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Millôr Fernandes (1923-2012) |
Entre as coisas que me surpreendem e humilham, figura esta, fundamental, que é a cultura de meus amigos e conhecidos. Não só a cultura no sentido clássico, mas também o conhecimento imediato das coisas e fatos que lhe estão sob os olhos no dia-a-dia da existência. Quem está a meu lado sempre leu mais livros do que eu, conhece mais política do que eu, já esteve em mais países do que eu, já teve mais casos sentimentais do que eu, estudou mais do que eu, praticou e pratica mais esportes. Paro e me pergunto que fiz dos meus anos de vida. Já fui atropelado e sofri alguns acidentes, como explosão, queda e afogamento. Mas entre os acidentados não estou na primeira fila. Tenho vários amigos que já caíram de avião, outros de cavalo, alguns sofreram pavorosos desastres de automóveis, um esteve preso num armário enquanto uma casa (não a dele, é claro!) se incendiava, outro ajudou a salvar o navio Madalena em meio a tremendas ondas que ameaçavam arrebentar sua lancha a todo momento.
Que fiz eu de minha vida? Em matéria de cultura encontro imediatamente quinhentas pessoas, só entre as que eu conheço, que sabem mais línguas do que eu, leram mais, falam melhor e mais logicamente, conhecem mais de teatro e citam com precisão escolas filosóficas, afirmando que tal pensamento pertence a esta e contradiz aquela. Que fiz eu? De esportes ignoro tudo, não sei sequer contar os pontos de vôlei, só assisti até hoje a uma partida de pólo, nunca joguei futebol e quando vou ver esses jogos desse esporte, só consigo reconhecer os jogadores mais famosos. Esqueço o nome de todos, e no domingo seguinte já não sei mais o escore da partida a que assisto neste. Nado mal, corro pedras, jamais consegui me levantar num esqui aquático, não guio lancha, joguei golfe uma vez, tênis seis meses, não entendo de velejar (o que já me causou uma grande humilhação diante de esportivíssimas americanas de quinze anos que me conduziram num passeio lá na terra delas), e, em matéria de mares, nunca lhes sei os ventos e fico parvo com o senso de direção de muitos e muitos de meus amigos que jamais supus tomassem nada de brisa e tufões. Guio, mas o motor de meu carro é para mim um mistério indevassável. Sei apenas abrir o capô e contemplar a máquina, atitude metafísica que até hoje não pôs carro algum em marcha.
Seria eu então um homem dedicado á cultura propriamente dita, aos livros, ao estudo, ao amor da leitura e do pensamento? Não, pois meu pensamento é confuso e minha leitura parca. Conheço homens, dos que não vivem de escrever, que pensam muito melhor do que eu e leram muito mais, sem contar os especialistas, que conhecem livro pelo cheiro.
Entre os que viajam também não sou dos que tenham viajado mais. Com o agravante de que nunca sei bem onde estou, não conheço a distância que vai de Roma a Paris, nem sei se Marselha está ao Sul ou ao Norte da Itália. Fico boquiaberto quando vejo amigos meus apontarem estátuas e falarem sobre os personagens que elas representam com uma facilidade com que falariam de si próprios. Mesmo o conhecimento de nomes, pessoas e fatos adquiridos em viagens eu o esqueço em três semanas. Mas não adianta o leitor querer me consolar, dizendo que talvez eu seja um bonvivã, porque nunca o fui dos maiores, tendo minha vida sido conduzida sempre numa certa disciplina, necessária a quem veio de muito longe. Donde o amigo poderá concluir então que eu sou um trabalhador infatigável, um esforçado, um detonado. E isso também não é verdade porque, com raras exceções, nunca trabalhei demasiadamente e cada vez procuro trabalhar menos, numa conquista ao mesmo tempo prática e filosófica. Bebo? Bebo mal e ocasionalmente. Não sei quando a bebida é boa ou falsificada. Não sei o nome dos vinhos mais triviais e sempre me esqueço qual é o restaurante em que eles fazem um prato que certa vez eu adorei. Por mais jantares a que tenha ido e por melhores alguns lugares que tenha freqüentado, devo sempre esperar que alguém se sirva na minha frente para não pegar o talher errado e o copo idem. Além do que não como muito, nem tenho nenhuma particular predileção por comer. Gosto então da vida calma, sou um praticante da meditação e do ioga? Nunca dos que mais o são. Por outro lado a extrema agitação também não me é familiar.
Que fiz da minha vida? Quando há um acidente de rua, vem-me o pavor de tomar partido, pois nunca tenho realmente a convicção do lado certo. Se fala o mais poderoso eu sou inclinado a ficar de seu lado por uma tendência a defender os que hoje são mais comumente acusados de todos os males, vítimas do tempo. Se fala o mais humilde sinto-me inclinado a defendê-lo por um ancestralismo que me faz seu irmão, por idéias arraigadas que fazem com que todo homem queira lutar instintivamente pelo mais fraco. Por quê? Não sei. Sou bom de guardar nomes, caras, datas? Já disse que não. Sempre esqueço o nome dos conhecidos e troco o dos amigos mais íntimos num fenômeno parifásico que só a loucura mesma explicaria ou então a bobeira nata que Deus me deu. E política meu conhecimento chega ao máximo de saber que o Sr. Plínio Salgado pertence ao PRP, o Brigadeiro à UDN e Jango ao PTB e creio que há alguns outros partidos também. Mas mesmo essas convicções não são inabaláveis e, se alguém me pegar desprevenido e fizer dessas letras e nomes outras combinações, lá vou eu a aceitá-las, embrulhado e tonto, até que outro interlocutor crie para mim novas combinações e novas confusões.
Mas peguem um puro e simples crime e eu nunca sei quem matou a empregada e em meu peito jamais se chegou a criar uma suspeita sólida a respeito do poeta de Minas. Isso, aliás é o máximo a que vou – sei que houve um crime em Minas Gerais, alguém matou alguém. O morto não está na lista de minhas lembranças, não sei de quem se trata. Sei que o indiciado assassino é um poeta, vi sua cara barbada e meio calva em muitos jornais e revistas. Mas meus conhecidos sabem de tudo. As mulheres de meus conhecidos então nem se fala. Que fiz eu de minha vida? – me pergunto de novo, honestamente, com a surpresa e a amargura com que o Senhor perguntava: “Caim, que fizeste de teu irmão?” Pois boêmio não sou, embora tenha gasto milhares de noites solto pelas ruas. Mas os boêmios me consideram um arrivista da boemia assim como os homens cultos me consideram um marginal da cultura. E os esportistas a mesma coisa com relação aos parcos esportes que pratico. Todos com carradas de razão.
E nem a maior parte do meu tempo foi gasta em conquistas amorosas, pois nesse terreno o Porfírio Rubirosa, se me conhecesse, me olharia com o mesmo desprezo com que me olham conhecidos galãs nacionais.
Dessa mente confusa, dessa existência confusa, dessas mal-traçadas-linhas de viver creio que só resta mesmo uma conclusão a que durante anos e anos me recusei por orgulho e vergonha – sou, por natureza e formação, um humorista.
Millôr Fernandes
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