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Um pouco por toda a Europa, as mulheres também começaram a estar presentes no encontro entre a arte e a ciência. No desenho de história natural, destacamos o trabalho de Maria Sibylla Merian (1647-1717) que, sendo coleccionadora de espécimes de história natural, produziu inúmeras “naturezas-mortas” científicas. As expedições e investigações científicas que a levaram ao Suriname, colónia holandesa, foram inseparáveis do seu trabalho de desenho de plantas e insectos, arte que ensinou à sua única filha. Algum tempo depois, encontramos o exemplo de uma mulher a produzir uma outra forma de arte científica que, fundindo a escultura com a medicina, criava modelos anatómicos em cera. Anna Morandi Manzolini (1714-1774), frequentemente incluída na genealogia de mulheres artistas bolonhesas, casou-se com um especialista em esculturas de cera para uso médico, e logo se notabilizou nesta arte muito popular na Itália do século XVIII. As suas mãos hiper-realistas, a mostrar as diferenças musculares entre uma mão em repouso e outra em tensão, conseguem revelar uma teatralidade do gesto sem renegar a sua utilidade científica. A sua vasta produção escultórica de fragmentos anatómicos, revelando o exterior do corpo ou o seu interior, expondo aquilo que os olhos não vêem, culmina com um auto-retrato em cera que se poderia considerar um dos mais curiosos exemplos de auto-representação artística. Morandi esculpe-se a si própria no acto de abrir um cérebro humano com o seu bisturi, provavelmente para explicar os mistérios da anatomia cerebral aos seus alunos da Universidade de Bolonha. Ela identifica-se, simultaneamente, como sendo a mulher de ciência e a artista, que se reproduz a si própria de forma hiper-realista. Só a cera, utilizando as possibilidades quer da pintura, quer da escultura, conseguia alcançar esta verosimilhança, para a qual, depois, contribuíam outros adereços, como o uso de tecido para criar o vestido que cobria a carnação ou mesmo a implantação de cabelo verdadeiro. Além de se esculpir a si própria, Morandi também esculpe o seu marido, companheiro nesta mesma arte, mas, curiosamente, não o representa com as marcas da profissão. Ele surge representado apenas como um homem, ela é uma mulher, mas é também quem tem a faca e, neste caso, o cérebro, na mão.
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Poderíamos comparar este auto-retrato com tantos outros, nos quais as mulheres artistas se representam no gesto de pintar ou, pelo menos, com os adereços da arte. Contudo, Morandi, não se apresenta a esculpir uma das suas muitas “mãos” ou os seus fetos no interior do útero materno, nem mesmo um cérebro humano. Apresenta-se, sim, no labor de anatomista que, imbuída do saber sobre o corpo, o transmite aos seus alunos de uma forma prática e visual, mostrando-lhes um cérebro “verdadeiro”. Os observadores do auto-retrato de Morandi, são, assim, convidados a ocupar o espaço dos aprendizes da arte e da ciência que ela dominava – estão simultaneamente a assistir a uma representação da dissecação de um cérebro verdadeiro, realizada por Morandi, e a observar a reprodução material do cérebro em cera que também era o ofício da mesma pessoa. Num só gesto, o cérebro funciona como objecto e como representação do objecto, enquanto Morandi se apresenta tanto no papel de anatomista (com o objecto) como no de artista (com a reprodução do objecto), num jogo de representações que poderia ser comparado ao que Velázquez também realizou nas suas Meninas.
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O auto-retrato de Morandi deve também ser visto no contexto de uma tradição de máscaras, bustos e retratos em cera que se desenvolveu desde a Antiguidade e que teve uma grande visibilidade em determinadas zonas geográficas e em determinados períodos. Em Portugal, por exemplo, existe notícia da portuense Maria Josefa Angélica que, também no século XVIII, se dedicava à escultura de retratos em cera. Com raras excepções, a história da arte não se tem debruçado sobre estes objectos, talvez porque as suas categorias tradicionais, privilegiando certos materiais e formas de representação, não consideraram a cera como um material artístico. .
São inúmeras as colecções setecentistas italianas de ceras anatómicas, constituídas para uso da medicina. Além da colecção universitária bolonhesa do Palazzo Poggi onde se encontra a obra de Manzolini, poderíamos referir o museu florentino La Specola que, tendo nascido no contexto do ensino universitário da anatomia no século XVIII, hoje continua ligado à universidade de Florença.
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Foi publicada recentemente uma biografia de Manzolini: Rebecca Messbarger, The Lady Anatomist. The life and work of Anna Morandi Manzolini (Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 2010). Sobre ela, poderá consultar-se igualmente o estudo de Angela Ghirardi, “Women artists of Bologna: the self-portrait and the legend from Caterina Vigri to Anna Morandi Manzolini (1413-1774)”, Lavinia Fontana of Bologna, pp. 45-47. Filipa Lowndes Vicente
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