terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Charles Dickens - I

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Aceitando um repto, aqui vai.
Comemora-se no próximo dia 7 de fevereiro o bicentenário do nascimento de um dos maiores vultos da literatura britânica.  Afirma-se até que mais famoso do que ele só mesmo Shakespeare.  Refiro-me a Charles John Huffam Dickens (7 de fevereiro 1812-9 de junho de 1870), popularizado entre nós sobretudo por uma narrativa breve como A Christmas Carol in Prose: a Ghost Story of Christmas  (1843) ou pelo romance Oliver Twist, or, the Parish Boy’s Progress (1837-1839), que o público português pôde ler em muitas versões francesas que entre nós circularam; ou que teve oportunidade de conhecer numa das 25 traduções portuguesas que da primeira obra se publicaram entre nós desde 1863 até 2010; ou que recorda da leitura de uma das 17 traduções diferentes da segunda obra, publicadas entre 1876 e 1993; ou que reconhece ainda como o autor de muitos outros contos e romances, em vários casos profusamente reeditados em Portugal.  Falo de Charles Dickens, que o público português associará, porventura sobretudo, nos dias de hoje, aos filmes que, pela mão de Cukor, Conway, Lean, Hurst, Thomas, Read, Mann, Neame, Hill, e mesmo do português João Botelho,  desde pelo menos 1911 adaptam para o grande ecrã estas duas obras mais famosas entre nós, a que acrescentam: The Personal History (...) of David Copperfield (1849-1850), A Tale of Two Cities (1859), Great Expectations (1860-1861), ou Hard Times, for these Times (1854). Tão famosas, que são para nós: O Cântico de Natal, Oliver Twist, David Copperfield, História de duas cidades, Grandes esperanças ou Tempos difíceis. Somos velhos conhecidos.
Trilhando um caminho menos percorrido pela investigação mais recente em Estudos Literários, pergunto-me quem terá sido o homem que, como autor, que se esconde inicialmente por detrás do pseudónimo “Boz”, alcunha que dedica ao seu irmão mais novo, Augustus, a quem afectuosamente chamava Moses ( ou “Bozez” simulando o nariz entupido do irmão), inspirado na obra The Vicar of Wakefield, de Oliver Goldsmith (1766)?  Criança feliz, aluno excepcional, trabalhador infantil, profundamente infeliz, numa fábrica de graxa, filho de um pai preso por dívidas, aluno premiado, escritor de peças para um teatrinho de brincadeira, escriturário, estenógrafo, repórter parlamentar, actor falhado, apaixonado desiludido, marido, cunhado dedicado, editor de jornais e revistas, potencial candidato liberal, crítico visitante dos Estados Unidos, defensor do reconhecimento internacional dos direitos de autor, expatriado em Itália, apaixonado do mesmerismo, actor amador, viajante pela Suíça e pela França, filantropo, pai de dez filhos, marido infeliz de uma mulher deprimida, apaixonado por uma actriz, homem separado, vítima de um acidente ferroviário, insomne, exausto mas enérgico entusiasta de leituras dramatizadas da sua obra, hemiplégico e fisicamente esgotado, incansável escritor famoso.
Quem terá sido o homem de carne e osso por detrás da escrita, da fama, das querelas públicas, dos ciclos de leituras dramatizadas e das representações teatrais?
Em 14 de Abril de 1851, Dora Dickens, a nona dos seus dez filhos, morre inesperadamente aos  oito meses. Charles Dickens escreve à mulher, Catherine, que se encontra longe, a convalescer.  Com a mais delicada das cautelas, pede-lhe que volte para casa. Ela regressa no dia seguinte.

       Devonshire Terrace
       Manhã de Terça-feira
       Quinze de Abril de 1851
       Minha querida Kate:
      Presta atenção.  Tens de ler esta carta, muito lentamente, muito cautelosamente.  Se te apressaste a chegar até aqui, sem perceber muito bem (pressentindo más notícias), confio em ti para voltares atrás e leres novamente.
     A Dora, sem o menor sofrimento ou dor, ficou subitamente doente.  Acordou de um sono e viu-se que, a dado momento, estava muito doente.  Repara que não te vou enganar.  Ela parece-me muito doente.
       Não há nada na sua aparência que não se assemelhe a um descanso perfeito.  Suporias que estivesse pacificamente a dormir.  Mas tenho a certeza de que está muito doente e não posso encorajar-me, acalentando uma grande esperança de que venha a recuperar.  Não me parece – e porque te diria que me parece, a ti, minha querida! – não me parece que a recuperação dela seja de todo provável.
      Desagrada-me sair de casa. Aqui não há nada que eu possa fazer, mas parece-me correcto ficar aqui.  Vai desagradar-te estar longe, bem sei, e eu não sou capaz de me sentir em paz com a ideia de te manter longe. O Forster, com a afeição que sempre nos dedicou, vai até aí levar-te esta carta e trazer-te para casa. Mas não a posso encerrar sem te fazer o pedido mais veemente de que venhas com uma compostura perfeita – e que te recordes do que tantas vezes te disse, que nunca podemos esperar sermos poupados, com tantos filhos que temos, às aflições dos outros pais  – e que, se – se – ,  quando vieres, eu tiver, porventura, de te dizer “A nossa pequenina morreu”, te cabe desempenhar o teu dever para com os outros e mostrares-te digna da grande confiança que te dedicam.
      Se leres isto, com firmeza, estou perfeitamente confiante de que farás o que é correcto.
      Com a afeição de sempre,
     Charles Dickens


[original aqui]
Alexandra Assis Rosa

Os morenos da literatura.

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Ainda agora acabei de desembarcar no Malomil e já estou metido em sarilhos. Há dias, João Tordo não se guardou de manifestar o seu desagrado pelo texto «Grávidos de Literatura» e fez-me chegar esta mensagem:

«Caro João Pedro George,

julgo que não nos conhecemos, mas li um artigo teu chamado “grávidos de literatura”. Até achei alguma graça, sobretudo a parte que se refere à “mão” divina do Lobo Antunes; mas, depois, fazes uma citação do meu romance como se fosse uma citação de uma entrevista minha. Diz assim: “No princípio de Dezembro comecei a investigar a fundo a história de Catarina Eufémia. Uma vez mais, temo estar a mentir porque, em abono da verdade, foi a história de Catarina que me começou a investigar”. Na realidade, esse excerto é o princípio do segundo capítulo do livro, e não uma coisa que eu tenha dito, como queres fazer parecer no artigo: é uma frase do narrador da história e não minha. Posso assegurar-te que não estou “grávido” de literatura e que os meus romances dependem de muito trabalho de escrita, reescrita, comparação, estudo, etc. Como gosto de corrigir o que me parece errado, aqui fica a mensagem. E, por favor, não me coloques na mesma lista do que as louras da literatura: fica-me mal a mim e fica-te mal a ti. Abraço.»

Em obséquio do rigor, Tordo tem razão: aquela frase é do romance. Acontece, porém, que foi escolhida em detrimento de outra que o desmemoriado Tordo declarou à jornalista Maria João Caetano, do Diário de Notícias: «Eu descobri a Catarina Eufémia porque ela me foi acontecendo. Acho que foi mais ela que me descobriu a mim» (7 de Dezembro de 2011, p. 46). Mal por mal – ambas excedem as minhas piores conjecturas acerca da estéril retórica de alguns escritores portugueses, ambas são capazes de ombrear com a «mão divina» de Lobo Antunes, ambas são farinha do mesmo saco –, optei pela citação do romance.
Afora esta pequenina correcção, João Tordo achou ainda o seu prestígio posto em causa. Convencido de que está sempre a parir Alta Literatura, ocupado permanentemente com as coisas superiores da vida, Tordo sentiu-se ultrajado na sua masculina essência de «grande escritor» por ver-se enfileirado com as «louras da literatura». Então podia lá ser. Ele, Tordo, trabalha para ser imortal, cada página sua vale dez Margaridas Rebelo Pinto e dez Marias João Lopo de Carvalho. Ora, ora, João Tordo. Vou ter de ser muito franco contigo: ninguém é o que julga ser, nem ninguém é apenas o que parece ser. Sobretudo, não acredites em tudo o que pensas.
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                                                                                 João Pedro George

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Plágio universitário: o pacto de não-leitura.

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Ce n'est pas trahir un secret que de constater que l'université moderne est, d'une manière générale et depuis longtemps, confrontée à un problème de sérieux - pour employer un terme prudent. Le scandale de Bayreuth (l'ex-ministre de la défense Karl-Theodor zu Guttenberg accusé de plagiat dans sa thèse de doctorat, en février 2011) a fait tout au plus émerger un segment minuscule d'une confusion dont nul, ou presque, ne peut évaluer de manière réaliste la dimension historique et systémique.
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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Lá, ao longe, num pobre bairro de lata.

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A balada, dos anos 60: Lá, ao longe, num pobre bairro de lata... (clique na imagem para ouvir)
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A notícia, dos tempos que correm:
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José Lello não declarou conta no BCP no valor de 600 mil euros.

Por: António Sérgio Azenha

José Lello omitiu, durante 14 anos, uma conta num fundo, partilhada com a mulher, com mais de 658 mil euros. A conta foi aberta em 1988, mas o deputado do PS, apesar de estar obrigado a declará-la ao Tribunal Constitucional (TC) desde 1995, apenas o fez quando entregou a declaração de rendimentos relativa ao início de funções de deputado em 2009. Lello justifica a omissão da conta com o desconhecimento da lei.
A declaração de rendimentos do início de funções em 2009 indica que Lello tem "50% da conta conjunta referente a um fundo gerido pelo Private Bank do BCP no valor global de 658 083 euros". O ano da abertura da conta não é indicado nessa declaração, mas num documento entregue no TC em Agosto de 2011 completa essa informação ao referir que o deputado tem "50% da conta conjunta referente a fundo aberto em 1988 e gerido pelo Private Bank do BCP". Uma informação confirmada pelo próprio José Lello.
O deputado justifica a omissão da conta de forma simples: "Durante um certo período, não conhecia bem a lei e não sabia que tinha de declarar essa conta." Foi graças a um técnico do grupo parlamentar do PS que Lello soube que tinha de declarar a conta. E sublinha: "Não tenho nada para esconder." Quando entregou a declaração do termo de funções no Secretariado do PS, no final de Setembro de 2011, a conta tinha 633 486 euros.

Correio da Manhã

domingo, 29 de janeiro de 2012

O Operário e a Camponesa.

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Vera Ignatyevna Mukhina (1889-1953)
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Вера Игнатьевна Мухина era o seu nome. Comparado com isto, Luciana Abreu e Yannick Djaló até não andaram mal quando resolveram chamar Lyonce Viiktórya à sua filhota mais velha.
Vera Ignatyevna Mukhina, mais conhecida como Vera Mukhina (1889-1953), foi uma das principais escultoras do realismo socialista na União Soviética. Só prémios Estaline foram cinco. E, em 1943, receberia o título oficial de «Artista do Povo». Anos antes, ficara célebre com a monumental escultura O Operário e a Camponesa, que encimou esmagadoramente o Pavilhão Soviético na Exposição de Paris de 1937. Colocados frente a frente no Trocadéro, os pavilhões soviético e germânico concorriam em monumentalidade e força bruta, antecipando o conflito que dentro em breve viria a envolver os dois países. A estátua regressou a Moscovo após a exposição parisiense, onde a República espanhola se apresentou com Guernica, de Picasso, e a selecção portuguesa foi capitaneada por António Ferro.
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Paris, 1937: os pavilhões alemão e soviético num tête-à-tête


















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O Operário e a Camponesa foi a primeira escultura soldada do mundo, tendo a técnica da soldadura sido usada através de métodos inovadores, com gigantescas placas moldadas sobre uma colossal estrutura de madeira. O resultado é impressionante: 24 metros de altura, 75 toneladas de peso. Com o operário a empunhar um martelo e a camponesa uma foice, a figura tornou-se mais tarde o logótipo da Mosfilm.

O logótipo da Mosfilm, em várias versões

Ainda hoje, a estátua O Operário e a Camponesa serve de inspiração a muita arte, tendo surgido, devidamente adaptada, na saga cinematográfica Harry Potter (mais precisamente em Harry Potter and the Deathly Hallows:  Part 1, de 2010). Trata-se de uma lamentável pilhagem que o mundo capitalista fez ao legado da escultora soviética. Infelizmente, não foi caso isolado, como veremos.



Magic is Might, a versão Harry Potter de Vera Mukhina

Antes do Harry Potter, já outros se haviam andado a servir da obra de Mukhina. Em 2003, foi a vez da artista de vanguarda Mare Tralla.
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Mare Tralla (1967-)
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Mais conhecida nos meios culturais pelo nome Disgusting Girl, Mare Tralla é uma moça nascida na Estónia em 1967, muito dada a fazer cenas de vanguarda e à cultura digital (foi, e creio que ainda é, Directora do E-Media Center da Academia Estónia das Artes). Vive em Londres e em Talin, capitais do Reino Unido e da Estónia, respectivamente. A sua obra tem percorrido diversos países da Europa. Em 2003, como dissemos, no âmbito do projecto «Department of Human Services», lembrou-se de fazer uma instalação a partir das figuras concebidas por Vera Mukhina. Mas, agora, na releitura de Mare Tralla, a rapariga já não ostenta na mão uma foice, mas uma banana; e o rapaz, por seu turno, trocou o martelo por um telemóvel. Humor fácil.
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Mare Tralla, The Department of Human Services, 2003


O seu mais recente trabalho chama-se Out. Foi apresentado o ano passado na Estónia, no âmbito da iniciativa Talin Capital Europeia da Cultura. A obra de Tralla inseriu-se numa mostra colectiva, intitulada Sõnastamata lood / Untold Stories, que visava ilustrar as representações da homossexualidade na Estónia e denunciar a homofobia que persiste nesse país. No texto de apresentação, em inglês, lê-se: «The exhibition is framed by a queer-feminist point of departure. Next to topics related to lesbians and gays, it also focuses on other often marginalised sexualities, such as bi-, trans- and intersexuality. The emphasis on the letter combination LGBTQI indicates the complexity of sexual and gender positions, against the background of which the following subjects are examined: the narrowness of binary gender roles, the constructed nature of gendered bodies, and the hard work involved in fitting or not fitting into the gender roles recognised by society». Cumprindo este objectivo, Mare Tralla apresentou Out que, como vêem, é uma performance muito substancial:   
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Mare Tralla, Out, 2011
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Vera Mukhina, a Artista do Povo, a escultora com cinco Prémios Estaline, essa, caiu no esquecimento. Ao que parece, a sua casa-estúdio em Moscovo está prestes a ser ou já foi mesmo demolida. Ainda assim, Mukhina continua a ser evocada na filatelia russa contemporânea (matéria na qual somos versados).




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Se a autora caiu no esquecimento, o mesmo não se dirá do seu opus magnum. Na verdade, O Operário e a Camponesa foi recentemente objecto de um longo e atribulado processo de restauro, começado em 2003 e apenas concluído em 2009.
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As imagens dão uma pálida ideia da dimensão do objecto com que estamos a lidar. Mas, não contentes com o tamanho original da estátua, os russos aumentaram-no aquando do seu restauro. Na versão de 1937, o mastodonte tinha 24 metros de altura, assentando num pedestal com 10 metros. Agora, com o acréscimo do pedestal, ficou com a bonita altitude de 60 metros. Na cerimónia inaugural desta versão revista e ampliada de O Operário e a Camponesa até houve fogo-de-artifício. Sinais dos tempos.       
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Durante o moroso processo de reparação da estátua, o povo da Rússia, infalível no humor, dizia que a foice e o martelo deveriam ser substituídos por um copo. Sim, um copo. Pelos vistos, tem o povo russo mais saudade de beber o seu copito do que da foice e martelo. Mais nostálgicas do passado, as autoridades preferiram, todavia, manter – e aumentar – a antiga versão estalinista: o rapaz com a mão no martelo e a miúda a levantar a foice; ambos garbosos, enfrentando o vento Oeste, a corrupção dos costumes e o mundo em geral.
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O copo de Vera Mukhina
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Mas, perguntam bem, a que propósito se lembraram os russos de querer meter um copo no topo do monumento? É que, segundo se diz, além da estátua do casal-modelo, Vera Mukhina foi também autora de outra obra, decerto menos monumental mas inquestionavelmente mais popular: o copo multifacetado. Há quem diga que é mentira, mito urbano, e que copos com várias faces já existiam na Rússia desde o tempo dos czares, pelo menos. Mas fontes bem informadas atribuem a maternidade do copo à escultora de O Operário e a Camponesa. Refiro-me ao livro Made in Russia. Unsung Icons of Soviet Design, de autoria vária e coordenação de Michael Idov, obra publicada pela Rizzoli em 2010. Made in Russia é uma antologia, polvilhada de imagens de diversos objectos de uso quotidiano nos tempos soviéticos, vindas dos arquivos da TASS.
Entre a versão que nega a autoria do copito a Vera Mukhina e aquela que lhe atribui com hesitações o desenho do robusto vidro, creio que é possível encontrar uma pacificadora terceira via, capaz de gerar consensos e evitar que Rússia e Alemanha venham de novo a andar à trolha. Copos com várias faces sempre existiram. Mas este, este em concreto e em específico, saiu do punho empenhado da Artista do Povo. Há quem diga que, no desenho das linhas rectilíneas do copo de vidro, Vera Mukhina foi influenciada pelo pintor construtivista Kazimir Malevich. Graças ao sopro inspirador de Malevich, o copo tinha a dimensão perfeita. Límpido e puro, casto e sereno, sem arrebiques burgueses. Sendo de uma elegância e de uma simplicidade extremas, o copo de Mukhina tinha também as proporções exactas para servir a função a que se destinava: embriagar o povo a golpes da vodca, fazendo-o esquecer que, como destino de férias, o arquipélago de Gulag conseguia ser relativamente pior do que Benidorm e Quarteira. A tese da influência de Malevich na criação do copo não é descabida, visto que Mukhina, nos anos vinte, namorara o cubismo, chegando mesmo a praticá-lo em público. Mas, na década de trinta, como bela artista que era, virou-se para o que estava a dar na altura, o realismo socialista. Na criação de O Operário e a Camponesa inspirou-se em diversas obras clássicas e neoclássicas (desde a Vitória de Samotrácia ao Arco do Triunfo), com resultados fatídicos: um casalito de assalariados com 24 metros de altura e 75 toneladas de peso.   
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Aqui, no copo, ao invés da estátua do Operário, não existe nada de megalómano. Nada de devaneios. O copo tinha uma função: durar. Durar como o regime que, a partir de 1943, inicia a produção em massa deste objecto, que deveria servir para brindes viris e saúdes! ao Pai dos Povos, mas cujas dimensões teriam de permitir também a sua limpeza nas máquinas de lavagem industrial que, na URSS, começaram a ser fabricadas nos anos trinta. Em comparação com a estátua, o copo era um tudo nada mais pequeno. Mas vencia na estatística. De facto, nunca um objecto foi produzido em tão grande escala. Vera Mukhina era mulher de grandes feitos e de grandes números. A estátua colossal fora a primeira a ser construída em placas soldadas. O copo multifacetado foi produzido à cadência de 5 a 6 milhões por ano. Grosso e forte, servia para todas as bebidas: o chá escaldante ou a água cristalina, que ora aqueciam ora refrescavam o corpo, mas sobretudo o álcool potente, que entorpecia o espírito.
Por causa disso, o copo plurifacetado – possivelmente, a única coisa plurifacetada que havia na Rússia soviética – sempre esteve associado ao consumo de álcool. No livro que atrás referimos diz-se que o copo de Mukhina constitui um bom exemplo das relações entre o design industrial e a política. É que, a dada altura, Nikita Khrushchev – um empedernido abstémio, como todos sabemos – tentou combater o endémico alcoolismo que grassava na sua pátria. Fê-lo, claro, está, à boa maneira soviética: proibiu as garrafas de 250gr e 125gr de vodca e só autorizando garrafas de 750gr, na convicção de que, desaparecendo as garrafas-mini, os russos não se abalançariam a voos mais altos. Mais um erro da economia planificada. Graças à criação de Vera Mukhina, a litragem de 750gr vinha mesmo a calhar, pois dava exactamente para encher três copos até à borda, dado que cada copo tinha capacidade para 250gr (100gr = 0,1 litros). É só fazer as contas.
Nada que se confunda, está visto, com a versão portuguesa do «copo de três», que, segundo dizem, nasceu do facto de existirem três modelos de copos: o tipo 1, com capacidade para 100cm cúbicos; o tipo 2, que permitia chegar aos 140cm cúbicos; o tipo 3, com 180cm cúbicos. Havendo liberdade de escolha e pluralismo, o pessoal, claro está, avantaja-se logo para o maior. Khrushchev tinha opinião diversa, julgando que o alcoolismo se combatia proibindo as garrafas com menor capacidade de armazenagem mas maior frequência de consumo. Puro engano. As massas populares ergueram-se contra esta sevícia e, revisitando o glorioso Outubro, continuaram tranquilamente a beber à farta. Nas rodas de amigos, tornou-se um chavão: «queres ser o terceiro?», ao que o camarada respondia com um «tens um copo?». E assim se esvaziava tranquilamente uma garrafa de 750gr. Na gíria, no calão do balcão, vulgarizou-se o dito ostakanit’sya, que, em tradução literal, equivale a «vai acima!» («e bota abaixo!»). Diz o livro Made in Russia que os copos tinham tal ligação ao ritual da bebida que quando, nos anos oitenta, um lote de copos de pior qualidade surgiu no mercado muitos julgaram que se tratava de mais uma manobra das autoridades para combater o alcoolismo. 
Nos nossos dias, os copos continuam ainda a ser produzidos numa fábrica localizada em Gus-Khrustalny (o nome desta vilória é intraduzível mas muito apropriado, qualquer coisa como «Ganso de Cristal»).
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De acordo com o Made in Russia, de que estamos aqui a beber à farta, as lojas IKEA vendem, em três tamanhos distintos, um modelo de copo que muito se assemelha («a remarkable lookalike») aos robustos copázios da defunta União das Repúblicas. Acrescenta o Made in Russia que, se virmos o fundo dos copos da IKEA, lá estão inscritas as reconfortantes palavras «Made in Russia».  Aqui, calma. Alto e pára o baile. Desde logo, porque importa denunciar mais uma pilhagem do património soviético perpetrada pelo grande capital. Não bastava o Harry Potter ter pinado a estátua, não bastava a estónia Tralla, e vem agora a IKEA do Sr. Ingvar Kamprad gamar-lhe o copo de múltiplas faces. Vera Mukhina, rapariga, tu nasceste para ser espezinhada. As tuas maiores criações, a estátua do Operário e o copo da vodca, acabaram nas mãos das multinacionais do entretenimento, do lazer e da decoração, tudo prazeres burgueses. ‘Tá mal. Assim, camaradas, não é possível fazer uma carreira decente no realismo socialista.
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Copos Pokal, a versão IKEA de Vera Mukhina
É urgente a intervenção das intrépidas mulheres do Couço e da não menos intrépida, e sofisticada, doutora Guta Moura Guedes. Até porque, se virmos bem, esta versão IKEA não passa de uma imitação pindérica dos copos de Vera Ignatyevna Mukhina. Atentai, pastorinhos, atentai nos copos Pokal, vendidos no IKEA de Alfragide a 0,40€ a unidade no modelo king size e, no modelo médio, a 1,99€ por seis unidades. Observai com detença e dizei se esta porcaria capitalista tem alguma correspondência com a bela criação da imortal Mukhina. Nada que se compare. Nem na clareza da linha justa, nem na durabilidade, nem na capacidade de ir à máquina de lavar (o modelo grande dos copos Pokal da IKEA não cabe em todas as máquinas, avisamos já os leitores).
Por outro lado,  e ao contrário do que vem indicado no livro Made in Russia. Unsung Icons of Soviet Design, os copos da IKEA, pelo menos os que são comercializados em território nacional e por cá fazem agora a sua mais-valia, não provêem da Rússia. É mais uma mentira do grande capital! O modelo maiorzito, que antes era made in Russia, vem da Bulgária, outrora nação-irmã mas agora muito tresmalhada. Já o modelo mais pequenino ostenta a marca inevitável do «Made in China». Sendo a China um país comunista, dos últimos do mundo, talvez esta colecção Pokal constitua uma derradeira homenagem que a IKEA decidiu prestar à memória da Artista do Povo, a camarada Vera Ignatyevna Mukhina. Mas que os copos chineses são uma cópia barata dos velhos copos estalinistas, disso não duvidem. Seja em matéria de copos, seja em ideologia, é sempre de preferir o original às imitações. O Made in China nunca foi boa opção.         

   António Araújo