sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Watch Hill, Rhode Island.




Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida








 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Mais perto do céu.

 



Parece um teste de Rorschach ou um caleidoscópio de crianças, mas não é. É o génio de Gerhard Richter (naquele que, segundo ele, será o seu último trabalho), em colaboração com o artista afegão (e muçulmano) Mahbiba Maqsoodi. A abadia do mosteiro de Tholey, o mais antigo da Alemanha.







São Cristóvão pela Europa (131).

 


Já tínhamos ido a Portalegre: http://malomil.blogspot.com/2020/07/sao-cristovao-pela-europa-114.html.

Só que o meu amigo Jorge Guimarães encontrou-me mais dois São Cristóvãos, o que me levou, com imenso gosto, a revisitar Portalegre.

Com efeito, no Museu José Régio que dispõe de um espólio de arte sacra como há poucos em Portugal, pode encontrar-se um registo dedicado a São Cristóvão. Os registos, frequentes no nosso País, são pequenos quadros de imagens religiosas com uma moldura muito decorada e geralmente de formato invulgar:




 

Não muito longe, na Rua da Sé, um azulejo:





 

E por falar em azulejos, há um em Pero Pinheiro, concelho de Sintra, na rua principal:




 

Fotografias de 18 de Agosto e 21 de Setembro de 2020.

 

José Liberato




quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Iconografia Beethoven.

 







Preparava-me para apreciar lado a lado o Beethoven-action-man que me saiu ao caminho numa montra de um lugarejo remoto (boneco 1), e a mais icónica representação do compositor (boneco 2), quando com dou de caras com a extraordinária história deste último retrato – a história do artefacto, mais do que a da pintura.

 




Por extraordinário que seja o retrato e a sua história – se me é ainda permitido o à parte –, não obsta a que continue a ser bem-vindo aquele refrescamento da representação de Beethoven mais condizente com o século 21. A série de 4 gravuras que Andy Warhol extraíra em 1987 (boneco 3), qual lata de sopa Campbell, da pintura de 1820, resulta já, convenhamos, um nadinha século 20. Seja como for, nem o Beethov-man nem o Beethov-série apoucam um pedacinho sequer da obra, incluindo a sinfónica.

 

Em duas pinceladas, eis parte da história do artefacto -- ainda que a pintura, da autoria de Joseph Karl Stieler, tenha também ela que se lhe diga. Consta ser este o único retrato para que Beethoven acedeu posar em vida. Antoine Brentano, um dos membros do casal que patrocinou a obra, teria inspirado a Beethoven uma fervorosa paixão e, pelos vistos, uma inusitada paciência.

 

Mesmo assim, o arrebatado retratado não aguentou mais do que 4 sessões de pose, distribuídas ao longo de três meses. As mãos que na pintura seguram o manuscrito da Missa Solene já não são as que a compuseram, mas as que saíram da memória do pintor. Já aqui se aludiu à quase cómica intolerância do músico perante o que o aborrecia. De maneira que no retrato tanto podemos imaginar, como muitos, desprender-se do fundo florestal a força da natureza que ele próprio encarnava – ou do fundo de plantas o amor que lhes tinha –, como a impetuosa vontade de mandar tudo aquilo às malvas e voltar quanto antes para o piano, subito.

 

Mas seria bem mais atribulada a história do artefacto material, pelo menos a partir do momento em que entrou na posse de Henri Hinrichsen, um respeitado membro da comunidade judaica de Leipzig, e se tornou um alvo de eleição da gigantesca apropriação Nazi de obras de arte. O quadro foi um dos objetos do saque nazi na Noite de Cristal, a que se seguiria o confisco e arianização da editora musical de que Hinrichsen era proprietário, acabando na morte do próprio nas câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau.

 

Finda a guerra, e após novo confisco – desta feita pelo Exército Vermelho – o retrato foi reavido pelo filho Hinrichsen, em Nova Iorque, através de intensa negociação.

 

E voltaria agora a atravessar o Atlântico para aterrar na casa onde Beethoven nasceu, em Bona, onde se encontra exposto.

 

Manuela Ivone Cunha







terça-feira, 22 de setembro de 2020

O barroco a Oriente.

 

 

E tudo e todos em Lisboa. A propósito do extraordinário festival Todos – a um tempo caloroso, festivo e rigoroso - que ontem fechou com clave de ouro.

 

Ballo cavalino · Com Renaud Garcia-Fons e Claire Antonini

 



 

Manuela Ivone Cunha






segunda-feira, 21 de setembro de 2020

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Bissau na história do BNU.

 





Bissau na história do BNU (Banco Nacional Ultramarino)

Da capital em Bolama a Bissau, sede de negócios de toda a Guiné

 

Mário Beja Santos

 

 

Resumo

 

O acervo dos relatórios das agências do BNU (Bolama e Bissau) conservados no antigo Arquivo Histórico do BNU (neste momento encaixotados a aguardar destino) permitem conhecer com maior acuidade a realidade política, sociocultural, económica e financeira da colónia entre a I Guerra Mundial e a criação do Estado da Guiné-Bissau. Nenhuma outra fonte não-oficial é tão rica em informação. São documentos por vezes desconcertantes, pela franqueza dos responsáveis das agências, dão-se informações confidenciais, denunciam-se corrupções, revelam-se falências, expõem-se, por vezes com contundência, imoralidades ao mais alto nível. Mal criada a delegação de Bissau, em 1917, os relatórios de Bolama desencadeiam uma feroz hostilidade a Bissau; decresce a importância de Bolama, Bissau, gradualmente, prospera, o seu porto é mais apetecível para as exportações, a terceira campanha de Teixeira Pinto assegurara uma atmosfera mais propícia aos negócios, tanto na ilha como através do rio Geba. Têm grande significado as exposições em que a agência de Bolama pretende mostrar as vantagens da manutenção da capital naquela região dos Bijagós. Os relatórios são minuciosos a descrever campanhas para pacificar subversões, nomeadamente nos Bijagós. Enfim, fontes documentais jamais utilizadas na historiografia da colónia.

Bissau vai ganhando preponderância no início da década de 1930, com o desenvolvimento da agricultura os relatórios vão refletir a nova realidade económica e espelharão o impacto da II Guerra Mundial na região. A era de Sarmento Rodrigues irá pôr a colónia no mapa. Na segunda metade da década de 1950 haverá a perceção de grandes mudanças. É nesse contexto que é do maior significado o relatório de 1957 sobre a situação da Guiné feito pelo administrador do BNU Castro Fernandes, figura de proa do Estado Novo e antigo Ministro da Economia. São também de grande importância os relatórios do BNU no período crucial de 1962 a 1964, narram minuciosamente a evolução da luta armada.

Por ser uma instituição bancária sem qualquer competidor, o BNU detinha uma informação primordial sobre o estado da agricultura e os negócios que se efetuavam por toda a colónia e os dados que revelam permitirão a que os historiadores possam dispor de factos documentais até hoje inexplorados para uma grande angular da economia da Guiné no século XX, até à independência.

As fontes consultadas foram constituídas por relatórios saídos do punho dos responsáveis das agências, uma imensa documentação avulsa, que em certas circunstâncias se revelou do maior interesse e o acervo das atas das reuniões do Conselho de Administração do BNU referentes ao pós 25 de Abril, mostrando a evolução das negociações entre o Estado Português e o Governo da Guiné-Bissau, que se saldou na integração do património do BNU no Banco Central da Guiné-Bissau. Sem surpresas, Bissau está no centro dos acontecimentos do eclodir da subversão e em Bissau se encerra o processo de transferência do BNU para o Banco Nacional da Guiné-Bissau.

 

O pano de fundo, Bolama em decadência, Bissau em ascensão: o conflito

Tenha-se em consideração o que escreveu a arquiteta Ana Milheiro em “Construir em África, 1944-1974, A Arquitetura do Gabinete de Urbanização Colonial em Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique”, ISCTE-IUL, 2013: “A nova capital cresce e desenvolve-se a partir do Plano para a Nova Cidade de Bissau desenhado, ainda durante a I República, pelo engenheiro-chefe da Direção de Agrimensura, José Guedes Quinhones, em 1919. Este plano assentava num traçado geométrico e em uma malha ortogonal de ruas largas, marcando claramente duas avenidas: a Avenida de Cintura, que atuava como limite da urbe existente e dividia a ‘cidade branca’ das povoações locais, e a futura Avenida da República, que ligava a zona baixa do porto da cidade à Praça do Império, culminando no Palácio do Governo”.

Voltando muito atrás, a história de Bissau aparece associada a um entreposto, só no século XVIII surge uma fortaleza que pouco durou, houve que reconstruir o que é hoje a Amura, a partir de 1753, aí se constituiu o núcleo duro de administração colonial em torno de muralhas defensivas. É bastante extensa a bibliografia constante dos arquivos de relatos sobre esta pequena Bissau que ia do Pidjiquiti até à Amura, a S. José de Bissau, vivia-se desconfortavelmente, com tropas amotinadas, andrajosas, instalações degradadas, uma falta de higiene gritante, é uma documentação inequívoca que revela claramente a hostilidade da população envolvente na ilha. A situação alterar-se-á substancialmente a partir da terceira campanha do capitão Teixeira Pinto, com a submissão dos principais régulos da região de Bissau. O governador Carlos Pereira dera o mote, em 1910, fazendo derrubar as muralhas, procurando a aproximação, fica para trás a história da agitação permanente em que houve necessidade de pedir até à Marinha estrangeira ou ao governador de Cabo Verde de enviar tropas para intimidar sublevados ou agressores da pequena Bissau.

Estamos a ultrapassar a fase da Guiné das praças, entrepostos e presídios, a viragem dá-se com a criação da capital em Bolama, quando a Guiné se autonomiza de Cabo Verde. Do século XIX para o século XX, é em Bolama que está a administração, Bissau vai-se constituindo como o cais de acostagem mais apetecido pela Marinha de Comércio, nacional e internacional. Basta ver as estatísticas do início do século XX para perceber que é fundamentalmente em Bissau que se dão as cargas e descargas.

A investigação a que procedi sobre a história do BNU revela que os acontecimentos socioeconómicos e políticos, designadamente no período da I Guerra Mundial, estão centrados em Bolama. Mas o primeiro documento que encontrei no Arquivo Histórico do BNU tem data de junho de 1915, é classificado como reservado e fala da guerra em Bissau. Ali se diz que em 3 de junho, os Papéis e os Grumetes de Bissau tinham atacado a vila com a intenção de massacrar os habitantes, saquear os estabelecimentos e depois oferecer a ilha ao governo inglês ou francês. Quem irá resolver o diferendo é João Teixeira Pinto, com uma pequena força e tropa regular e cerca de 1 500 auxiliares. O responsável pela agência do BNU em Bolama irá escrever textualmente que “foi principalmente devido à valentia deste oficial que hoje não há a lamentar um enormíssimo desastre. O inimigo, munido com armas boas e muito modernas, sustentou um combate violento durante cerca de duas horas junto do mercado de Bissau, acabando por retirar perseguido pelos nossos. As nossas forças avançaram para o interior da ilha onde têm tido rijas pelejas, mas não há dúvida que desaparecerá de vez a lenda de que os Papéis são invencíveis”. A administração em Lisboa agradece em 13 de julho: “Excelentes são as notícias que Vossa Senhoria nos dá sobre a sujeição dos Papéis, da qual resultará a pacificação da Guiné, factos que, certamente, vão ter decisiva influência no progresso desta colónia”. Mas havia escaramuças nos Bijagós, o que trazia transtornos para os negócios da mancarra. Tudo era difícil naquele período da guerra, no movimento comercial de 1916 tinham-se registado aumentos na exportação do coconote e diminuições na exportação da mancarra. Havia também carestia de artigos importados. O responsável pela agência deplora a situação de Bolama, a qualidade dos transportes marítimos, a má organização do serviço alfandegário, a falta de comodidades dos munícipes.

1917 é o ano em que abriu a agência do BNU em Bissau, vão arrancar as guerras de afirmação entre Bolama e Bissau. Não propriamente logo em 1917, a agência de Bissau vai funcionar num andar arrendado, com mobiliário emprestado. Em setembro de 1918 será autorizada a compra do terreno e a construção do edifício da agência. O gerente de Bissau insistia na solução de se fazerem as obras na época seca de 1918-1919, dá preços de salários, de pintores e serventes, de materiais a cal de casca de ostra. Tece novas referências à guerra dos Bijagós. O surto da gripe espanhola eclodira na Guiné, e o gerente de Bolama comenta: “O Serviço de Saúde está numa lástima; tudo falta, remédios, desinfetantes, aparelhos e instrumentos, etc. À data em que escrevemos, a vida em Bolama está por assim dizer paralisada; a população aterrada com a grande quantidade de óbitos que ultimamente tem havido, não só devido à época mas porque também desde a última estadia aqui dos vapores vindos de Lisboa a epidemia da gripe infeciosa deu entrada na Província e por ela alastrou com grande rapidez, causando, principalmente em Bolama, grandes estragos na população, tanto europeia como indígena”.

A I Guerra Mundial deixara marcas profundas na vida guineense, a carestia de vida era por demais evidente, todos viviam uma vida difícil. Nesse ano do fim da guerra, logo em janeiro, o gerente de Bolama informa Lisboa: “Os indígenas de Canhambaque renderam-se pela fome. Vieram os régulos a Bolama prestar vassalagem”. Alguém, na administração em Lisboa, escreve a lápis: “Muito folgamos com a notícia”.

Já despontou a rivalidade entre as agências de Bolama e Bissau, é o momento propício para o gerente de Bolama querer mostrar a Lisboa que o futuro está em Bolama e daqui para o interior da Província. É um documento espantoso que iremos seguidamente apreciar.

Doravante, vão ganhar destaque os sinais de competição entre as agências do BNU da Guiné. No seu relatório do pós-guerra, o gerente de Bolama agarra-se com unhas e dentes à tese de que o futuro da Província tem o seu farol naquela capital criada em 1879, dali irradiará irrevogavelmente o desenvolvimento. É da maior pertinência ler a sua argumentação, prevendo um futuro que não aconteceu:

“Se hoje o comércio procura de preferência Bissau, se ali acorre a navegação de longo curso, se se traça a planta de uma grande cidade, tudo isso pode sofrer profundas alterações desde que o porto de Bissau deixe de ter a importância que hoje tem.

Não há razões senão transitórias para que ali hoje se centralize o mais importante comércio da colónia. O seu porto desabrigado, batido no tempo das chuvas por violentos tornados, a violenta corrente do rio Geba que, certamente na opinião dos entendidos, provocaria enormes assoreamentos se se fizessem muralhas e aterros para atracações de grandes navios e para projetadas gares marítimas, e a ideia de ali fazer a testa de um caminho-de-ferro de penetração que teria de atravessar extensas regiões alagadiças, estão em contraposição com o porto de Bolama: abrigado, com fraca corrente, gabado pelos capitães de navios estrangeiros que conhecem um e outro porto e com a circunstância de mesmo em frente de Bolama ficar o continente e onde poderia ser a testa de um caminho-de-ferro que subindo pela margem esquerda do rio Geba pusesse o interior em comunicação com o porto de Bolama.

A realização desse melhoramento derivaria a maior parte do movimento para Bolama. Para saída da Província, o próprio canal de Orango, direto a Bolama, daria melhor navegação, no dizer dos náuticos, depois de balizado, que o Canal do Geba hoje usado.

Se a proposta que o Governo da colónia fez já ao Ministro para balizagem daquele canal e para início do estudo do caminho-de-ferro de S. João (em frente a Bolama) fora avante e dela resultara a convicção de que razão têm ou não técnicos, mas conhecedores do terreno, que o traçado natural deve ser de S. João a Bafatá, mais que certo será o declínio de Bissau e consequentemente a transição da importância do comércio de Bissau para Bolama.

Daí resultará também o repovoamento da vasta e rica região do Rio Grande, tendo-se já com esse fim deixado essa área com uma taxa de imposto de palhota menos elevada que a de outras regiões da colónia, tentando ali fazer convergir a população que outrora foi batida e escorraçada para outros pontos pelos Beafadas, hoje sem poderio.

Enquanto porém esse plano e projeto não for realizado e dele resultem consequências benéficas para Bolama, os lucros desta Filial serão variáveis”.

 

A Guiné recentra-se em Bissau, Bolama parte para a luta

 

Na sequência dos anos difíceis do pós-guerra, em maio de 1922 são tomadas medidas para que o BNU em Bissau tenha instalações próprias. Nesse tempo foi adquirido um prédio cujo rés-do-chão ficou destinado a escritórios e o primeiro andar à habitação do gerente. Em 1925, de acordo com uma certidão da Repartição da Fazenda do Concelho de Bissau, fica-se a saber que no novo bairro da cidade o BNU tem mais espaço, há uma casa em alvenaria e três dependências isoladas.

Enquanto o gerente da filial de Bolama, nesse mesmo ano de 1925 volta a informar Lisboa de indícios de revolta na ilha de Canhambaque, chegam a Bolama dois aviadores e um sargento mecânico que serão muito bem recebidos e até acabarão envolvidos a bombardear nos Bijagós.

Mais adiante, em 1925, é dado à estampa uma “Memória da Província da Guiné”, é seu autor Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro, funcionário colonial. É um homem esperançado, deslumbrado e não o esconde no prefácio do seu escrito:

“Falar da Guiné é falar da colónia portuguesa que mais caráter possui de terra africana; é falar, dentre as possessões que constituem o nosso domínio colonial, daquela que melhor situação financeira desfruta, daquela que tem mais personalidade, sem mistelas equívocas, sem arremedos bacocos.

A Guiné é, de facto, a mais rica das nossas províncias africanas, nas possibilidades de produção agrícola.

Quem for ativo e inteligente, quem entender que os seus braços devem servir para mais alguma coisa do que roçar malandramente pelo mármore rachado dos cafés, quem tiver na vida o grande sonho de vir a ser rico pelo esforço próprio, aqui encontrará o El Dourado das suas legítimas ambições.

Porque a Guiné, com a quermesse bizarra e multicolorida das suas onze raças, e diversas subraças, formando um bloco notável de aproximadamente 800 mil habitantes; com a maravilha pessoalíssima da sua fauna; com a sua ornitologia, opulenta e variada, em que as cores das aves dir-se-iam fugidas de uma paleta de pintor impressionista, pela diversidade ofuscante dos tons; com a abundância da sua herpetologia (parte da zoologia que trata dos répteis); com a variedade dos seus espécimes entomológicos; com a riqueza da sua concheologia; a Guiné com a sua flora variegada até ao impossível; com o sensível incremento que está sendo dado à sua agricultura, transformando em fontes de riqueza o que era até há bem pouco uma desoladora extensão de solo inaproveitado…”.

Chegou-se ao período da Ditadura Nacional e a documentação enviada para Lisboa refere agravamento das condições de vida na Guiné.

Antes de chegar o governador Leite de Magalhães que ficará na Guiné até 1931, vários acontecimentos ganham peso, com realce para a preponderância de Bissau sobre Bolama, há empreendimentos agrícolas que vão caindo por terra, nos Bijagós, mas também no continente. Já se referiu que aumentaram as estradas e as linhas telegráficas, mas as finanças locais mantêm-se anémicas e instáveis. No período da Ditadura Nacional assiste-se a uma redução de despesas: diminuição de efetivos militares, menos administração. É nesta altura que os agentes económicos de Bolama reagem, endereçam ao Ministro das Colónias uma farta exposição em 15 de agosto de 1927, vêm fazer uma defesa histórica de Bolama, é um documento sem precedentes, feito propositadamente para neutralizar a transferência da capital para Bissau:

“Não nos animam mesquinhos propósitos de bairrismo. Para nós esta questão não é uma questão de duas cidades disputando-se a primazia, a honra ou a vantagem de serem a cidade principal da colónia. Procuramos ver o problema através do alto interesse da colónia, pois ele não pode nem deve ser considerado apenas do ponto de vista limitado, embora respeitável e atendível, das conveniências desta ou daquela cidade, deste ou daquele centro de população.

Para isso temos de considerá-lo à face da história, da situação geográfica, económica, financeira e sanitária da província e até da política internacional. No estudo do problema da capital não se pode pôr de parte o ponto de vista histórico”.

E dão seguimento a essa lógica de uma maneira bem curiosa.

Enumeram-se elementos sobre a colonização da região, fala-se em missionários, em Cacheu, no período filipino, na fundação de Bissau, cita-se o trabalho de Travassos Valdez, a velha obra de Francisco de Azevedo Coelho, tudo para chegar à ocupação militar da ilha de Bolama em 1830, não sem o protesto veemente do governador de Serra Leoa, segue-se o conflito com a Grã-Bretanha e a sentença arbitral do presidente Ulysses Grant. E como se estivesse a dar uma lição de História ao Ministro das Colónias, diz apologeticamente:

“Não foi portanto uma necessidade de ocupação que nos levou a fixarmos a capital em Bolama. Quando se transferiu a sede do Governo para Bolama já ninguém nos podia contestar a sua posse. Antes o que se vê é que a capital em Bolama surge com a criação da Província Autónoma, é a maioridade”.

Agora os argumentos são arremessados com outro peso e textura:

“Sob o aspeto geográfico é erro dizer-se que Bolama fica distante de todos os postos da Província, por isso não está indicada para ser a sede de governo. Confrontando a sua situação com a de Bissau o que podemos dizer com verdade é que tanto esta cidade como Bolama encontram-se relativamente longe de determinadas circunscrições mas que de ambas se pode ir hoje com toda a facilidade a qualquer ponto da Guiné porque possuímos uma rede de estradas magnífica cortando-a em todos os sentidos (…) A ilha de Bissau está separada do continente por um rio, o Impernal, na região dos Balantas. A ilha de Bolama encontra-se separada do continente pelo mar. Mas é uma distância pequeníssima: de Bolama a S. João, no continente, há uma distância menor que a do Terreiro do Paço a Cacilhas. Quer dizer que quem estiver em S. João, defronte da cidade de Bolama, está em toda a parte do continente. A situação de Bolama permite comunicações rápidas com os principais pontos da colónia, tendo até o governador Caroço projetado com a construção de uma ponte no rio Corubal a mais importante rede de estradas na parte do continente que fica fronteira a Bolama. Rigorosamente estão a grande distância de Bolama as regiões de S. Domingos e Cacheu, apenas. Como, também, ficam a grande distância de Bissau as regiões de Cacine e Gabu.

Entre Bolama e Bissau, o mais importante centro comercial da colónia, pode também haver comunicações rápidas. A experiência foi feita também pelo governador Caroço, mandando abrir a estrada que de S. João conduz a Enchudé, povoação fronteira a Bissau. Entre Bolama e S. João, desta povoação a Enchudé e daqui a Bissau havia então um serviço combinado de transportes marítimos e terrestres, gastando-se na viagem duas ou três horas. Estes serviços tornavam mais rápidas e frequentes as comunicações Bolama-Bissau, sabido como é que os vapores da capitania estão sujeitos a marés.

Uma das regiões mais ricas da Guiné é Cacine, no Extremo Sul da Guiné, e Cacine, hoje infelizmente despovoada, está a seis horas de Bolama. E o rico e fértil arquipélago dos Bijagós está longe de Bissau e a dois passos de Bolama.

Sob o ponto de vista económico-financeiro, não se pode sustentar, com verdade, a vantagem da capital em Bissau. Nem a economia da colónia nem a situação do Tesouro Público, a essa economia tão estreitamente ligada, lucrariam com a transferência que se pede, antes a riqueza pública sofreria uma diminuição sensível e as despesas orçamentais em nada seriam comprimidas. Bissau é realmente o grande centro comercial da Província. Ninguém o nega e os signatários são os primeiros que desejam o progresso dessa importante e cada vez mais prometedora cidade. Mas o movimento burocrático em nada contribuiria para o seu desenvolvimento.

Que pode ganhar a economia da Província com as repartições públicas em Bissau? E não será ao menos justo, como se pretende alegar, afirmando que Bissau é que paga as despesas públicas? Não, pois a verdade é que não é Bolama ou Bissau que preenche o orçamento, mas sim toda a Província ou, para sermos inteiramente justos, o indígena, a grande, a suprema riqueza da colónia”.

E os agentes económicos que apelam ao Ministro das Colónias falam no orçamento, desmontam as despesas da Administração no intuito de concluir que “da transferência da capital resultava inevitavelmente a desvalorização da riqueza pública, desvalorização que se refletia também no orçamento da Província. É má, hoje, é difícil e quase acabrunhante a situação financeira da Guiné. Pois bem, o Estado que tem edifícios seus em Bolama no valor de sete mil contos – e alguns que honram já a cidade colonial – abandonava simplesmente esses prédios, esses valores, essa riqueza, retirava-se amuado para Bissau e a fantasia desse amuo custava-lhe dez mil contos. Quem poderá dizer que isso é sensato?

Há toda a conveniência em estabelecer as capitais das províncias ultramarinas nos pontos mais salubres, mais tranquilos até. Os funcionários, incluindo o governador, devem viver nos pontos onde a salubridade seja maior, rodeados do conforto material e moral que só a família proporciona. Colocar a capital num mau clima – e Bissau é incontestavelmente um mau clima – é fazer inversamente a seleção do funcionalismo. Para um mau clima, só podem ir os maus funcionários, os inferiores, os falhados, porque os funcionários competentes têm outras colónias que lhes abrem as portas e onde se encontram sob o ponto de vista sanitário e sob o ponto de vista social melhor instalados.

Bolama, com o seu ar de velho burgo, docemente ensombrada pelas árvores, que dir-se-ia estender-nos, ao chegarmos, os seus braços verdes e aconchegantes, com a sua fisionomia de velha cidade da província portuguesa, é inclusivamente pela atmosfera de quietude, de paz e de tranquilidade que nela se respira, a cidade mais indicada para a capital política da colónia.

As colónias para o tratado de Versalhes existem com um alto objetivo de civilização. Não para os países incapazes as conservarem abandonadas, desprezadas, desvalorizadas, em nome de um frágil direito histórico. Não se pode abandoná-las, nem abandonar ou desprezar uma colónia ou qualquer porção do seu território. Portugal sobretudo não deve perder de vista este princípio, conhecidas as cobiças que de todos os lados sofregamente espreitam o nosso império colonial.

É possível até que seja escusada e supérflua a nossa defesa de Bolama, porque o primeiro e o mais ilustre defensor da capital nesta cidade é o senhor major Leite de Magalhães, distinto governador da colónia, e não é com o seu assentimento decerto que a sede do Governo se fixa em qualquer outro ponto. Basta atentar em todos os seus atos desde que chegou a esta colónia, para se concluir que Sua Excelência só deseja o progresso de Bolama. E não é necessário referirmo-nos a muitos desses atos como a construção de um casino, que Sua Excelência patrocina e o novo Palácio do Governo que quer edificado. Logo que tomou posse do Governo, o senhor major Leite de Magalhães propôs ao Ministério das Colónias a extinção da comarca judicial em Bissau e a criação de uma comarca única em Bolama, o que só significa, por parte de Sua Excelência o desejo de alevantar e engradecer esta cidade. E embora neste ponto nos permitamos discordar de Sua Excelência, temos a concluir que a significação da sua atitude é bem eloquente.

É lícito abandonar esta velha terra portuguesa?”.

Mas a decisão de mudança só ocorreria mais tarde, a despeito de que na exposição enviada pela direção da Associação Comercial da Guiné com a Comissão Urbana de Bolama, a transferência será decidida no final dos anos de 1930 e concretizada em 1941, já começara, e de forma acentuada, a decadência de Bolama.

No seu relatório de 1927, o gerente de Bolama de novo alerta Lisboa sobre a questão da mudança da capital para Bissau, tece o seguinte comentário:

“Se com essa mudança se fizerem todas as economias em pessoal que a transferência torna possível, certamente que, apesar daqueles aumentos, apesar da paralisação do desenvolvimento agrícola, larga margem ficaria para o fomento indispensável da colónia.

Este projeto, posto em discussão pública por uma mensagem da Associação Comercial e Comissão Urbana de Bissau, já o conhecem V. Ex.as nos seus fundamentos, nos seus processos e nos seus objetivos, pois em devido tempo vos enviámos a mensagem citada.

Não pode deixar de notar-se que, se a transferência da capital se tivesse feito, acompanhada das respetivas economias, se se tivessem distribuído 500 toneladas de mancarra e se se tivesse deixado o comércio livre de mais encargos no momento decisivo da solução da sua crise, a transição do estado económico e financeiro da colónia teria sido quase resolvida. Se a situação não é isenta de cuidados, também não é isenta de esperanças. Oxalá estas se confirmem”.

Mas o comércio de Bolama definha, imensuravelmente, é um dado claro no relatório de 1929, ao falar da situação da praça:

“Carateriza-se por acentuada a falta de dinheiro no mercado, a par da manifesta frouxidão nas transações de caráter mercantil.

Os estabelecimentos comerciais estão repletos de mercadorias, mas estas não têm saída.

O indígena, a quem outrora serviam todas as bugigangas e artefactos que se lhe punham diante dos olhos, começou já a descrer da sua própria solvabilidade, capacitado que apenas lhe resta o mínimo de existência, o que aliás é rigorosamente exato.

O fenómeno que se regista em Bolama é o mesmo que se observa em todos os demais pontos da colónia.

Avizinha-se a campanha da mancarra, época de maior movimento comercial, mas não havendo até agora fundada esperança nas cotações que têm vindo do estrangeiro, o comércio está receoso de que este ano seja o de mais um desengano, no que respeita aos afamados lucros da mancarra. De facto, se este vaticínio se confirmar, mais se agravará a crise que está atravessando o comércio local”.

1931 é o ano em que a Guiné é sacudida por uma revolta republicana que deixará marcas. Os azedumes entre as agências vão crescendo de tom. Em maio desse ano, Bissau reponta com Bolama que não se devem duplicar as despesas, Bolama devia enviar tudo para Bissau, era dali que os telegramas seguiam para Lisboa. Porque Bissau ia progressivamente ganhando autonomia e desafetando-se de Bolama. Em novembro desse ano, Bissau pede a Lisboa para fazer despesas com móveis e utensílios:

“Dentro em pouco será necessário mobilar, sem luxo mas com decência, o primeiro andar do edifício da agência. A mobília existente não corresponde às necessidades, embora mandemos restaurar, como é lógico, toda a que possa ser aproveitada. Nestas condições pedimos e agradecemos a V. Exa. a fineza de autorizar a compra e remessa da seguinte mobília:

- Uma mobília de sala completa com o mínimo de doze cadeiras;

- Uma mobília de sala de jantar com doze cadeiras;

- Uma mobília de quarto;

- Dois tapetes grandes para sala;

- Um dito, para sofá;

- Seis ditos para camas.

A necessidade destes tapetes é flagrante, porque o pavimento é de mosaico. As mobílias terão de ser também grandes, dado o espaço dos aposentos a mobilar. Não podemos deixar de frisar a V. Exa. que ao pedirmos estes artigos de mobília não temos em vista rodearmo-nos de luxo – que bem dispensamos – mas tão-somente prover o edifício com aquilo que julgamos indispensável”.

A partir de agora, ambas as filiais não perdem oportunidade para dar informações de diferente índole, como idas e vindas e até psicodramas. É o que acontece em outubro de 1932 quando Bissau comunica para Lisboa que o diretor dos Serviços das Obras Públicas, engenheiro Ferreira Chaves, feriu mortalmente com um tiro de pistola, em Bolama, no dia 24 de agosto findo, o capitão reformado António Augusto Parreira, chefe da repartição de Agrimensura e Cadastro, depois do que se entregou à prisão do Sr. Dr. Juiz. Constava que o engenheiro Chaves e o capitão Parreira, ambos da Comissão Urbana de Bolama depois de uma troca de ofícios em termos ásperos tinham cortado as relações. Surgira um diploma legislativo que o capitão Parreira julgava obra do engenheiro Chaves para o ferir. Parreira foi a casa de Chaves para ter com ele um desforço:

“Diz-se que este dormia a sesta quando o capitão Parreira lhe entrou pela casa adentro numa atitude desvairada, e o agrediu.

Depois de uma breve luta entre ambos, no quarto de cama, junto ao toilete onde o engenheiro Chaves tinha a pistola, parecendo-lhe, declara o arguido, que o capitão Parreira pretendia deitar a mão à arma ou com receio desse gesto, o engenheiro Chaves teria pegado nela para a arremessar para longe e, nessa altura, segurando-lhe a mão o capitão Parreira obrigou-o a disparar sendo este atingido na cabeça, falecendo horas depois. Deste facto não há testemunhas e nós limitamo-nos a reproduzir, em síntese, o que nos têm contado. O engenheiro Chaves já foi pronunciado sem fiança e suspenso do exercício das suas funções”.

Em 1934 a perda de importância da filial de Bolama já não se pode iludir, o gerente desta escreve no seu relatório:

“Esta Filial continua com o seu movimento bastante reduzido e em regime de prejuízo anual, suportado pela agência de Bissau. É gerida diretamente pelo seu antigo guarda-livros, Sr. Fernando Coelho de Mendonça, com procuração subestabelecida pelo signatário, com poderes reduzidos, assinando conjuntamente todos os documentos, com a exceção da correspondência reservada. O movimento geral quotidiano limita-se à cobrança de letras a receber, alguns empréstimos sobre penhores, um reduzido desconto de letras descontadas sobre a praça, movimento de depósitos à ordem e cobrança de saques ordinários ou telegráficos, cuja emissão é feita pela agência de Bissau, visto o encarregado da Filial não ter poderes para sacar. Periodicamente, pelo menos uma vez por mês ou sempre que o serviço da agência o permite, deve ser a Filial visitada pelo gerente-geral, como está determinado, para conferência de valores e verificação de serviços. A Filial, por nossa determinação, remete também a esta gerência segundo as vias da correspondência reservada dirigida à sede. Esta, a nosso pedido, costuma também enviar-nos duplicados da mesma correspondência dirigida à Filial. Desta forma, fica esta gerência ao facto do principal movimento da Filial, completando a fiscalização com visitas periódicas do gerente-geral”.

 




A Filial de Bissau torna-se na Wall Street e central de eventos local


Já não restam dúvidas que a filial de Bolama era uma amostra do passado, Bissau passa a polarizar a informação até de peripécias e denúncias de comportamentos irregulares de funcionários da administração colonial. Veja-se um exemplo elucidativo.

Em abril desse ano, o gerente de Bissau responde ao governador do BNU sobre uma queixa apresentada pelo médico José Vitorino Pinto que se queixara por não lhe terem dado uma avença médica:

“Conhecemos razoavelmente o Dr. Pinto; mas, com franqueza o dizemos a V. Exa., não o julgávamos capaz de mentir tanto. O Sr. Dr. Pinto, chefe da repartição de Saúde desta colónia, médico e major, mentiu a V. Exa., julgando que, mentindo, lhe seria fácil auferir mais 800 escudos por mês. Todo o mundo sabe na colónia que o Sr. Dr. Pinto por dinheiro é capaz de ir até ao impossível. Nós, apesar de tudo, não o julgávamos capaz de torcer tanto a verdade, por 800 escudos. Calculávamos, é certo, que o Sr. Dr. Pinto se dirigisse a V. Exa., pedindo que lhe fosse dada a avença médica, invocando fundamentos extraordinários, porque sabemos que ele é capaz; que mesmo que se queixasse magoadamente de nós, embora sem dizer a razão por que não demos a avença ainda o compreendíamos; mas que mentisse com tal descaro e por 800 escudos, é que nos deixou surpreendidos, por se tratar de um indivíduo que, além de ser médico e chefe de uma repartiçãousa galões de major.

Nunca nesta agência e nas que temos gerido se guardaram lugares a médicos do quadro, avençados. Os médicos do quadro estão sujeitos a transferências por conveniência de serviço, e era desprestigiante para o médico substituinte e melindroso para o gerente dizer-lhe que quando o substituído regressasse a avença lhe seria entregue. Era de presumir que ela não fosse aceite nestas condições e o prejudicado seria o banco por ter de pagar mais caro o seu serviço clínico durante a ausência indefinida do privilegiado. Mas, mesmo que assim não fosse, o Sr. Dr. Pinto embarcou para a metrópole, pela Junta, como gravemente doente, sem o estar – todos o sabem –, com o propósito firme de não voltar à colónia, e encaixar-se no lugar de chefe de serviços de Saúde do Ministério das Colónias, ficando ali anichado à espera do tempo que lhe falta para a reforma.

Chegou a Lisboa e, para conseguir os seus fins, obteve da Junta apenas 30 dias para se tratar, apesar de ter saído da colónia em estado grave…

Fez o que lhe foi possível, mas como em Portugal o regime de compadrio vai acabando, o Sr. Dr. Pinto não conseguiu o nicho almejado e teve de embarcar, não o fazendo no primeiro vapor após a licença porque na véspera do embarque adoeceu. O Sr. Dr. Pinto quando embarcou da Guiné já sabia que a avença do banco tinha sido dada ao Sr. Dr. Pereira Brandão, que o substituiu em todos os serviços. Foi para a metrópole e nada nos disse de lá sobre o seu regresso e nem sequer avisou disso o colega que o substituiu nos serviços públicos. Desde que ele regressasse, dava-se fatalmente movimento no quadro: o Dr. Brandão iria para Bolama, como de facto foi, e em Bissau ficariam o Dr. Pinto e o Dr. Leite de Noronha, como delegado de Saúde. Este, avisado pelo chefe interino, Dr. Brandão, veio ao banco pedir a avença no caso de ser deslocado o seu colega. Como o Sr. Dr. Pinto nada nos tinha dito nem escrito, dissemos ao Sr. Dr. Noronha que lhe daríamos a avença se fosse transferido o Sr. Dr. Brandão.

Muitos dias depois do seu desembarque, o Sr. Dr. Pinto veio procurar-nos para nos cumprimentar (!) e pedir a avença do banco. Se ele sabia que era costume reservar-lhe a avença porque a veio ele pedir depois de chegar? Parece que tendo a consciência de que a avença lhe estava ou deveria estar reservada, nada mais tinha a fazer do que esperar que o chamássemos quando dos seus serviços carecêssemos.

Dissemos que por ignorarmos o seu regresso já a tínhamos dado ao Dr. Noronha, porque a tinha pedido, como era costume. Esta entrevista decorreu o mais cordialmente possível. Pela carta de V. Exa. depreendemos que os factos não foram assim relatados na queixa magoadamente formulada pelo Sr. Dr. Pinto. Mentiu, pois, convencido que V. Exa. imediatamente nos ordenava a entrega da avença, sem nos ouvir, estalando-nos a castanha na boca. Enganou-se. V. Exa. entendeu que o seu gerente – que se orgulha de ser correto, leal e verdadeiro, não deveria ser desprestigiado e mandou-o ouvir. Bem-haja por isso e pela confiança com que sempre nos tem honrado.

Dissemos que o Sr. Dr. Pinto não convinha aos interesses do banco. Não convém porque é chicaneiro, malcriado e pouco atencioso. Há tempos, o signatário passou um mês a levantar-se e a deitar-se com impertinentes cólicas hepáticas. Coincidiu ter de o mandar chamar, por duas vezes, às nove ou dez horas da noite, em noites diferentes. Ao empregado que o foi chamar, respondeu com esta grosseria: “O Sr. Machado parece que está à espera que eu me deite para me mandar chamar”. De uma das vezes em que o signatário se contorcia com dores violentíssimas na cama houve necessidade de dar uma injeção de morfina. Quis o referido médico ferver a seringa, voltando-se para a esposa do gerente disse-lhe: “Vá buscar água!”, num tom imperioso e malcriadamente. Só mais tarde teve o signatário conhecimento destas grosserias, porque se na ocasião lhe fossem contadas, o Sr. Dr. Pinto teria descido apressadamente as escadas da residência”. Já ia longa a carta para o governador em Lisboa, e o gerente lança a estocada final sobre o Dr. Pinto:

“Um facto, dentre mil conhecidos, queremos ainda relatar que o definem como médico na sua missão humanitária, a quem o Estado paga para prestar assistência aos indígenas:

Um alfaiate indígena enterrou uma agulha de croché grande, atravessando-a na unha, de lado a lado. Correu ao hospital cheio de dores para lha extraírem. O Dr. Pinto perguntou-lhe se levava dinheiro. Que não, que não tinha, que era pobre, mas que estava cheio de dores, respondeu o indígena. Então, era necessária uma guia da administração do concelho. Era domingo. A administração estava fechada. O indígena foi-se sem tratamento. Um criado do Dr. Marques Mano, chamado Bernardo, levou um tiro nas costas. Foi ao hospital para ser tratado. Pergunta fundamental do Dr. Pinto: “Trazes dinheiro, trazes?”. Também este não levava dinheiro. Uma pincelada de tintura de iodo na ferida e mandou-o embora. Mais tarde, cicatrizou a ferida mas sentia dores horríveis. Foi ao hospital à consulta, mandado pelo Dr. Marques Mano. O Dr. Pinto foi gentilíssimo com o indígena porque já havia quem pagasse”.

Chegou o momento de proceder a uma recapitulação, para benefício do leitor. O BNU abre uma delegação em Bolama, capital da colónia, em 1903. No Arquivo Histórico do BNU não existe qualquer documentação anterior a 1917, ano em que é constituída outra delegação em Bissau. Daí a ausência de documentação sobre questões fundamentais, como é o caso da entrada da colónia na I Guerra Mundial ou referências às campanhas do capitão João Teixeira Pinto. Cedo se irá verificar uma crescente rivalidade entre a delegação e a Filial, Lisboa ver-se-á obrigada a delimitar as áreas de atuação. A generalidade dos comentários críticos ou hipercríticos assinados pelos responsáveis do BNU em Bolama ou Bissau transcendem o entendimento da comunicação hierárquica que era proverbial na época, devia haver um protocolo discreto que autorizava os gerentes a contarem com toda a minúcia o que julgavam de mais relevante de todos os aspetos da vida socioeconómica e política da colónia. Daí a infinidade de verbetes a anunciar partidas e chegadas, a comunicar o exílio de Abdul Indjai ou o que um gerente em Bissau chama a vida imoral do governador Carvalho Viegas. Os gerentes não se podiam imiscuir na política e a prova disso é uma carta enviada em 31 de março de 1931 por Vieira Machado para o gerente de Bissau:

“A propósito do incidente ultimamente ocorrido entre vossas senhorias e o senhor intendente dessa cidade, de novo recomendamos que ponham de parte todas as suas inimizades pessoais, sempre que se trate de assuntos que se prendam com o banco, que não queremos ver envolvido, de longe ou de perto, em semelhantes assuntos.

Também mais uma vez – que esperamos que seja a última – proibimos vossas senhorias de se imiscuírem na política local, a que devem ser de todo alheios, evitando, assim, escusadas desinteligências ou conflitos com quem quer que seja.

Procurar viver no melhor entendimento com todos, deve ser a constante preocupação de vossas senhorias, deste modo se poupando e poupando o banco a quaisquer dissabores”.

Por esta época vai ganhar destaque a documentação expendida a partir de Bissau pelo gerente Virgolino Pimenta, era como se de Bissau se visse à lupa tudo o que podia ser entendido como mais destacável, para o bom e para o mau. Em 1938 este gerente envia com o caráter de absolutamente confidencial um documento explosivo ao presidente do Conselho de Administração do BNU, nada de mais demolidor se podia escrever sobre o governador Luiz de Carvalho Viegas:

“A imoralidade do seu viver particular é, positivamente, afrontosa para a vida moral da colónia, pelo reflexo que tem na sua vida pública que é também imoralíssima porque nela campeia a mentira e o embuste político, próprio de indivíduo que serve por mero interesse uma situação política mas espera ficar bem com outra que supõe poderá vir, pelo pior que seja, contanto que ele a sirva e se sirva a si próprio”. E mais adiante diz que o governador está rodeado da pior escumalha que há na colónia e que dela se serve para todos os fins. “E ela serve-se dele para conseguir os seus fins também. Assim é o que vai por esta pobre Guiné e se conhece bem, mas contra o que não pode haver reação porque o honrado que a denunciar é esmagado pela matilha insaciável”.

Vejamos os aspetos morais denunciados por Virgolino Pimenta.

Logo o chefe de gabinete, Neves Ferreira, cujo estado normal é de permanente embriaguez. “Vivendo publicamente com uma meretriz, em casa do Estado, fazia falcatruas por onde podia. Dois dias depois de eu assumir a gerência desta agência queria um crédito de dez contos alegando que pagaria com dinheiro que o Estado lhe devia, o que era falso. É claro que não foi atendido”.

Agora, o mais inconcebível atentado à moral. “No Hospital de Bolama, entra a amante do senhor governador para o Dr. Eurico d’Almeida lhe fazer um aborto, conforme ordem superior que recebeu. Sai-se mal. A mulher fica em perigo. Chama-se o médico Pimentel que, com desassombro e para não ficar amarrado ao que de mal se passar, grita alto e bom som que vai ali porque uma vida está em perigo e não porque tenha nada a ver com o aborto. Até à data não deixou de ser perseguido pelo governador Viegas. Mais tarde, uma desavença entre o médico abortador e o padre de Bolama, um pobre homem de fraquíssima figura; aquele queixa-se ao senhor governador que este lhe atira à cara o aborto. O senhor governador mandou o médico esbofetear o padre e este cumpriu. O padre pediu justiça mas não a houve de parte nenhuma”.

Para o gerente, o governador é um dos homens mais vingativos do mundo, além de lúbrico. O próximo atentado à moral vem do Gabu e diz o gerente sobre a região dos Fulas: “raça esta que tem, segundo os entendidos, as mulheres mais esbeltas da Guiné. Passava muito por lá o senhor governador Viegas e o administrador parece que não era esquivo a forçar indígenas a prestar vassalagem total ao seu senhor. Apareceu uma Fula, tipo estátua, e Sua Excelência mandou-a seguir para o Palácio do Governo. Pouco depois, a Fula retirava-se fazendo agravos sérios ao senhor governador e transmitindo-os ao administrador que fez deles eco. Resultado, o administrativo foi perseguido como se fosse cão danado, esteve meses e meses sem pão para a família e continua perseguido”.

A próxima história passa-se em Bolama em que há um administrador crónico que é sabedor e esperto. Obriga os indígenas da região a darem-lhe dinheiro. “É público que no tempo da campanha de arroz persegue os indígenas obrigando-os a irem vender o produto a comerciantes de quem recebe dinheiro. Ao homem que vendia pólvora aos Canhambaques e que hoje é o herói “da pacificação” que nunca existiu senão em informações ao senhor Ministro – falsas como judas – exigiu o administrador de Bolama, só de uma vez, 13 a 14 contos para tapar um furto que tinha no cofre a seu cargo. Depois, não lhe pagou e exigiu-lhe mais dinheiro, que ele foi obrigado a passar, declarando que não lhe deve nada”.

Vem agora à baila uma figura bastante conhecida na época, Landerset Simões: “Para os Bijagós é enviado o chefe de posto Landerset Simões, com ordem de mandar relatos em cima de relatos garantindo a pacificação dos Canhambaques. O homem chega lá e quase não os vê. Não tem sequer quem lhe vá buscar uma bilha de água. Não encontra respeito nem subordinação da parte dos indígenas. Castiga severamente um, mais insubmisso e atrevido. Escreve claro, a dizer que, na verdade, era mentira os Canhambaques estarem submissos. Processo feito, com andamento rápido. Conselho disciplinar formado por gentes submissas a ordens que, antes do julgamento, marcavam sentença. Reúne tal tribunal e porque um membro se insurge a sentença não podia ser a que se ordenara. Lavra-se a sentença esperada pelo ajudante do senhor governador que a leva urgentemente a Bolama e volta com ordens terminantes para que os doutos juízes lavrem imediatamente outra sentença à vontade do governador. Assim se fez”.

O rol de imoralidades continua: “Nomeia-se chefe de posto interino um imoral de nome Ruy Moutinho Teixeira que não merecera confiança numa interinidade que fizera na alfândega. Chegado ao posto, veste-se de farda e sapato de polimento e vai participar aos sobas o seu casamento, exigindo 500 escudos a cada um, sob ameaças. Pouco depois, alia-se a um cadastrado mulato – Mário Lopes – e fazem contrabando de pólvora, do chão francês para o nosso, obrigando os indígenas a carregá-la e a distribuí-la. Um alfandegário descobre o crime – bem grave – e denuncia-o. Querem calar a denúncia mas o funcionário não retira a queixa. O criminoso é julgado por um tribunal especial – especialíssimo, cujo presidente me disse horas antes da sessão principiar: ‘Venho salvar este coitadinho, por ordem do senhor governador’. Devido a uma atitude de um dos componentes do tribunal, o homem não pode ser absolvido e foi condenado numa pena leve e ficou… preso a fingir até à extinção da pena. O registo criminal não acusa este crime porque o senhor governador intimou o tribunal a não fazer o respetivo boletim para o criminoso sair logo da colónia com um boletim limpo”.

Em tudo quanto à corrupção, Carvalho Viegas está presente, é o que diz o gerente do BNU. E vem mais uma história:

“O senhor governador é íntimo de um inspetor administrativo que veio fiscalizar os serviços da Guiné. Chama-se capitão Salvação Barreto e eu conheço-o do tempo em que, sendo ele administrador do concelho de S. Tomé, se locupletou antecipadamente com as percentagens do imposto indígena e queria depois que eu, como gerente do banco, lhe emprestasse esse dinheiro sem garantia e sem ninguém saber (sic), por uns dias (?) a fim de se safar às malhas de um processo-crime. Este homem é uma nulidade insanável. A sua incapacidade é notória. A sua moralidade é duvidosa. Como inspetor, alojou-se na casa particular dos que vinha inspecionar, bebendo e comendo à custa deles, para que a eles lhes  ensinasse a fazer o serviço de inspeção. É espantoso mas é assim mesmo. Caiu num ridículo tremendo. Íntimo do senhor governador Viegas, era-lhe tão leal que me chegou a vir avisar de propósito que aquele me andava a abrir o meu correio particular desde que eu tinha chegado à colónia, porque se supunha que eu fosse um espião do Sr. Dr. Francisco Machado”.

Seguem-se mais denúncias que envolvem o secretário da Administração de Bolama que se apropria de dinheiro à farta, ninguém se queixa, têm medo das perseguições. No dizer do gerente de Bissau, até o capitão Velez Caroço, familiar do antigo governador, secretário dos Negócios Indígenas, vende munições e carabinas, tal como aconteceu na revolta dos Felupes. A podridão chega às obras públicas, oiçamos Virgolino Pimenta:

“Nas obras públicas é engenheiro diretor interino um celebérrimo Alambre. Rouba-se por todos os lados. O secretário Leite de Magalhães denuncia o roubo, o ladrão é preso. Era dos mais íntimos do senhor governador Viegas. Procede-se com todo o vigor, para dar brado. Passa o tempo, o ladrão é solto, o processo não anda. O gatuno volta à intimidade do senhor governador Viegas. Pronunciado ainda, entregam-se-lhe as obras do Estado. As roubalheiras crescem então às culminâncias. O ladrão ganha (?) centenas de contos fazendo as maiores porcarias que pode. Na abundância de dinheiro, nasce a abundância de cerveja e uísque – é tudo para o pessoal das obras públicas. Ao denunciante Magalhães, o ladrão empresta alguns contos. Tudo se sabe mas nada se coíbe”.

É um rol extensíssimo, vamos continuar. Quem estuda Carvalho Viegas e todos os trabalhos que nos legou fica convencido que houve por ali um governador íntegro. Virgolino Pimenta tinha o cargo em jogo, caso se lhe soltasse injúria ou calúnia. É por isso que se deve atribuir muita atenção a este documento carregado de vitríolo e trotil.

Continua-se a dar espaço ao documento intitulado “Absolutamente Confidencial” que o gerente do BNU em Bissau enviou em 10 de outubro de 1938 para o presidente do Conselho Administrativo, em Lisboa. Nada, absolutamente nada, de toda a documentação consultada no Arquivo Histórico do BNU, tem carga tão virulenta como este documento, não sei se existe um libelo acusatório tão devastador sobre a governação de Carvalho Viegas como este. O gerente não podia mentir nem manifestar ressentimentos, seria o seu funeral profissional. E da leitura do vasto documento também se pode inferir que ele sabia da poda, dos nomes implicados, políticas, organização de serviços, como se vai ver adiante.

“Bissau progride. O senhor governador Viegas faz tudo o que pode, à socapa, para demorar a capital em Bolama visto Bissau ter altivez para não lhe prestar vassalagem às suas indignidades e porque a amante – telegrafista do Estado – quer estar em Bolama. Para despistar, mandam-se algumas repartições de Bolama para Bissau, mas sem se curar de haver ou não haver alojamento para o pessoal. Há chefes de serviços que vivem em casas-pocilgas. O senhor governador vai a Lisboa, e manda que a amante o aguarde ao serviço em Bissau. Gastam-se seis contos numa moradia dentro da própria repartição dos correios e lá se instala a ‘dama’ que entra a impor a sua qualidade de ‘governadora’.

Bissau tem altivez e não aceita tais afrontas. A dama sente-se mal só com a subordinação total dos funcionários pequenos e de um ou dois chefes de serviço. Quer a subordinação geral. Não a tem e o senhor governador Viegas manda que seja transferida de novo para Bolama. Mas manda em cartas para diversos íntimos, pois o Encarregado de Governo é tão alta pessoa moral que ele nem se atreve a tocar-lhe em tal miséria. Manda então a amante pedir-me que seja eu porta-voz dos seus desejos junto do Encarregado de Governo. Finjo que não ouvi nada. Tudo é público, tudo é vergonhoso. Sob o aspeto moral, haveria mais. Nunca se acabaria. Mas o que está escrito chega”.

Virgolino Pimenta é um perfeito conhecedor das alterações socioeconómicas que se estão a operar no continente, vê-se que sabe do que fala a propósito de obras públicas, evolução agrícola e tem noções firmes sobre os transportes dentro da Guiné, como escreve:

“O volume enorme dos transportes, na Guiné, é feito pelos rios e canais que a retalham. No entanto, o tráfego pelas estradas é importantíssimo, do Interior para o porto de Bissau, a cidade mais comercial e, na verdade, a verdadeira capital da colónia. Centenas de automóveis e camiões afluem à passagem forçada, por ser a única, no canal do Impernal, que liga o continente à ilha de Bissau.

Para tal passagem há apenas uma pré-histórica jangada que em dias de festa pode transportar dois automóveis – não sem perigo – ou uma camioneta pouco carregada.

Centenas de metros abaixo desta passagem há um princípio de construção de uma ponte metálica onde se gastaram milhares de contos que hoje estão perdidos por se ter abandonado a obra.

Mais centenas de metros acima, há um estreitamento de um canal cuja margem do lado de Bissau forma um banco de lodo com sete ou oito metros de fundo e cuja margem do lado do continente tem pouca lama e terra firme. Já está autorizada a verba para a construção da ponte, utilíssima para a vida económica da colónia. Somente as obras públicas da colónia são absolutamente incompetentes para fazer a ponte. E o tempo passa, as formalidades legais farão sumir a verba e a ponte ficará para as calendas gregas. E a economia da colónia continuará sofrendo.

Como despesa inútil que afoga, sem recuperação, umas centenas de contos, as célebres oficinas navais de Bolama ferem duramente a moralidade económica da colónia. Não fazem quase nada de bom. Estragam materiais em reparações que nada duram, se é que não destroem mais o que é reparado. É exemplo frisante o vergonhosos estado em que se encontram os vaporinhos do governo que já levam seis e sete horas a ir de Bolama a Bissau com perigo iminente para a vida de quem neles anda. E tudo isto porquê, porque o senhor governador Viegas se serve das oficinas navais para fazer guerra à indústria particular da Sociedade Industrial Ultramarina, sem se importar com honestidade na governação nem na economia da colónia.

E os observatórios oceanográficos e meteorológicos? Onde estão? O que fazem? Nada, mesmo nada. Apenas se sabe que há observadores a ganhar e despesas a correr. Mas se dos elementos desses serviços se quer saber a que horas é a maré alta ou baixa ou de que banda está o vento tem que se perguntar a um Manjaco o que há de marés e tem que se deitar um papel ao ar, para ver que rumo leva. E sobre o rebocador novo, que custou uns milhares de contos? Ainda está a fazer. Quando cá chegar, pouco ou nada se fará com ele mas há anos e anos que da economia da colónia saem contos para pagar ao seu comandante que leva os dias e os anos encostado às janelas da capitania, sem ter nada, mesmo nada, que fazer.

E uma oficina dos serviços de transportes terrestres que custa à economia da colónia 292 contos? O que ali se estafa em material! Carro que lá entra, ou fica pior ou morre de vez. Existem também para servirem de arma, na mão do senhor governador Viegas, contra a indústria particular. Mas, mais alto, bem mais alto do que tudo isto, estão as “granjas do Estado”.

Aproximamo-nos da II Guerra Mundial. No limiar da guerra, o Governo de Lisboa determinou que a Guiné tivesse três companhias de caçadores, uma companhia de engenhos (pequenos veículos motorizados a lagartas, para todo-o-terreno, abertos e geralmente armados de metralhadora) e uma bateria de artilharia. Nessa época aparece o transporte aéreo, chegaram os hidroaviões da Pan-American Airways, usavam Bolama para chegar e partir.

Um dos aspetos mais relevantes de todo este acervo documental é o peso que os gerentes dão a acontecimentos que escapavam ao tratamento oficial, são inexistentes nos jornais ou outras publicações. Veja-se este caso curioso:

“Por se tratar de factos passados, em parte, com gentio da nossa propriedade de Bandim, damos conhecimento do que se segue.

Há uns 10 dias, por uma circunstância do acaso, soube-se que tinha sido assassinado perto de Bissau um indígena que andava a vender panos pelo mato. Das averiguações, resultou conhecer-se que um outro indígena, ex-soldado do Corpo de Polícia desta cidade, era o assassino mas, ao mesmo tempo, veio a saber-se que além desta morte, já tinha praticado, pelo menos, umas oito mais.

Preso, declarou então que procedia aos assassinatos por razões de ordem ritual, a instigação do balobeiro, ou seja o feiticeiro, do régulo da nossa propriedade de Bandim.

Declarou que ele tinha que matar um cento de pessoas, pouco mais ou menos, de todas as raças, incluindo quatro europeus. Com o sangue das vítimas, faziam então os régulos e os seus súbditos, por intermédio do balobeiro, oferendas ao Irã, seu Deus, para que este acabasse com o poder dos brancos na ilha de Bissau e tornasse a dar o poderio antigo dos Papéis da referida ilha.

Implicados em tudo, segundo o senhor administrador de Bissau nos informa, estavam o régulo de Bandim e outro do Biombo e um chefe de Safim. Os dois primeiros foram presos e levados para o posto de Safim. O de Safim cortou a garganta para não falar. Está à morte. O de Bandim, no dia imediato à prisão, morreu. As autoridades dizem que teve uma congestão. O filho e outros indígenas contam que foi manducado (morto à paulada) pelos Mandingas do nosso ex-servente Borah, tenente de segunda linha e auxiliar do senhor administrador na perseguição e prisão dos culpados ou suspeitos. Vamos pela segunda versão”.

De acordo com este documento, havia um conflito latente entre Papéis e Mandingas. Mas outras surpresas estavam para vir, apareceram à porta do banco muitos indígenas de Bandim a solicitar, visto ser o banco o proprietário das terras onde moram, que se pedisse ao senhor administrador a entrega do corpo do régulo para se fazer o ‘choro’. O gerente de Bissau ficou intrigado por alguns desses Papéis estarem vestidos de camisas castanhas. Segue-se um episódio de uma quase ópera bufa. Apareceu o administrador que trazia um pedido do governador, ao ver aquela gente de camisas castanhas pensou que se tratavam de uma fação política, excitou-se e quis prender todos, os Papéis fugiram. Ficou um preso que esclareceu, estupefacto, que não havia nenhuma intenção de provocar motim pelo facto de usarem camisas castanhas. Não deixa de surpreender as apreensões do senhor administrador, sugerindo qualquer associação entre as camisas castanhas dos Papéis e porventura a tropa de choque dos camisas castanhas nazis…

 

 


Bissau e a II Guerra Mundial

 

Entre 1940 e 1941 cruzam-se ainda relatórios de Bolama e Bissau, a agência e a Filial, mesmo dispondo de um encarregado geral, pretendiam mostrar serviço a Lisboa. Veja-se um curioso texto, alusivo à situação do mercado, saído de Bolama, é a primeira parte do relatório de 1940:

“Arroz – Abriu a campanha do mês de janeiro último. As chuvas faltaram em algumas regiões de Tombali. Em Cubumba e Cabelol e para os lados de Caboxanque os arrozais foram plantados já tarde.

Na altura das colheitas, começou a aventar-se que era escassa a produção desse ano, o que logo ao nosso regresso à colónia fomos verificar pessoalmente, correndo algumas tabancas cuja produção conhecíamos dos outros anos. Realmente os celeiros não tinham muito arroz mas quem quisesse ver encontraria as medas nas bolanhas, à espera de condução e debulha.

O indígena produtor de arroz, vendo o preço exagerado da mancarra, estava a jogar, à espera que lhe fizessem preço relativo, sob o ponto de vista de acréscimo, ao seu produto. O pequeno comerciante, o que compra diretamente ao indígena, queria convencer também o industrial que havia muita falta de arroz, para este lho pagar melhor, caso lhe quisesse comprar.

As autoridades caladas, mas agradando-lhe este estado de coisas de onde poderia resultar mais dinheiro na mão do indígena e este a poder  pagar mais e melhor os seus impostos. O Governo da colónia, confidencialmente nos foi dito, pediu ao Ministério das Colónias notícias sobre futuros preços de arroz na metrópole. Se fossem mais altos, obrigavam-se aqui os compradores a pagar mais caro.

Sobre exportação, nada se sabe. O Senegal deve precisar de arroz porque lhe há de faltar navegação que transporte o arroz da Indochina e que costuma ficar, em Dacar, mais barato que o arroz da Guiné!!! A Gâmbia precisa de 6 a 7 mil toneladas de arroz e já o pede mas quer barato porque o indígena não tem dinheiro para pagar mais que no ano passado pagou o arroz das colónias francesas e algum das inglesas que para lá ia”.

Não deixa de ser elucidativo o relatório de Bolama referente a 1941. Descreve o pessoal da Filial; fala da natureza e valor das importações e exportações, logo adiantando que “Tendo sido transferida para Bissau a Repartição de Estatística foi-nos impossível colher os elementos necessários ao desenvolvimento do movimento geral de importação e exportação que transitou pelas alfândegas da Guiné; quanto a transportes, relativamente à via marítima, havia dois vapores do Estado, já velhos, para passageiros e carga, lanchas à vela e motor das casas exportadoras e a ligação de Bolama para Bissau e algumas circunscrições é feita por pequenos vapores, o ‘Geba’ e o ‘Bolama’”. Falando da via aérea, crê-se ser do maior interesse reproduzir a informação do gerente da Filial:

“Um pequeno avião que liga a colónia em serviço de governador, servindo oficiais e alguns particulares, quando urgente e de extrema necessidade. A Pan-Am liga esta colónia com a metrópole pelo porto de Lisboa e com as Américas do Sul e o Norte, pelo porto de Natal e Belém, no Brasil. Dá-nos esta empresa oportunidade para dizer a V. Exas., depois de ouvir pessoas que de perto acompanham o seu movimento, o seguinte.

A esta importante sociedade norte-americana de navegação aérea concedeu já o Governo português grandes facilidades para a utilização do aeroporto de Bolama. A importância destas facilidades torna-se cada vez mais evidente pela posição de Bolama em relação ao continente americano e as distâncias que a separam dos aeroportos de Natal e Belém e ainda com escala para futuras ligações dentro do continente africano. A mesma sociedade criou este ano mais algumas bases de escala neste continente, entre elas uma no Lago Fischerman, na Libéria, e outra no Congo Belga, prevendo-se para um futuro próximo grandes carreiras aéreas transoceânicas.

Na impossibilidade de conseguir que os capitais portugueses se arrisquem a empresas desta natureza, é de louvar a atitude do Governo português, facilitando à Pan-Am o estabelecimento destas carreiras.

Todas as facilidades concedidas são poucas se considerarmos não só o desenvolvimento que pode advir para Bolama, mas também que na Libéria, República criada pela América do Norte, situado um pouco ao Sul da Guiné, tendo eles todas as facilidades,  só este aeroporto pode ser preferido pelas condições naturais e pelo seu apetrechamento.

Não devemos esquecer também que a ocasião é a mais própria para eles se estabelecerem em Bolama, devido ao estado de guerra em que a maior parte das nações estão envolvidas.

Um pouco mais ao Norte da Guiné está o importante porto de Dacar, que já tirou a navegação marítima a S. Vicente do Cabo Verde e não se poupariam os franceses a esforços para tirarem a navegação aérea de Bolama, se não houvesse a guerra.

Portanto, repetimos, todas as facilidades são poucas, dada a importância destas carreiras e dos benefícios que delas pode vir a ter a Guiné”. E continua a exaltar Bolama e o transporte aéreo:

“Antes de terminar a guerra é que se deve intensificar o apetrechamento do aeroporto de Bolama, onde já o Governo gastou milhares de contos apesar de pouco se ver feito.

A maior parte dos maquinismos e aparelhos para serviço do aeroporto encontram-se ainda encaixotados e armazenados, por montar, nos armazéns da alfândega, embora já despachados há mais de um ano.

Concluídas as obras que faltam no aeroporto de Bolama, é de esperar que os americanos, para não terem de gastar mais dinheiro na Libéria, escolham Bolama, não só para escala, como para entroncamento das carreiras transoceânicas”.

Mas a sorte da delegação de Bolama estava decidida, doravante é a delegação de Bissau do BNU que vai estar no comando das informações para Lisboa. Haverá eventos que obrigam o gerente de Bissau a ir a Bolama, é o caso da passagem por Bolama de D. Duarte Nuno de Bragança, ia a caminho do Brasil, para se consorciar com uma princesa brasileira, foi acolhido nas instalações do BNU. O Ministério das Colónias não podia envolver-se diretamente. Deram-se ordens confidenciais para que o gerente da agência de Bissau e a sua mulher fossem receber D. Duarte Nuno na casa do BNU em Bolama. Chegado ao Rio de Janeiro, D. Duarte Nuno agradeceu a hospitalidade recebida.

São merecedores da melhor atenção os relatórios elaborados em plena II Guerra Mundial, todos juntos dão-nos um quadro da vida económica, social e financeira da colónia. Logo o relatório da agência de Bissau de 1942, no seu primeiro semestre. Começa por dizer que a situação da praça é pouco mais ou menos a que já se registava no fim do último semestre de 1941. Há especulação: “O comércio nacional tem mostrado uma atividade interessante, animado, talvez, pelos preços exorbitantes que está conseguindo mercê de uma ação fiscalizadora de fraca intensidade, por parte do competente organismo regulador de preços. Daqui resulta o registo de um aumento de custo de vida pouco compatível com os vencimentos do funcionalismo e da classe comercial”. Aborda o comércio sírio: “Pela natureza especial dos seus componentes e até pela sua localização por essa colónia toda, são os comerciantes sírios quem estão em condições de melhor trabalhar às claras ou em regime de contrabando com as vizinhas colónias francesas”. Estas vendas de mercadorias feitas pelos comerciantes portugueses e sírios saldam-se em bom dinheiro, o relatório refere quase 9 mil contos em entradas de ouro. E deixa uma observação: “Atingiria este comércio proporções dignas de registo não fora o entrave feroz que lhe opõe o consulado inglês. O comerciante português ou sírio que viva apenas da compra dentro da colónia e não importe diretamente, não era até há pouco grandemente afetado pelas ações dos ingleses. Porém, a rede de espionagem destes é grande em toda a colónia e vai apanhando todos os que vendem para o chão francês e apanhados ficam pouco menos que liquidados pois que é imposta ao comerciante grande fornecedor daquele, que não lhe forneça mais e este, seja português ou sírio, tem que se subordinar prontamente. Não se subordinando, nem obtém licenças de importação nem de exportação e vê os seus negócios locais paralisarem também, visto que os outros comerciantes querem fugir à mesma direção do consulado britânico contra si. E se algum dos renitentes precisa de embarcar para fora da colónia, mesmo que seja português e mesmo que tenha todas as licenças do nosso governo para embarque, este é terminantemente proibido pelo consulado britânico”.

O relatório aponta agora, e uma vez mais, para os problemas da agricultura, o gerente não escusa as suas considerações pessoais:

“Como sempre, a colónia vive da sua agricultura. Mas vive da colheita do que o indígena semeia e não da cultura que resulta de trabalho de europeus, nem da orientação que estes deem àquele. Assim, o indígena vai suprindo com o viático que lhe fornece a experiência e a rotina aquilo que o europeu não lhe fornece em ciência, e este vai-se limitando à função única de comprador do que aquele lhe vende. Cultura organizada é coisa que não existe na colónia. Em nosso modesto entender, esta falta pode resultar, talvez e pelo menos pelos seguintes fatores:

– Nada há estudado sobre climas e sobre terra para melhor se ver o que mais convém aos produtos e aos sistemas de produção e mesmo quanto à defesa das culturas contra os seus principais inimigos. Se há, não conhecemos, nem vemos que se pratica;

– Não há mão-de-obra fácil, na educação do preto, por meio de uma sábia política indígena, para este a fornecer no sentido de uma maior valorização económica da colónia que automaticamente lhe traria a ele próprio um enriquecimento de que poderia resultar até, como consequência imediata, a elevação do seu nível de vida;

– Não aparece capital a fomentar qualquer empreendimento que surja, já pelas duas razões atrás indicadas, já pelos insucessos de experiências anteriores em que o arrojo sobrelevou as outras caraterísticas desses insucessos.

Remediando-se este males, e não vemos que seja impossível dar-lhe remédio, tanto mais que, o maior deles, em nosso modesto entender, é o disciplinar o indígena quanto a sistema de trabalho orientado por europeus, e o indígena é o fator supremo, poderia a Guiné vir a ser uma das mais ricas colónias de Portugal.

Fala-se em civilizar o indígena e está bem. Mas civilizá-lo fora do seu conceito de civilização sem lhe dar a necessária riqueza e esta só ele a poder tirar do seu trabalho, não será apenas uma ideia vaga, imprecisa de que não resultarão finalidades práticas?

Não carecemos exemplos de ninguém. Não nos precisa interessar o sistema inglês de passagem da função colonizadora à função administrativa dos povos que submeteu.

Menos nos pode interessar o sistema alemão que faz arrancar em poucos anos 5 mil toneladas de cacau aos Camarões ou 20 mil toneladas de fibras ao Este Africano (é provável que o relator estivesse a pensar no império alemão da África Oriental constituído pelo Tanganica, Ruanda e Burundi, que se extinguiu com o Tratado de Versalhes).

Temos os nossos próprios métodos que servem de sobejo para o caso em questão e temos aqui ao lado uma colónia onde se morre de fome de vez em quando e cujo excesso populacional talvez visse até com agrado a sua transferência para aqui, onde a terra lhe daria tudo e onde eles criariam riqueza que não existe agora (…) Temos tido sempre em mira o fito de criar riquezas melhorando a condição de tantos milhares de homens que nos estão sujeitos, livrando-os daquela inferioridade económica que fatalmente arrasta a inferioridade moral.

Com esta autoridade, que é preciso reforçar na Guiné, trabalhando mais e melhor, temos fé em merecer o respeito alheio, no apuro final a que vai dar lugar o fim da guerra quando chegar”.

E postas estas cogitações sobre o modelo de colonização que se deve instituir na Guiné, o relator passa aos aspetos práticos:

“A cultura do arroz, intensificada, é certo de alguns anos a esta parte, mostrou-se este ano insuficiente e Bissau tem assistido ao espetáculo degradante de ver massas de indígenas, até debaixo de chuvas torrenciais, dias e dias à espera de comprarem um quilo de arroz, base essencial da sua alimentação. E, a maior parte, não o obtém.

Registou-se fome. Teve de se recorrer a Angola para mandar milho que cobrisse um pouco esta miséria.

Dois factos positivamente anormais e filhos de uma desorganização de coisas que se repetirá todos os anos se não se lhe acudir.

A falta de arroz atribui-se à falta de chuvas. Mas atribui-se sem elementos sérios.

Diz-se que foi falta de chuvas e tudo fica bem.

Mas, porque não se diz que não se semeou mais para mais se colher?

Mas, porque não se diz que há terrenos e terrenos bons para a cultura do arroz e não são encaminhadas para eles as populações indígenas que os podem cultivar?

Vir milho de Angola para a Guiné!!!

Outra irrisão. A Guiné pode dar todo o milho que se queira. Quando se reconheceu que viria a haver fome por falta de arroz, era altura boa de se fazer semear milho.

Porque assim não se fez?

Porque não se cultiva a mandioca em larga escala se ela fornece uma excelente alimentação ao indígena e pode ser, devidamente seca, um produto importante de exportação?

Tudo interrogações sem fácil resposta e que deixam de estar em equação no dia em que, na colónia, apareçam homens cujo valor real, zelo, senso e boa vontade ofereçam as suas aptidões para a realização que urge fazer da valorização económica da colónia.

Existem serviços agrícolas, dir-se-á.

Existem mas é preciso reorganizá-los para lhes dar eficiência precisa para valorizarem a colónia”.

No relatório completo de 1942 retomam-se matérias do primeiro semestre e adiantam-se novas informações.

Não se esquecem os entraves postos pelas autoridades consulares inglesas e dá-se um esclarecimento: “Todos os que trabalham com o Senegal estão na lista negra inglesa porque os agentes consulares britânicos enquanto não entraram as tropas americanas no continente africano tinham a convicção – não sabemos se com fundamento ou sem ele – de que alguma parte dos nossos tecidos ia beneficiar as tropas germano-italianas. Mas se não era assim, iam com certeza beneficiar as colónias francesas, ao tempo em regime de franca hostilidade aos ingleses e esta agravada depois do ataque a Dacar.

Apesar de tudo isto, o negócio não parou.

Direta ou indiretamente, o ex-guarda livros da Sociedade Comercial Ultramarina, Henrique de Oliveira, a quem a inclusão na lista negra não produziu abalo nenhum, passou a ser como que o agente direto dos negócios para o território francês, ganhando, ao que se diz, uns 3 a 4 mil contos, em comissões, transportes, etc.

Presentemente, o governo francês deve ao comércio local cerca de 18 mil contos e procura fazer o pagamento em francos, por nosso intermédio, o que não temos aceitado por ser inconveniente aos nossos interesses, aos interesses dos comerciantes e aos da própria colónia”.

Relata que está a entrar muito ouro em barra, argolas e mesmo em pó. “Particularmente, sabemos que algum desse ouro em pó já foi vendido em Lisboa a cerca de 30 escudos por grama de ouro bruto. Se o ouro que temos comprado por peso de ouro fino, a preço até mais baixo que a cotação que a sede nos dá, pudesse ser vendido àquele preço e por peso bruto, importantíssimo seria o lucro que esta Filial teria obtido a favor dos interesses gerais do banco”.

A África Ocidental francesa ganha acuidade durante a II Guerra Mundial. Veja-se este apontamento constante do relatório da agência de Bissau referente ao primeiro semestre de 1943:

“A vizinha colónia do Senegal, por motivos de guerra, viu-se quase esquecida da sua metrópole e sem possibilidades de se abastecer daquilo que mais necessitava.

Durante largo período, foi-se bastando com os stocks que tinham quanto à fazenda e recebendo auxílio de Marrocos, quanto a subsistências.

As necessidades próprias da guerra esgotaram depressa as existências e o Senegal recorreu à nossa Guiné. Principiaram as exportações daqui para lá com fornecimentos de batatas; cebolas, algumas latarias; massa tomate, de que o Senegal faz colossal consumo; queijos; manteiga e vinhos do Porto.

A falta de alguns destes géneros, na nossa própria colónia, paralisou tais exportações.

Veio então a procura de tecidos em relativa quantidade para consumo indígena, mas em quantidades enormes de zuartes e caquis destinados às tropas em luta.

Fizeram-se grandes negócios e lucros e os comerciantes da Guiné, certos da continuação do negócio, importaram maiores quantidades daqueles tecidos.

Dá-se o desembarque anglo-americano e a posição do Senegal mudou.

Enquanto as autoridades que aqui estavam viam com bons olhos os fornecedores da nossa Guiné, as autoridades que vieram consideram as anteriores como negociadas com o inimigo. E não só suspenderam as compras, como os ingleses e os americanos passaram a trazer os seus tecidos para venda e fornecimento às tropas, como também não pagaram os fornecimentos que já tinham recebido dos comerciantes da Guiné. Dois males para estes ou, antes, para os fornecedores da metrópole.

Nem se venderiam facilmente os stocks existentes na colónia, quantidades invendáveis relativamente ao consumo próprio nem se saberia quando seriam pagos os fornecimentos feitos anteriormente.

Daí resultou uma parte grande do comércio da colónia não poder honrar os seus compromissos, deixando protestar grande quantidade de letras. Na altura em que se ultima este trabalho, há esperanças de que o atual Governo do Senegal se resolva a pagar o que deve.

Já o Governo da colónia começou a ter interferência, o Governo do Senegal tem aqui um depósito de 6 mil contos para fazer face a tais pagamentos que, pelas informações que dispomos, andarão pelos 12 mil contos.

Resolvido este caso, será paga uma grande parte das dívidas em atraso. E como já se pensa em exportar o excesso de tecidos existente na colónia, desde que tal suceda ficará o assunto resolvido.

Nesta barafunda toda, tem o banco ganho bom dinheiro, e graças à nossa prudência não há um único real que se possa considerar comprometido”.

No relatório anual desse mesmo ano de 1943 dá-se como notável o movimento de protestos, 162 letras protestadas num montante próximo dos 13 milhões de escudos, houve contudo liquidações, ajustamento de contas e o saldo do ano era de 59 letras protestadas num montante de 5 milhões. A explicação decorre um tanto do que acima se escreveu sobre as exportações para o Senegal e o comércio com o Norte de África: “A razão de ser estes protestos foi só uma, a evolução das coisas relativas à guerra, no Norte de África. Antes da evacuação total das tropas alemãs e italianas, a África Ocidental francesa não tinha facilmente outra fonte de abastecimentos senão a Guiné Portuguesa. O nosso comércio fez o que era natural, aproveitando a oportunidade para vender muito e caro. Foi o que se fez e, no final das contas, tirando aborrecimentos que já passaram, os que o fizeram muito ganharam. As autoridades consulares inglesas mostraram indecisão, no princípio, ou não compreenderam a tempo que as toneladas e mais toneladas de tecidos que vinham da metrópole para a Guiné eram para se escoar para o chão francês. Porém, quando viram começar aqui o escoamento, lembraram-se de que os caquis e zuartes que iam para Dacar seriam destinados às tropas inimigas. Foi então que recusaram certificados de navegação para a vinda de mais fazendas da metrópole para a Guiné e entraram a fazer pressão sobre os comerciantes para que não fossem mais fazendas para o Senegal. A Guiné é toda cercada por terra francesa e a guarda-fiscal não chega à fronteira. Passou o que pôde passar em contrabando, e muito passou regularmente. Foram alguns para a lista negra e tiveram dificuldades momentâneas, mas estas, por assim dizer, já lá vão. Subitamente, dá-se o desembarque americano no continente negro. Surgem novas personalidades em Dacar e nova política. Os americanos trazem consigo materiais, mercadorias e fazendas a preços melhores que os do comércio português. A razão política faz hesitar os novos mandantes de Dacar na análise dos negócios dos seus antecessores com o comércio da Guiné. Para uns, ausência total de culpas por parte dos nossos vendedores que, a título nenhum, podiam ser considerados como entendidos com os inimigos dos aliados, para lhes venderem fazendas. Para outros, culpas carregadas tinham os comerciantes de Bissau”.

A partir de agora, Bissau está no centro das informações para Lisboa, todos os pontos de situação da economia, a situação da praça, o relacionamento da colónia com as colónias francesas limítrofes são documentos que saem do punho de Virgolino Pimenta.


A era de Sarmento Rodrigues, até aos Estados independentes envolventes, o fim da colónia

 

É neste contexto que se abre uma nova época, e que se traduz com a chegada do comandante Sarmento Rodrigues que vai projetar a Guiné como uma colónia-modelo. Há um arranque de prosperidade neste pós-guerra, as críticas ao funcionamento da Casa Gouveia são contundentes, nomeadamente quanto à campanha do arroz:

“A Casa Gouveia, que podia ser uma reguladora de preços, transforma-se numa verdadeira desreguladora. Mal administrada, apesar de vir um inspetor ajudar a gerência local, na época da campanha, não faz senão desequilibrar tudo e acaba por fazer a triste figura de comprar muito menos que os outros. Os sírios, com a rede das suas 120 casas espalhadas pela colónia, absorvem a maior parte da colheita, pagando bem, o que podem fazer melhor que os outros porque têm uma organização baratíssima e por estarem cheios de mercadorias bem escolhidas que vendem em grande escala”.

Mas também o comércio da mancarra não fica isento de críticas, como o gerente escreve: “A loucura do comércio é de tal ordem que ninguém usa, nem quer usar, as tararas onde a mancarra era limpa de cascas, terras e pedras, antes de ir à balança e ser paga. Assim, conscientemente, o comerciante paga aquelas sujidades por mancarra boa, talvez porque está certo de a embarcar no mesmo estado e de lhe pagarem sem discussão. É claro, o exportador que vai buscar a mancarra ao interior já se não livra das quebras próprias do transporte, cargas e descargas, pois nestas andanças vai perdendo o peso da terra que se vai em poeira ou se deposita no fundo dos barcos ou no chão dos ‘cercos’ e dos armazéns.”

Faltam alguns relatórios da década de 1940, houve mudança na gerência de Bissau e o novo gerente quis logo dar um ar da sua competência, mostrando-se conhecedor das realidades socioeconómicas:

Ao assumirmos a gerência desta Filial, em 15 de agosto de 1949, viemos encontrar a colónia no auge da segunda crise comercial que a atingira depois da última guerra, ambas resultantes de ter cessado o avultado e rendoso comércio praticado com os territórios vizinhos.

Da primeira vez, ocorreu isso em 1944, quando, libertada a França do jugo alemão, as suas colónias da África Ocidental passaram a importar tecidos americanos e dispensaram os da indústria nacional, que o comércio da Guiné importou e lhes forneceu, em grande escala, nos três anos anteriores; da segunda vez, em meados de 1948, quando novamente cessou esse comércio, que se voltara a fazer em 1947, porque as perturbações internas daquele país e a desvalorização da sua moeda haviam dificultado a importação dos países de moeda forte, tanto de tecidos como de muitas outras mercadorias.

Na desmedida ânsia de auferir os excessivos lucros que dessa situação lhes adivinha, só curou o comércio de importar o máximo possível e o resultado foi ao falharem depois esses mercados, poucos serem os que não ficaram com colocação imediata para os stocks que constituíram.

E a isso, claro está, seguiu-se o sudário de letras protestadas e o consequente descrédito da praça.

Ao findar, porém, o ano de 1949, já a situação se havia desanuviado um pouco, porque, nesse lapso de tempo, não só se verificou o aumento dos preços como da produção dos principais produtos da colónia, o que veio elevar o poder aquisitivo do indígena e possibilitar o escoamento de uma boa parte do excedente importado, não sem que, todavia, o comércio o tivesse de fazer com prejuízo, porque, entretanto também, mexeram os preços dos tecidos e houve que sacrificar mercadorias para realizar dinheiro e satisfazer compromissos, tudo isso nos levando a querer que alguns exportadores da metrópole terão ainda por algum tempo os seus créditos em mãos do comércio da colónia, sobretudo no libanês, se todos conseguirem reaver.

No decurso do ano 1950, circunstâncias várias contribuíram para que essa melhoria se acentuasse, pois, à regular campanha de produtos que nesse ano se verificou, seguiu-se em consequência da guerra na Coreia uma razoável alta nos preços dos tecidos e a procura da borracha desta colónia, que passou a ser extraída pelo indígena em grandes quantidades e que tendo começada a ser vendida ao comércio a 8 escudos o quilo, ao findar do ano já atingia 16 escudos, o que tudo permitiu o completo escoamento desses tecidos.

E a resolução que tomou o Governo Central, já no início de 1951, de providenciar o aumento de 20 centavos na cotação da mancarra estabelecida pelos industriais da metrópole, como também que fosse elevado para 40% o contingente da exportação para o estrangeiro do coconote, onde se obtêm preços elevadíssimos em comparação com os que se cotam na metrópole, permitirá certamente que o comércio se refaça completamente dos prejuízos que sofreu.

No que respeita à posição da Filial, com a prudência de que se tem rodeado, a crise que afligiu o comércio nos últimos anos, embora não desejável, só lhe trouxe benefícios, pois a excessiva importação que a originou em muito contribuiu para os elevados resultados verificados nesse período”.

Em relatórios subsequentes dará conta das obras nos portos e nas vias de comunicação, caso da ponte-cais do Pidjiquiti, a ponte de Ensalmá, as abundantes produções de arroz, mancarra e coconote. Um dado curioso surge no relatório de 1953:

“Encontra-se em execução o recenseamento agrícola, trabalho que constituiu uma realização dos Serviços Agrícolas e Florestais, tendo sido encarregado de planificá-lo e de dirigir a sua execução o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral. Visa a obtenção de elementos essenciais, qualitativos e quantitativos, tanto a agricultura indígena como a dos não indígenas. Acha-se quase finalizado o trabalho de campo relativo ao recenseamento da agricultura indígena. É executado pelo método de amostragem, através do estudo das explorações familiares em povoações tipo. Assim, obter-se-á uma estimativa dos elementos essenciais da agricultura indígena, aliás a única informação possível nas atuais condições económicas e culturais do agricultor nativo.

O apuramento dos elementos escolhidos será levado a efeito por todo este ano. Entretanto, pode afirmar-se o seguinte:

De uma maneira geral as porções são boas, tanto no que se refere às culturas alimentares como às industriais.

No Sul da Província as produções unitárias são geralmente superiores às verificadas noutras regiões, em especial no que se refere ao arroz e à mancarra.

Devido à intensificação da cultura da mancarra, as queimadas atingem proporções alarmantes, nomeadamente as praticadas pelos Fulas e pelos Mancanhas.

Alguns parasitas prejudicam de maneira sensível as produções das espécies conhecidas por “milho brasil”, “milho cavalo” e “milho preto”.

No Quínara, principalmente a produção de arroz foi prejudicada pelas águas vivas.

No ano findo, esteve nesta Província o senhor Jean David Bruce, de nacionalidade holandesa, técnico de óleos, que, a convite do Ministério do Ultramar, se deslocou à Guiné para estudar as possibilidades da Província nos novos métodos de culturas e exportação, as espécies mais recomendáveis às condições ecológicas, com o objetivo de uma produção dirigida mais consentânea com as ricas possibilidades da Província.

Foi feita a cultura, em grande escala, por toda a Província, de sementes de caju importadas de Moçambique, que germinaram bem e em alguns pontos se desenvolveram rapidamente. Essa sementeira foi precedida da vinda a esta Província do professor do Instituto Superior de Agronomia Dr. Carlos Rebelo Marques da Silva que, em missão do Ministério do Ultramar, veio estudar as suas possibilidades económico-culturais”.

A década de 1950 propiciou uma gradual aproximação do BNU com a Sociedade Comercial Ultramarina, a grande rival da Casa Gouveia, são preciosos os dados que o gerente regista para Lisboa, fazendo muitas vezes uso dos próprios relatórios da Ultramarina.

Mas há transformações em curso, em breve a Guiné vai estar envolvida por estados independentes, o gerente escreve:

“Apesar da ampliação das atividades comerciais da Província, com o aparecimento de novas firmas, melhoramento das instalações e alargamento da rede de sucursais de outras já existentes, o comércio não obteve a melhoria de situação a que esse desenvolvimento deveria conduzir. E para isso contribuíram:

O fraco índice do poder de compra das populações indígenas;

A concorrência adveniente do número exagerado de comerciantes em relação à população;

A importância excessiva;

A intromissão de caixeiros-viajantes da Metrópole, que não só vendem diretamente aos comerciantes retalhistas os artigos das firmas suas representadas, como ainda importam outros em nome de qualquer comerciante amigo, que vendem ambulantemente pela Província a preços competidores, em virtude dos menores encargos a que estão sujeitos;

Fatores de ordem política: a independência da Guiné Francesa e o ingresso do Senegal na Federação Mali. Estes vizinhos territórios absorviam grande parte dos artigos importados por esta Província, contrabando esse que diminuiu grandemente.

Todas estas circunstâncias se refletiram na liquidação dos compromissos, que se fez mediante sucessivas prorrogações e amortizações”.

Estamos no ano em que se começa a falar em bauxite e petróleo e enviam-se para Lisboa dados minuciosos.

O acervo documental que está na base desta comunicação divide-se em duas partes distintas: os relatórios de execução e uma documentação avulsa a eles ligados; e um conjunto de documentos avulsos que foram cronologicamente tratados e que se vão revelar de grande significado, foi aqui que se encontrou um documento histórico que saiu do punho do administrador Castro Fernandes, datado de 1957, e encontramos depois as informações que preludiam a luta armada, e da luta armada ao longo de 1963, decorrem de contatos íntimos entre o gerente do BNU e a polícia política.

Adiante-se que este conjunto de documentos tem uma lógica de funcionamento de todo o sistema sociopolítico e económico, Bissau impôs-se como capital, os sonhos de grandeza, mesmo no período da luta pela independência, acabam por estar centrados em Bissau e arredores, é o caso da CICER e de um hotel que se previa para a Praça do Império, isto para não falar já num projeto de novas instalações para o BNU em Bissau e a criação de uma delegação em Bafatá.

Vamos igualmente tendo conhecimento de empreendimentos agrícolas, aparentemente grandiosos, e que se revelarão desastrosos, caso da Sociedade Agrícola do Gambiel e da Estrela de Farim, essas informações irão sendo cedidas pelas delegações de Bolama e Bissau. É igualmente uma correspondência que permite visualizar como a Casa Gouveia entrara em rota de colisão com o BNU, são dados altamente pertinentes comunicados para a sede do BNU em Lisboa.

Em jeito de conclusão, considero que toda esta documentação que esteve albergada no Arquivo Histórico do BNU (e hoje está encaixotada à espera que lhe seja oferecida um novo destino) é um alfobre de importância indesmentível para a vida da capital da colónia, permite ver em grande ecrã a competição entre Bolama e Bissau, usaram-se os mais espantosos argumentos para alçapremar, em jeito de análise SWAT, as oportunidades e desafios que se punham a Bolama e os condicionalismos de Bissau, tudo será ultrapassado no decurso da II Guerra Mundial com a instalação da nova capital; será em Bissau que aparecerão, logo em fevereiro de 1960, panfletos anunciadores de que a subversão está em marcha e não menor importância tem o apanhado de informações da filial de Bissau que parece ter-se transformado num secreto correspondente de guerra desde essa data até 1964, tanto quanto me é dado saber nenhuma outra entidade não-oficial reportou os acontecimentos do segundo semestre de 1962, o desmantelamento da vida económica e social da região Sul, a passagem da luta armada para a região do Corubal e para o Morés em 1963, mês a mês o investigador interessado encontra nestas informações dados reveladores da evolução da luta armada e do cataclismo económico a ela associada; o antigo ministro da Economia e figura de proa da União Nacional, António Júlio de Castro Fernandes, produz em 1957 um documento valioso, uma autêntica radiografia da colónia e das potencialidades que deviam ser rapidamente alavancadas, até porque o BNU, desde 1927, era um proprietário agrícola com significado, possuía amplos terrenos sobretudo na região de Fulacunda; e uma parte determinante da transição da colónia para estado independente pode ler-se no Livro de Atas do Conselho de Administração e do Conselho de Gestão do BNU entre 1974 e 1976. Afinal, tudo se vai passar em Bissau, o BNU dará lugar ao Banco Nacional da Guiné-Bissau.

 

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