estatismo».
          Mas querer alcançar o centro do poder do Estado para a partir daí iniciar uma «revolução liberal» não é começar por cima? Não significa contradizer os princípios mais básicos do liberalismo começar pelo Estado, antes de começar pela sociedade civil?
          Entendamo-nos: ou dizemos que em Portugal não há uma «cultura liberal» e, menos ainda, uma «sociedade civil liberal», e aí o esforço deveria iniciar-se pela formação de associações, clubes, pela publicação de livros, pela organização de seminários e conferências, por acções junto dos jovens, ou seja, o esforço deveria começar de baixo para cima, da sociedade para o Estado, e não o inverso; ou afinal concluímos que já existe uma sociedade civil liberal – e aí a questão é saber porque é que ela tem tido tão pouca capacidade de enraizamento político num país dominado pelo «estatismo».  
          Em qualquer dos casos, a pergunta impõe-se: que têm feito os liberais portugueses para difundir as suas ideias e para propagar a sua doutrina? Pelos vistos, pouco, uma vez que o país continua dominado pelo «estatismo» nas atitudes e nos comportamentos da classe política mas também da própria sociedade civil e, já agora, de parte substancial do nosso empresariado. E mesmo que se admita que tem havido um trabalho aturado e sério de divulgação do liberalismo e das suas vantagens, o facto é que esse trabalho não tem tido até hoje resultados muito visíveis, no que penso que concordará comigo. É estranho que as pessoas vivam há décadas esmagadas pelos impostos e sufocadas pela ineficiência do Estado e que até hoje não tenha surgido uma formação política liberal com uma expressão relevante. A menos que concluamos que os portugueses são masoquistas, isso é muito estranho, não lhe parece?
          A questão que se coloca, uma vez mais, é a da vitimização fácil, mas inconsequente. Quando somos incapazes de difundir as nossas ideias por causa do «estatismo» reinante, devemos interrogar-nos se a culpa é do estatismo reinante ou das nossas ideias. A culpa pode ser também do modo como as temos difundido ou, sobretudo, como as não temos difundido.  
Quer-me parecer que culpabilizar o «estatismo» é um expediente cómodo e desresponsabilizante, e que atribuir todas as culpas ao «estatismo» só explicará, quando muito, uma parte do problema. Trata-se, aliás, de uma atitude bem pouco liberal. Um empresário a sério ou um liberal a valer confiam no poder das suas capacidades, adaptam-se às agruras do meio envolvente e vencem as adversidades tremendas, não estão sempre a culpar o alheio, a atribuir-lhe constantemente a causa dos seus fracassos. Não é esse, no fim de contas, o valor e o mérito da «autonomia» e do «indivíduo»? Se um empresário passar a vida a lamentar-se de burocracias e impostos, a culpar o Estado por não conseguir compradores para os seus produtos ou para exportar as suas mercadorias, mais vale fechar as portas e dedicar-se a outra actividade.
Empregar-se como funcionário público é uma opção sensata: se não conseguirmos vencer o Estado-Papão, mais vale juntarmo-nos a ele, com um emprego estável e seguro para a vida, longe das amarguras da actividade privada. E aqui entramos na questão fulcral, na questão que deu ensejo ao seu texto, a de saber se é legítimo um liberal ser funcionário público. Sobre ela falarei em breve.
 
Até lá, aceite um cordial abraço do
 
António Araújo
 
(Continua)