quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Como me fiz um homem inteiro, feito de todos os homens e que vale por todos eles.

 


 

Antes de se tornar no Papa do existencialismo, em grande romancista e dramaturgo, teatrólogo brilhante, ativista de grandes causas, Jean-Paul Sartre foi criança, teve uma infância marcante, viveu num ambiente familiar tratado com desvelo e atribui àquela atmosfera de livros o gosto em tornar as palavras que leu na sua própria escrita. As Palavras, romance autobiográfico dado à estampa poucos meses antes de lhe ser atribuído o Prémio Nobel da Literatura, é esse estupendo exercício.

Escavando a memória, libertando recordações, vai dar-nos essencialmente o que foi a sua infância no meio dos livros, no recato do meio familiar e como a leitura lhe definiu o modo de escrever, na pessoa em que se transformou. Dirá mesmo que “comecei a minha vida como provavelmente a irei terminar: no meio dos livros”. E adianta: “No escritório do meu avô, havia-os por toda a parte; era proibido limpar-lhes o pó, exceto uma vez por ano. Ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas; direitas ou inclinadas, robustas como tijolos nas estantes da biblioteca ou nobremente espaçadas em áleas de menires, sentia que a prosperidade da família dependia delas. Tocava-lhes às escondidas para honrar as minhas mãos com a sua poeira, mas não sabia bem o que fazer delas e todos os dias assistia a cerimónias cujo sentido me escapava: o meu avô – normalmente tão desajeitado que a minha mãe lhe abotoava as luvas – manuseava esses objetos culturais com uma destreza de oficiante. Vi-o mil vezes levantar com um ar ausente, dar a volta à mesa, atravessar a divisão em duas passadas, pegar num volume sem hesitar, sem se dar tempo de o escolher, folheá-lo ao voltar para a poltrona, com um movimento combinado do polegar e do indicador.”

Muito se fala da Alsácia Lorena, o avô domina fluentemente o alemão e o francês. A biblioteca é volumosa, a vida social era fluente, como Sartre observa: “Frequentávamos pessoas ponderadas que falavam alto e com clareza, baseavam as suas certezas em princípios sãos, na sageza das nações, e não desdenhavam distinguir-se do comum apenas por um certo maneirismo da alma, ao qual eu estava perfeitamente habituado. As visitas despediam-se, eu ficava sozinho, evadia-me desse cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura dos livros. Bastava-me abrir um para nele redescobrir esse pensamento inumano, inquieto, cujas pompas e trevas ultrapassavam o meu entendimento, que saltava de ideia em ideia, cem vezes por página, e eu deixava-o seguir, atordoado, perdido.”

Para gozar na plenitude As Palavras, de Jean-Paul Sartre, Livros do Brasil, 2024, é preciso aceitar este passeio na memória até uma biblioteca do início do século XX, dela extrair a formação de uma mentalidade, a descoberta de que foi nesta infusão de leituras que nasceu o prazer da escrita. O menino Sartre é puxado pela mãe e pelo avô, da leitura que hoje se designa por infato-juvenil, um autêntico mundo de aventuras, a estudar em casa é depois inscrito no liceu onde se descobre que era demasiado avançado para a sua idade. Vai olhando à volta os adultos da sua família, confessa que e o seu corpo formavam um estranho casal, é educado no catolicismo até que a fé, um dia, se esvaiu. Teve as suas doenças e foi mimado nas suas convalescenças. Deus o angustia, e Dele passa a descrer: “Se Deus me livrasse das aflições, eu teria sido uma obra-prima assinada; seguro da minha parte no concerto universal, teria aguardado pacientemente que Ele me revelasse os seus desígnios e a minha necessidade. Eu pressentia a religião, aguardava-a, era o remédio. Se me a tivessem recusado, eu próprio a teria inventado. Que não ma recusassem: educado na fé católica, apreendi que o Todo-Poderoso me criara para a Sua glória: era mais do que aquilo que eu ousaria sonhar.”

Educado nesta atmosfera de gente cumpridora dos preceitos culturais burgueses, vai-nos deixando registos esplendentes desta sociedade antes da Primeira Guerra Mundial. O teatro, por exemplo:

“Os burgueses do século passado nunca se esqueceram do seu primeiro serão no teatro e os seus escritores encarregaram-se de nos relatar as circunstâncias. Quando o pano subiu, as crianças julgaram-se na corte. Os ouros e as púrpuras, as luzes, as pinturas, a ênfase e os artifícios punham algo de sagrado até no crime; no palco, viram ressuscitar a nobreza que os seus avós haviam assassinado. Nos entreatos, a estratificação das galerias oferecia-lhes a imagem da sociedade; foram-lhes mostrados, nos camarotes, ombros nus e nobres vivos.“

Aprendeu a ler, sente-se um beneficiário do amor familiar, é nisto que, surdamente, o vai minando a epopeia da escrita. A segunda parte de As Palavras é em si própria a génese da sua aventura na escrita, ele vai descrevendo as sinuosidades em todas estas tentativas dos seus queridos juvenis, a mãe orgulhosa com estes primeiros escritos, o avô mais cético. Em retrospetiva, faz a sua confissão:

“Há alguns anos, fizeram-me notar as personagens das minhas peças e dos meus romances tomam as suas decisões bruscamente e em crise, que basta um instante, por exemplo, para que o Orestes das Moscas conclua a sua conversão. Sem dúvida: é que os faço à minha imagem; provavelmente, não tal como sou, mas tal como quis ser (…) À falta de me amar, fugi para a frente; resultado: amo-me ainda menos, essa inexorável progressão desqualifica-me incessantemente aos meus olhos; ontem, agi mal, visto que era ontem, e hoje pressinto o julgamento severo que farei incidir sobre mim amanhã.”

E dá-nos uma despedida que é a sua assumida condição humana posta em palavras:

“Durante muito tempo, considerei a pena como uma espada, agora conheço a nossa impotência. Não importa: faço, farei livros; é preciso que o faça; servem para alguma coisa, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem: este projeta-se nela, reconhece-se nela; apenas esse espelho crítico lhe oferece a sua imagem (…) Lancei-me por inteiro à obra para me salvar por inteiro. Se arrumo a impossível Salvação no armazém, que resta? Um homem inteiro, feito de todos os homens que vale por todos eles, e por quem valem todos os outros.”

Um monumento autobiográfico no topo da grandeza da escrita. 


                                                                            Mário Beja Santos

 


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

São Cristóvão pela Europa (278).

 

 

 

A cidade austríaca de Graz conserva ainda mais imagens de São Cristóvão.

A praça principal, hoje denominada simplesmente Hauptplatz, teve outrora o nome infamante de Adolf Hitler.

Tem a forma de um trapézio.

No seu número 6, num edifício do Século XVII, um belo mural da autoria do pintor austríaco Paul Scholz (1859-1940).

 


 

A Catedral de Graz foi construída por decisão do Imperador Frederico III que voltaremos a mencionar nesta série de posts. É dedicada a Santo Egídio.

A grande imagem da Catedral é um fresco de São Cristóvão de grandes proporções pintado em 1464 e que tudo indica ter a cara e o corpo do Imperador.



Finalmente, a igreja do
Heiligen Blut (do Santo Sangue), hoje de estilo barroco, conserva um portal lateral onde se pode ver o nosso Santo.

Os vitrais da Igreja foram destruídos na II Guerra Mundial e redesenhados nos anos 50 do Século XX. Um dos vitrais é sobre o sofrimento de Jesus e representa entre os torturadores Hitler e Mussolini, ao alto do lado direito.

 



                                Fotografias de 1 de Agosto de 2024

                                                                  José Liberato





Carta de Bruxelas.

 







                                                                        Fotografias de João Tiago Proença



sexta-feira, 11 de outubro de 2024

No cinzel de uma obra-prima literária as memórias de uma guerra que não se apagam.

 



A Selva Dentro de Casa, por Possidónio Cachapa, Publicações Dom Quixote, 2024, está muito longe de ser destinado só a antigos combatentes, é uma recordatória para um país inteiro do legado de uma guerra colonial, tal como o autor escreve em primorosa dedicatória:

“Este livro é dedicado a todos aqueles que adormeceram para sempre, entre palmeiras distantes, imaginadas por nós a preto-e-branco, e que nunca pediram para ver.

E para os que regressaram pela selva dentro. A que nunca chegou a ser deles. A selva escura. Tão sombria que não conseguirão falar dela até ao fim. A floresta que como um sonho se fecha e afasta quando se evoca o seu nome. Que parte das coisas que eles não conseguiram dizer, aos filhos e às mulheres, porque não há palavras para descrever o Inferno possam, finalmente, surgir à luz.

Mas, também, a todos os homens, mulheres e crianças que ao mesmo tempo viviam uma outra guerra dentro das suas casas. Que essa criança interior encontre finalmente a paz.”

Trata-se de uma tentativa vitoriosa de trazer à consciência de um povo o que se terá passado na vida daqueles milhares de jovens que saíram de casa para ter um arremedo de preparação bélica, metidos depois no meio do transporte mais rápido ou mais vagaroso para saltar de continente e cair no local ensombrado pela multiplicidade de violências e horrores que uma guerra pode oferecer. Sou levado a supor que há um certo pendor autobiográfico nesta criança – narrador, o sobrinho do Quim, aquele menino tão amado pelo seu tio, a viver algures numa fundura alentejana vai-nos desenvencilhando protagonistas que parecem ter carne viva, tal a corrente elétrica imposta pela narrativa, a mãe, a tia Lurdes, logo na entrada, a poderosa descrição do lugar e do tempo:

“Durante todos os anos da minha infância, os meses avançaram da mesma maneira: a noite que chegava mais cedo e o caminho penoso para a escola que odiávamos; o Inverno que vinha tão gelado arrefecia tudo em que tocávamos e nem sacos de água quente nos salvavam de tremer, quando se entrava nos lençóis; o aparecimento das primeiras flores lilases e que depois quase desapareciam, debaixo de uma onda de verde e de odores que enlouqueciam de calor.

E, finalmente, o começo do Verão (…) O Verão era a coisa mais importante das nossas vidas.”

É a comunicação fulgente, funcional, de fácil entendimento que nos cativa logo e nos leva de cambulhada até ao final da história. O tio leva o menino às festas, o menino vai à escola e vão se interpolando os episódios do Quim na tropa, o sobrinho na sua fundura alentejana, a tropa passa por Luanda, o pai do menino reaparece, não é propriamente pai é progenitor, o Quim chega a Moçambique, andam todos de olhos arregalados a ver o Lourenço Marques, o menino brinca aos índios e aos cowboys, lá na guerra o Quim chama-se o Cachopas, extraem as amígdalas ao sobrinho, a mãe e a tia Lurdes sempre presentes. Lá na guerra Quim descobre o sexo com a Celina (que na verdade se chamava Salima), a guerra manifesta-se, o Casinhas foi atingido e morreu e o Quim irá lembrar-se muitas vezes desta primeira morte, de ter visto um corpo conhecido a dançar, crivado de balas, e a memória crispou-se de não ter sentido uma dor imediata.

Na fundura alentejana a vida prossegue com a sua miséria remediada, a certa altura o menino não resistirá a, às escondidas, ir abrir uma caixa de madeira que a mãe tem escondida e tirar uns cobres para comprar uns doces. O Quim já está a viver na selva adentro, surge-lhe um bálsamo, uma improvável madrinha de guerra, a Susanita, irmã do Zé Carriço. A mãe do menino mudou de emprego, faz limpezas numa pequena fábrica têxtil, recolhe os restos de tecido que caem das máquinas e ao fim do dia lava o chão, as duas casas de banho, traz para casa um ordenado de sobrevivência. A mãe descobre que o menino a rouba, temos pancadaria com o cinto, foi acontecimento decisivo. “O coração com que amara a minha mãe estava agora fechado numa caixa de madeira invisível, cuja chave não voltou a aparecer.”

Na selva adentro, já se fazem operações ditas de limpeza, varre-se tudo a eito, poupavam-se as mulheres que tinham os filhos no colo, mas não as que vinham aos gritos em direção à tropa, as aldeias são incendiadas ao lança-chamas. O soldado Valverde fora morto durante a refrega, apareceu com a garganta cortada e o oficial vingou-se, deu um tiro na cabeça de um jovem, a coluna regressa ao quartel com aqueles que não morreram durante a operação de limpeza. O pai reapareceu, voltou a haver discussão, pediu oficialmente a separação, queria refazer a vida. Deixou duas notas de conto. O menino ama o seu lugar no mundo, quando o seu amigo Bento voltou para os campos lhe disse para olhar as flores roxas, sinal de que vinha aí a primavera, foi o êxtase, gritavam de alegria, vinha a caminho a renovação da vida.

A Susanita escreve ao Quim: “Quando voltares hás de trazer-me um corno de elefante para meter na parede do meu quarto.” E na mesma carta mandou uma fotografia. “Não era uma beleza mas tinha o cabelo bem penteado preso numa fita, e com um sorriso artificial. Quim gostou.” A tropa delira ao ver aquelas manadas de elefante. A Susanita já se apresenta naquela fundura alentejana como a namorada do tio, vai enunciado à família o que o Quim manda nos aerogramas, que quando voltar quer ir aprender para eletricistas, está farto de carregar baldes de massa. O pai reaparece, deixa dinheiro para umas botas novas. A comissão do Quim caminha para o fim, escreve à mãe de Furancungo, parece que vão para Lourenço Marques. É neste patamar da narrativa que Possidónio Cachapa tem um golpe de asa, numa operação Quim pensa que vai morrer, tudo porque uma manga, uma cobra de picada mortal se enrosca numa perna, então o narrador introduz Mankumpete, o menino que nasceu na beira do lago Chiwa, foi obrigado a alistar-se na FRELIMO, vai ter um papel decisivo na vida do Quim, são algumas das melhores páginas desta obra tão esplendente, o tio volta da guerra, é já um outro homem, o amor pelo sobrinho não desfaleceu, mas precisa de muito álcool, na taberna fala-se muito da guerra, o Quim pede ao sobrinho para ir ter com a tia Susanita e o parágrafo final é um dos mais belos exercícios da pirotecnia:

“O Sol ainda estava alto e a luz fazia doer um pouco os olhos, atirava contra as paredes brancas da vila. O mês de abril, no Alentejo, às vezes, vinha assim, a anunciar um bom tempo que poderia chegar ou não. Das pedras da calçada, as ervas infestantes surgiam por todo o lado. Só lá iriam com napalm.

Os meus pés caminharam por esse verde misturado com rocha calcária e, por um instante, deixei de saber onde estava. Uma tontura apossara-se de mim com o calor, e temi cair. Da minha névoa ora branca ora verde, pensei sentir alguma cosia rastejar até junto do meu corpo. E, sem abrir os olhos, reconheci um aperto pela perna acima, enquanto os sons desapareciam, reduzindo-se a uma espécie de silvo.”

A ternura deste sobrinho e a selva dentro do Quim catapultam este romance para a nossa melhor literatura. 


                                                                                    Mário Beja Santos


São Cristóvão pela Europa (277).

 

 

 

A cidade de Graz é a segunda maior da Áustria e a capital do Estado da Estíria.

Na sua Área Metropolitana encontrei imagens de São Cristóvão que vão dar para dois posts.

A Igreja de São José foi construída para celebrar o 60º aniversário da ordenação do Papa Leão XIII, o 50º da subida ao trono do Imperador Francisco José e o terceiro centenário da Restauração da religião católica na Estíria por ocasião da Contrarreforma. Foi inaugurada em 1908.

Josef Kastner (1844-1923), pintor austríaco é o autor de uma bela tela colocada num dos altares laterais. Representa os catorze santos auxiliares entre os quais São Cristóvão. Também presente na composição está São Leopoldo do nosso lado esquerdo com uma igreja nas mãos.



 


 A Igreja de São João Bosco foi construída em 1935 pela Ordem dos Salesianos. A torre da Igreja ostenta um mural representando o nosso Santo.

O mural é da autoria do pintor austríaco Franz Weiss (1921-2014).



 


Finalmente, nos arredores de Graz, em Thorndorf, situa-se a Igreja de São Cristóvão que naturalmente tem diversas representações do Santo.

Numa rotunda contígua, uma estátua insere-se no Complexo habitacional São Cristóvão construído nos anos 60 do Século XX.

 



                                                                            Fotografias de 1 de Agosto de 2024

                                                                                                               José Liberato


terça-feira, 8 de outubro de 2024

São Cristóvão pela Europa (276).

 

 

 

Gamlitz é um município pertencente ao Estado austríaco da Estíria.

A Igreja paroquial de São Pedro e São Paulo, originalmente gótica, sofreu profundas remodelações ao longo da sua história.

Possui numa das suas paredes exteriores um baixo relevo dourado em cerâmica representando São Cristóvão. Foi colocado em 1991 e é da autoria do artista austríaco Günter Orban (nascido em 1948) e da artista húngara Ricca Bach (1938-2001). Ao lado, um conjunto notável de baixos relevos romanos, um representando três escribas e dois guerreiros e outro representando uma belíssima cena de caça.

 


 


 

Em Gnas, a Igreja paroquial é dedicada a Santa Maria. Ostenta um relógio de sol ilustrado com a figura do nosso Santo.


Em Dietersdorf bei Fürstenfeld, na ponte sobre o rio Rittschein, um marco representando São Cristóvão.

 


Finalmente em Wenigzell, a igreja paroquial é dedicada a Santa Margarida de Antioquia. Ardeu na II Guerra Mundial em Abril de 1945. Foi reconstruída no estilo barroco.

No interior, uma imagem datada de 1971.

Um hotel na vizinhança tem um mural também de São Cristóvão.

 



                                             Fotografias de 1 e de 2 de Agosto de 2024

                                                                                        José Liberato



segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Carta de Bruxelas - 25.

 





                            Para assinalar um ano passado sobre o dia 7 de Outubro de 2023

 

                                                                                 Arbeit macht frei anus mundi

 


O trabalho é uma negação da natureza. Os produtos naturais seguem um curso autónomo e determinado de antemão, nascem, crescem reproduzem e morrem cumprindo a lei da espécie ínsita em cada indivíduo. O seu metabolismo no ambiente não ultrapassa nunca o que lhe está prescrito por essa lei; os seus fins são inseparáveis dessa lei. Na natureza, o tempo é apenas o elemento homogéneo onde se desenrola o processo natural. É como que o genuíno sujeito da natureza.  Enquanto specificum humano, o trabalho nega a lei específica da natureza, a autonomia dos produtos naturais impondo-lhe finalidades humanas. O processo de artificialização escapa, desse modo, ao império do tempo.  Uma árvore desenvolve-se como árvore e nunca será nada mais do que uma árvore. Não tem a possibilidade de ser outra coisa. Vista como madeira, pode ser transformada em cadeira, mesa ou até lenha para uma lareira. O trabalho arranca a natureza da sua posição de sujeito e torna-a objecto humano. E fá-lo precisamente por uma inversão do tempo. O produto natural deixa de ser um passivum do tempo e passa a ser, enquanto objecto negado, um activum do tempo. E esse tempo é o tempo humano. No trabalho, o homem torna-se senhor do tempo. Nessa posse, a objetivação da natureza externa está em acção recíproca com a objetivação da natureza interna. A transformação do produto natural exige uma modificação da natureza interna.             Cozinhar os alimentos implica a suspensão da vinculatividade do instinto natural, essa razão alheia no animal, o adiamento da satisfação da necessidade natural. No trabalho, o estímulo da natureza exterior e o estímulo da natureza interna perderam o seu poder, já não conseguem determinar no homem a eterna repetição do ciclo natural. O trabalho libertou o homem do tempo. Os fins são seus, não da natureza. O trabalho liberta.

O nacional-socialismo submeteu esta velha tradição intelectual, vigorosa na Alemanha, maxime em Hegel, a uma reinterpretação. Inscrevê-la como máxima no portão de entrada de Auschwitz dá disso testemunho. O que era vida humana há-se de se tornar morte humana. O trabalho no processo de extermínio é o trabalho da morte, não visa impor fins humanos a um material natural. Pelo contrário, a morte no Lager exigia a redução prévia dos humanos a material, o que significa subtrair ao homem a sua disposição de possibilidades. Reintegrava as suas vítimas no processo do tempo natural e, desse modo, a morte deixava de ser morte de homem a homem. No Lager, o judeu pagava a exorbitância de um Deus criador que desencantou a natureza. E tal como a vítima era reduzida a material também o carrasco pretendia ser a voz oprimida de uma natureza que se vingava, e, nesse passo, reservava para si a atividade insigne da passividade o poder da imanência absoluta, que se revela na excrescência do mal absoluto. As chaminés dos crematórios expelem os excrementos da digestão purificadora do mundo anus mundi. É esse o trabalho sem finalidade exterior que se revolve eternamente sobre si mesmo.

Hoje regressa esse antigo pesadelo, quando se pretende deduzir o trabalho de identidades naturais, difamando como traição a autonomia das possibilidades, substituindo de maneira tão escandalosamente semelhante o Blut und Boden por aquelas. O trabalho volta a ser o poder imanente fechado em si, sem promessa. Que as identidades se juntem a algum islamismo contra Israel não surpreende. Entre as falsas equivalências, uma há que é das mais perniciosas, a saber, a de que a origem comum das três religiões implica uma compreensão teológica comum. Na tradição judaica e cristã, o milagre é sempre operado em favor do homem, nunca como exibição do poder absoluto de um Deus que se regozija nesse absoluto perante a criatura débil; no Corão verifica-se frequentemente o contrário. Esse poder sem exterior conjuga-se muito bem com renaturalização das identidades como código inescapável. A eliminação de Israel e dos judeus presente hoje nos protestos contra Israel Gas the jews! visa a eliminação do testemunho de que o homem, ele e só ele, responde perante si mesmo pelo que de si fizer, pelo seu tempo. A velha história do rabi que não abandona as suas tarefas quando lhe anunciam a presença do Messias confirma essa responsabilidade indeclinável. 

Politicamente, a democracia não pode deixar de constituir o inimigo por excelência desse funesto consórcio ideológico. Nela, o lugar do poder está vazio por natureza, tal como por natureza o seu tempo é o tempo da decisão humana responsável perante si mesma. É-lhe consubstancial o ónus da decisão, e a felicidade e infelicidade que lhe estão associadas e que põem em marcha o seu trabalho sobre si mesma, trabalho que não elimina o poder-ser humano, mas, pelo contrário, o mantém sempre aberto.  De certa maneira, nela, como no judaísmo, nasce o mundo. 


                                                                            João Tiago Proença