terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Grávidos de Literatura.

. ,


Fasciculus Medicinae, Veneza, 1491

,.
.
..
Há muito que me interrogo sobre a origem da delirante criatividade dos romancistas portugueses: qual será a fonte da fecundidade literária de um António Lobo Antunes ou da sofisticada imaginação de um António Mega Ferreira? Como é que as histórias e as personagens dos livros de Margarida Rebelo Pinto, Maria João Lopo de Carvalho, José Riço Direitinho ou João Tordo terão sido geradas?
Sabemos que para os escritores dos outros países, em geral, a escrita depende do trabalho, da disciplina, da planificação e do método, implica ler e estudar muito (para se nutrirem das mais variadas heranças literárias), exige passar várias horas por dia a escrever (como os campeões de pingue-pongue chineses, que treinam diariamente dez horas). Por isso escrevem e reescrevem, comparam, corrigem, revêem, voltam a rever, cortam, excluem, acrescentam, etc. Há aqueles que se dedicam a observar e a escutar com atenção os outros, que registam os acontecimentos e dão notícia do seu tempo, que viajam, correm daqui para ali, vão a África caçar leões e comem baleia guisada ao pequeno-almoço, tentam alargar as suas faculdades inventivas. Porque, segundo eles, é da experiência da vida e dos seres humanos que nasce a grande literatura. E os escritores portugueses?
Lendo as entrevistas que alguns deles concederam ultimamente, é possível tirar curiosas e invulgares conclusões acerca dos processos da escrita em Portugal. «Porquê José Agostinho de Macedo?», perguntou Paula Moura Pinheiro a Mega Ferreira, autor de Biografia da Infâmia. Resposta: «Por acidente, como eu penso que acontecem com os escritores. Eu não sei se nós escolhemos os temas se os temas nos escolhem a nós». Coisa idêntica se passa com Rebelo Pinto. Questionada pelo Correio da Manhã sobre os novos projectos que tem em mãos, a autora de Sei Lá afirmou: «O mais certo é que um deles me apanhe na curva. São as histórias que nos apanham, e não o contrário». Maria João Lopo de Carvalho, autora de um romance histórico sobre a Marquesa de Alorna, foi mais específica e declarou ao Notícias Magazine que tinha sido escolhida pela própria Marquesa para contar a sua história: «Na eternidade, onde ela está – tenho fé, sou católica –, Leonor escolheu-nos [a ela Lopo de Carvalho e a Maria Teresa Horta] para a estudarmos de maneiras diferentes e complementares». João Tordo, o jovem autor de Anatomia dos Mártires, é de opinião parecida: «No princípio de Dezembro comecei a investigar a fundo a história de Catarina Eufémia. Uma vez mais, temo estar a mentir porque, em abono da verdade, foi a história de Catarina que me começou a investigar». Com as personagens dos livros de José Riço Direitinho passa-se o mesmo. Diana Garrido, do jornal i, perguntou-lhe: «Faz algum esboço das suas personagens e trama?» O escritor foi peremptório: «Não, elas vão aparecendo. Deixo-as entrar». «Como é que dá o nome às suas personagens?», continuou a jornalista. «Baptizam-se elas próprias. Quando chegam é como se já tivessem nome», retorquiu o escritor.
O grande responsável por este frenesi místico é, sem dúvida, António Lobo Antunes (ALA), o Messias da literatura portuguesa pós-25 de Abril. Há anos que o autor de Os Cus de Judas vem dizendo dos seus romances que «parece que estavam ali à espera» e, por isso, «não posso dizer muito bem que sou o autor dos livros» (entrevista ao jornal A Capital, 2004). Mais recentemente, duas semanas atrás, no suplemento Babelia do espanhol El País, ALA insistiu nessa tese: «os livros fazem-se sozinhos […] a mão caminha sozinha».
Trabalho, aprendizagem, disciplina, esforço? Estar aberto a todas as experiências e a todos os riscos? Os escritores portugueses não vão nisso. A literatura, para eles, é uma matéria especialmente imprevisível, resulta do aleatório, é algo inexplicável segundo as leis da natureza, nada tem que ver com o trabalho nem com o método nem com a memória. Neste canto do planeta acredita-se que a literatura é como o Espírito Santo: uma espécie de vento ou sopro. Ou seja, que é mais do Céu que deste mundo. Aparentemente, o único talento específico necessário para escrever livros em português, como aconteceu com a Virgem Maria quando concebeu e deu à luz Jesus, é ser possuído pelo impetuoso espírito da literatura. Por exemplo, Comissão das Lágrimas, o último romance de Lobo Antunes, apareceu-lhe há meses quando estava a descer o estore da sala. ALA sentiu uma reverberação, um repentino arrebatamento de energia. Algo golpeou-lhe a retina e os olhos moveram-se debaixo das pálpebras. Sem conseguir controlar a sua expressão e os músculos faciais, o corpo do escritor português começou a aumentar. O suor correu-lhe pela cara, sentiu uma vertigem. Quando despertou, viu em cima da secretária o novo livro.
Com Mega Ferreira aconteceu algo semelhante: apareceu grávido de Biografia da Infâmia. Enquanto dava o nó na gravata, Mega Ferreira sentiu-se subitamente agitado por um torvelinho interno, os seios aumentaram de volume, a pigmentação da pele mudou, a frequência respiratória e as trocas gasosas elevaram-se, os ligamentos e as cartilagens tornaram-se mais elásticos… Após uma série de contracções da musculatura do diafragma e da parede abdominal, Mega Ferreira expulsou finalmente Biografia da Infâmia. Já Maria João Lopo de Carvalho estava a desenroscar o tubo da pasta de dentes quando foi penetrada pelo romance Marquesa de Alorna. O corpo da escritora começou a segregar substâncias e gases – que causam um cheiro característico, denominado Literatus Spice –, seguido de algumas dificuldades de concentração e de um momentâneo ataque de miopia. Repentinamente, das plantas dos pés começou a sair-lhe um romance histórico.
Que me conste, ninguém aprofundou ainda o que isto encerra de novidade em termos de teoria literária e o que representa no contexto da literatura mundial.


João Pedro George

2 comentários:

  1. Este texto é genial. O que eu me ri. Obrigada! :)
    Cristina

    ResponderEliminar
  2. Este texto é bem ignóbil.

    No referente a António Lobo Antunes, o foliculário deste artigo obviamente não leu as dezenas de entrevistas onde o autor de Fado Alexandrino diz que escreve 12 horas por dia, e em qualquer parte do mundo, quando viaja. Também não deve ter lido as várias queixas dele de que em Portugal raramente se revê. Também não deve ter lido as constantes afirmações dele de que é o melhor escritor do mundo (questionável mas não implausível) porque trabalha mais do que os outros. Também nunca deve ter visto páginas manuscritas de Lobo Antunes, cheias de correcções, rasuras e adições.

    Sim, o homem gosta de falar da mão que faz tudo sozinha; sim, gosta de comparar a escrita a uma árvore que dá frutos, e outras metáforas naturais; mas sabe, ele é um escritor, falar em floreados é o que eles fazem. E para quem começa logo por fazer comparações com literatura mundial, o senhor João Pedro George mostra ignorar que muitos autores estrangeiros se expressam do mesmo modo. Até o Nabokov, obcecado com a perfeição e um revisor compulsivo, acreditava e escreveu defesas da inspiração.

    Se eu quisesse entrevistas analfabetas, sem colorido, com um registo linguístico abaixo do jornalístico, acompanharia os rescaldos dos jogos de futebol, ou então procuraria mais textos de João Pedro George. Mas este basta-me para perceber que não fez o trabalho de casa que devia ter feito. Escarnece muito do que os escritores dizem, mas nada diz do que escrevem. O que me interessa se Lobo Antunes acha que a mão age inconscientemente? Ou que Riço Direitinho não se esforça por encontrar nomes para personagens? Ou que alguns autores deixam que os temas cheguem a eles em vez de os procurarem activamente? O que interessa é o que acaba escrito. As mistificações dos autores sobre a arte da escrita são bastante irrelevantes perante a obra em si. E nunca cheguei a ver em que é que acreditar na mão inconsciente impede Conhecimento do Inferno de ser um grande romance. A não ser que João Pedro George consiga realmente mostrar, com boa sustentação intelectual, que a obra de Lobo Antunes e dos outros não vale nada, e depois relacionar esse facto com a ética de trabalho que discutem (mas se calhar não praticam) nas entrevistas, então este artigo realmente teria algum valor. Como nunca fez isso, este artigo é só uma perda de tempo, algo que escreveu em cima do joelho porque o Malomil precisava de um texto rápido, talvez, e cheio de dor de corno.

    ResponderEliminar