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A obra de Artur Gonçalves e o corpus conceptual que convoca têm sido objecto de abundantes abordagens pela ensaística pós-estruturalista contemporânea. Sem impugnar a legitimidade dessas aproximações, nem sempre convergentes, considera-se que a perspectiva de análise deve ser recentrada de modo a não impor, como até aqui, uma leitura que hegemonicamente sobrevaloriza a Weltanschauung pimba de Gonçalves, obnubilando propostas que, apesar de minoritárias, iluminam, a seu modo, a compreensão de uma tendência estética que o fadista da Musgueira assume, desenvolve e prolonga.
Uma panorâmica do state of the art das interpretações da obra de Artur Gonçalves (de Gilles Deleuze a Stanley Cavell, passando por D. Januário Torgal Ferreira) permite surpreender, inquestionavelmente, o domínio de um paradigma hermenêutico em que o kitsch se assume como lugar central, ou mesmo tirânico. Pelo menos, esse tópico tem adquirido o estatuto de eixo ou fulcro rotativo em torno do qual se desenvolvem e articulam até mesmo as releituras de Gonçalves assumidamente alternativas ao cânone.
Num empreendimento saudável, mas não isento de riscos, a hermenêutica encetada por Queiroz (Queiroz: 2006) pretende introduzir uma ruptura mitigada com o modelo de interpretação da obra de Gonçalves, avançando uma reproposta analítica que confere uma centralidade, porventura excessiva, à textura linguística de trabalhos como «Não Passes Mais Com Ele Na Musgueira» e «Tira, Mete e Tira». Nesta reproposta de Queiroz, que tem vindo a conquistar insuspeitadas adesões (v.g., no âmbito da teoria queer), os níveis de significação são múltiplos e poliédricos, e evocam uma pluralidade de sentidos que assume a inflação sígnica como referente explicativo da densidade métrica e rítmica da obra de Artur Gonçalves. Trata-se, indubitavelmente, de uma perspectiva original, diríamos mesmo invulgar, que reconstrói o olhar sobre Gonçalves, reapropriando-se de elementos do paradigma dominante (a metáfora, a metonímia, os tropos, as isotopias) mas pondo em causa a sua hegemonia.
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Esta reconceptualização de «Não Passes Mais Com Ele Na Musgueira» (ou de «O Telegrama da Minha Sogra») permitirá alcançar, muito provavelmente, uma sintonia mais fidedigna com o facto-homem ou, numa formulação menos ambiciosa nos seus pressupostos, com a trajectória pessoal e artística de Artur Gonçalves, patente, desde logo, na exaltação introspectiva da sua fons et origo biográfica: «Eu fui um pé descalço na Mouraria e a minha mãe vivia numa barraca em Campolide. Eu gostava muito de fado mas não sabia cantar. Só que como eu era muito brincalhão e estava sempre a reinar e um dia disse: Eh pá, vou cantar"» (Gonçalves, 2006). Sendo este o momento fundador do linguistic turn de Gonçalves, a amplitude do contributo da sua música (e da carga semiótica que lhe subjaz) não é, todavia, perceptível sem um approach mais desprovido de pré-compreensões ideológicas ou militantemente vanguardistas. Com esta afirmação, sublinhe-se, não pretendemos negar o valor icónico de Artur Gonçalves no contexto de um processo de industrialização do gosto, nem tão-pouco rasurar as virtualidades heurísticas de uma abordagem centrada no objecto-disco. Questiona-se essa abordagem – e essa hermenêutica – na estrita medida em que a mesma emerge intersectada por um movimento de reificação que não é interpelado nos seus fundamentos teoréticos. Daí o impasse contemporâneo nos estudos sobre Artur Gonçalves, um fenómeno que começa a desenhar-se já em meados dos anos 90 mas que só agora adquire expressão plena, quer na Europa, quer nos Estados Unidos (com a possível excepção de Berkeley). Reconhecendo o carácter polemizante desta afirmação, entendemos que a perspectiva da reificação acaba por perder de vista factos decisivos e adquiridos, já que o corte epistemológico do fadista deve ser situado – ponto que é consensual na literatura – no segundo semestre de 1974. É certo que Gonçalves já explorava, exaurindo-as, as potencialidades epistémicas do détournement em «Não Passes Mais Com Ele Na Musgueira» (1973), num processo criativo cuja ambivalência de sentidos o autor explicita em entrevista de 2006: «Eu nunca cheguei a conhecer essa marreca», refere. Contextualizando o episódio/pretexto num ensaio de 2006, Bruno Castanheira afirma: «"Não passes mais com ele na Musgueira" debruça-se sobre o caso de um ciumento que difama a ex-mulher por esta ter passado com outro à frente de sua casa. É ficção, uma tragicomédia. "Isso ia dando um caso em tribunal", lembra o artista. Tudo porque nessa mesma altura, houve um caso real de um casal da Musgueira que se separou. E a letra, que numa perspectiva marialva enxovalha a mulher, foi acusada de inspiração realista: "Meteu-se-lhe na cabeça que o homem tinha vindo falar comigo e que eu estava a cantar sobre ela", conta o fadista. Mas depois tudo acalmou: "Eu nunca cheguei a conhecer essa marreca".» (Castanheira: 2006).
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O dispositivo metafórico prolonga-se – e amplifica-se – no período pós-revolução, com trabalhos como «Ser Fascista» ou «Vamos Dar Caça à PIDE». Neste último projecto, o questionamento do paradigma securitário é feito através de uma elipse de duplo sentido, imageticamente figurada na capa do vinil, em que Gonçalves se apresenta como Doppelgänger dos agentes da polícia política do fáscio-autoritarismo, envergando uma farda em cor branca e uma arma de plástico. Evoca-se, a este respeito, uma genealogia familiar de resistência à Ditadura vigente, premonitória da iconoclastia (estética, política, sexual) de Gonçalves: «Esse disco é de 74, depois do 25 de Abril. A fotografia foi ali no Martim Moniz e é rapaziada conhecida da Mouraria. Eu disse: "Eh pá, é só para estar aí um bocado, façam de conta que são gajos da PIDE". Eu não cheguei a ter chatices com a PIDE mas a minha mãe teve - e depois eu danei-me quando cantei». No jogo de espelhos em que a narrativa se entrecruza com a biografia, este é também o momento de maior envolvimento cívico-político de Artur Gonçalves, engajamento sartriano que associa, por um lado, a denúncia de um pretérito imperfeito colectivamente partilhado (a obra mais exemplificativa do projecto é «Bacalhau Tenreiro») e, por outro, um esforço de participação activa no plano temporal, despojado de conotações metafísicas ou referenciais transcendentes.
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O assumir da imanência é feito de forma abrupta, mas não menos identificado com o objecto do heideggeriano Ser-em-devir: «Andava sempre nas manifestações para correr com aqueles filhos da…», assinala Gonçalves (Gonçalves, 2006). Trilham-se, então, caminhos próximos de um neo-realismo tardio, matizado de estruturalismo, que todavia repeliu o contributo de Gonçalves («O PCP pôs-me logo de lado»). A partir daí, verifica-se uma recentragem do sujeito em acção, e da sua obra, num arco que reentra mais proximamente o poder instituído («Na ala esquerda do PS») sem, contudo, condescender com a estratégia de dominação que aí vai indelevelmente inscrita. A recusa dessa estratégia pontua vários momentos da obra de Gonçalves, a qual desafia, por isso, o simplismo da rotulagem «canto de intervenção». Com efeito, é possível sustentar, sem receio de exagero, que Artur Gonçalves se situa numa linha de intervenção permanente e também permanentemente contígua à realidade, o que o afasta, de forma decisiva e inequívoca, das flutuações formais dos «cantautores». Gonçalves é sempre um cantor de intervenção, pois nele a música é construída, em transversalidade decerto, mas com um insofismável propósito de enaltecer e suscitar intervenção, a qual é situada num plano imediatamente cognoscível, porque imediatamente corpóreo (veja-se «Tira, Mete e Tira» ou «Dói ou Não Dói», e também «A Tua Fome»).
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O dispositivo metafórico prolonga-se – e amplifica-se – no período pós-revolução, com trabalhos como «Ser Fascista» ou «Vamos Dar Caça à PIDE». Neste último projecto, o questionamento do paradigma securitário é feito através de uma elipse de duplo sentido, imageticamente figurada na capa do vinil, em que Gonçalves se apresenta como Doppelgänger dos agentes da polícia política do fáscio-autoritarismo, envergando uma farda em cor branca e uma arma de plástico. Evoca-se, a este respeito, uma genealogia familiar de resistência à Ditadura vigente, premonitória da iconoclastia (estética, política, sexual) de Gonçalves: «Esse disco é de 74, depois do 25 de Abril. A fotografia foi ali no Martim Moniz e é rapaziada conhecida da Mouraria. Eu disse: "Eh pá, é só para estar aí um bocado, façam de conta que são gajos da PIDE". Eu não cheguei a ter chatices com a PIDE mas a minha mãe teve - e depois eu danei-me quando cantei». No jogo de espelhos em que a narrativa se entrecruza com a biografia, este é também o momento de maior envolvimento cívico-político de Artur Gonçalves, engajamento sartriano que associa, por um lado, a denúncia de um pretérito imperfeito colectivamente partilhado (a obra mais exemplificativa do projecto é «Bacalhau Tenreiro») e, por outro, um esforço de participação activa no plano temporal, despojado de conotações metafísicas ou referenciais transcendentes.
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O assumir da imanência é feito de forma abrupta, mas não menos identificado com o objecto do heideggeriano Ser-em-devir: «Andava sempre nas manifestações para correr com aqueles filhos da…», assinala Gonçalves (Gonçalves, 2006). Trilham-se, então, caminhos próximos de um neo-realismo tardio, matizado de estruturalismo, que todavia repeliu o contributo de Gonçalves («O PCP pôs-me logo de lado»). A partir daí, verifica-se uma recentragem do sujeito em acção, e da sua obra, num arco que reentra mais proximamente o poder instituído («Na ala esquerda do PS») sem, contudo, condescender com a estratégia de dominação que aí vai indelevelmente inscrita. A recusa dessa estratégia pontua vários momentos da obra de Gonçalves, a qual desafia, por isso, o simplismo da rotulagem «canto de intervenção». Com efeito, é possível sustentar, sem receio de exagero, que Artur Gonçalves se situa numa linha de intervenção permanente e também permanentemente contígua à realidade, o que o afasta, de forma decisiva e inequívoca, das flutuações formais dos «cantautores». Gonçalves é sempre um cantor de intervenção, pois nele a música é construída, em transversalidade decerto, mas com um insofismável propósito de enaltecer e suscitar intervenção, a qual é situada num plano imediatamente cognoscível, porque imediatamente corpóreo (veja-se «Tira, Mete e Tira» ou «Dói ou Não Dói», e também «A Tua Fome»).
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A ideia não é infirmada pela emergência de sinais (presságios?) do desconstrutivismo provocatório de Gonçalves já em trabalhos do período pré-1974 (revolução de 25ABRIL, em Lisboa, e primeiro 1º de Maio74, igualmente em Lisboa). Poderemos, inclusivamente, encontrar indícios dessa coerência de percurso em «As Cassetes», baseada em factos ocorridos no Outono de 1973.
Na conhecida análise da obra de Gonçalves, realizada por Cristiano Pereira, «As Cassetes» assentam na experiência-vivida de alguns jogadores do Sporting que, em 1973, quando se deslocaram ao Reino Unido para uma partida com o clube Suderland, foram apanhados numa loja a furtar cassetes, um objecto pouco comum no Portugal cinzento do salazar-caetanismo. Tomando o episódio como pretexto para uma digressão mais vasta sobre os mecanismos da deviance e as técnicas de neutralização da culpa, Artur Gonçalves articula um argumento moderadamente subversivo nos seus propósitos de contestação, aqui situados no pólo fascismo/antifascismo mas, de igual sorte, na contraposição gamanço/não-gamanço. É o desvelar dos interditos e dos não-ditos do regime que se prolonga e propaga na crítica ao modelo demo-liberal de Estado de partidos (Parteienstaat) de tipo burguês, remetendo para uma metanarrativa ácida e subversiva em que o fado da Mouraria se desenvolve apoiado num simulacro braudillardiano eivado de uma constelação de metáforas desarmantes (cfr. «Dói ou Não Dói» ou, mais explicitamente ainda, «Bebe Vinho, Meu Bem, Bebe Vinho»). O culminar desta deambulação retórica situa-se claramente em «Chula dos Partidos» (e, porventura, em «Fadinho Tachista»).
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Iconograficamente, o apuramento visual indicia, no despojamento formal, um propósito de silenciamento do artifício e do acessório. A Cristiano Pereira, um dos especialistas mais próximos do Autor, confidenciou Gonçalves a ratio essendi do casaco utilizado na imagem que serve de capa a «Tira, Mete e Tira»: «Esse casaco foi comprado na Praça da Figueira, logo a seguir ao 25 de Abril; entrei numa loja, vi esse casaco e disse "Hey pá!”». O tópico é retomado a propósito da capa de «Ser Fascista»: «Este casaco de veludo foi comprado em Amesterdão em 1974. Dei lá muitos concertos. A KLM dava-nos os transportes e as associações pagavam os hotéis. Recebia muito bem por cada espectáculo: era o dobro do meu ordenado. No meu emprego recebia oito contos e tal; nos concertos da Holanda pagavam-me entre 15 a 20 contos».
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A instauração do simulacro, mesmo quando circunscrita a um plano meramente imagético, suscita e adensa perplexidades que Gonçalves incorpora dinamicamente no seu acervo, relegando para um momento posterior a explicação da realidade factual, em toda a sua crueza. Há vestígios dessa estratégia no modo como justifica a imagem de capa de «Não Passes Mais Com Ele na Musgueira»: «Isso não é na Musgueira, é ali perto da Avenida de Ceuta, junto dos autocarros para a Costa da Caparica. O fotógrafo disse-me: Eh pá, escusamos de ir para Musgueira só para tirar uma fotografia - vamos ali a umas casas velhas. Quando lá cheguei disse-lhe: Hey lá! Não podias ter arranjado melhor!". E como lá na Musgueira ninguém conhecia, perguntavam todos: "Eh pá, mas que raio de barraca é esta aqui na Musgueira?"» (Castanheira, 2006).
Encontramos igualmente uma estratégia de reapropriação da realidade, numa lógica com algumas afinidades com os quadros teóricos do Situacionismo. Ainda que se trate de uma proposta interpretativa meramente provisória, cremos que a mesma é escorada em exemplos como «A Bronca de Moscavide». Cristiano Pereira, de novo: «A malta de Moscavide apanhou um PIDE e está indecisa entre queimá-lo vivo numa fogueira ou passá-lo a ferro com o tractor do Zé Galo. Artur revela: "A Bronca de Moscavide foi uma notícia. Foi mesmo verdade. Eu aproveitava as notícias para brincar com as notícias. A notícia vinha de uma maneira e eu dizia a mesma notícia com palavrões mais rascas. Mas esta linguagem era aceitável"».
Os trabalhos mais recentes de Artur Gonçalves situam-se claramente na linha iniciada em 1973 com «Não Passes Mais Com Ele na Musgueira». É de destacar, por todos, «Álcool, Tabaco e Outras Drogas: Concepções de Professores e Alunos do Ensino Básico e Secundário e Análise de Programas e Manuais Escolares», apresentado em 2008 como dissertação de doutoramento no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho e disponível aqui.
António Araújo
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Bravo! Qual Barthes qual carapuça! (smile)
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