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Lee Miller, Leipzig, 1945
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Aqui, no Malomil já a voz sábia de João Medina falou de Lee Miller (1907-1977), modelo e musa de artistas, nome grande da fotografia. E o meu amigo José Navarro de Andrade também abordou em público a deslumbrante Elizabeth Miller, com muito sucesso (aqui). Como Lee Miller também me interessa, lembrei-me de contar uma pequena história.
Então é assim:
Depois de ter sido responsável pela morte de milhões de seres humanos, a elite nazi decidiu acrescentar mais uns quantos cadáveres à sinistra contabilidade de 39-45, suicidando-se com germânica aplicação. Hitler, Himmler, Goering e tantos outros optaram por dar cabo da vida – e, em muitos casos, da vida dos seus familiares. Os pormenores do suicídio da família Goebbels são macabros, como sabem. Mas não só os principais dirigentes do III Reich enveredaram por esta solução final. O suicídio foi um fenómeno vulgar entre os escombros do Reich (em muitos casos, mulheres violadas pelos exércitos soviéticos; mas também muitos se mataram nos sectores britânico e americano). O livro Suicide in Nazi Germany, de Christian Goeschel, traz as estatísticas e ensaia uma interpretação. Vamos apenas a factos e números. Para esclarecer, desde logo, que os alemães e os austríacos (estes, então, em proporções esmagadoras) sempre se suicidaram muito mais do que franceses ou ingleses (dados do período 1919-1930). Esta tendência suicidária, aliás, já remontava a finais do século XIX, pelo menos. Daí que seja duvidosa a explicação que atribui os suicídios alemães e austríacos aos traumas da Grande Guerra ou à crise dos anos vinte. Ainda assim, houve uma tendência crescente do número de mortes voluntárias de 1919 a 1933. Homens, sobretudo. Em 1939, no início da 2ª Guerra, o número de suicídios era praticamente idêntico ao registado em 1932. De 1941 para 1942, por razões compreensíveis, há uma subida terrífica dos suicídios de judeus em Berlim. Durante a 2ª Guerra, o número de suicídios de berlinenses mantém-se estável: as mortes voluntárias de 1944 são praticamente iguais às de 1938. Mas, chegando a 1945, há um salto assustador. Na capital do Reich, de uma média de cerca de 50 suicidas por 100.000 pessoas, passamos para 250/100.000. Abril foi, como sempre, the cruellest month: praticamente 4.000 berlinenses puseram termo à vida nesse mês de 1945. Vinte vezes mais do que no mês anterior.
O fenómeno não se circunscreveu a Berlim, como é evidente. Por toda a Alemanha existiram milhares de casos de homens que se mataram, de Brünnhildes louras que seguiram o exemplo da sua homónima em Götterdämmerung de Wagner. Pertencendo ou não ao domínio do fantasioso, pululam histórias de arrepiar. Diz-se aqui que, na última apresentação da Filarmónica de Berlim – ironicamente, Götterdämmerung... –, foram distribuídas pela plateia pílulas de cianeto de potássio. O crepúsculo dos deuses.
Numa biografia de Lee Miller – para mim, uma das suas melhores biografias, da autoria de Carolyn Burke –, refere-se que em Leipzig um industrial ofereceu um jantar para mil pessoas. Quando chegou a notícia que os G.I.’s americanos tinham entrado na cidade, premiu um botão debaixo da mesa de jantar e fez explodir todos os convivas.
Pois foi também em Leipzig que Lee Miller captou uma das suas mais célebres imagens, a da filha suicidada do burgomestre da cidade. Nuns lados dizem que era o burgomestre, noutros que era o tesoureiro da edilidade, noutros que era um alto funcionário local que reuniu a família próxima para um suicídio colectivo. Pai, mãe e filha. Triplo suicídio em Leipzig.
Sobre este triplo suicídio, existem imagens de Lee Miller, trabalhando para a Vogue, e de Margaret Bourke-White, da Life, outro nome grande, enorme, da História da Fotografia, também já abordado aqui no Malomil. É quase um lugar-comum nos escritos sobre estas imagens discorrer acerca do modo distinto como Lee Miller e Margaret Bourke-White captaram a cena macabra. Bourke-White, optando por uma abordagem à distância, agira como uma “repórter” pura, sem rodeios e artifícios, sem encenações. Lee Miller, ao invés, estaria muito marcada pelo seu passado no mundo da moda e pelo retratismo de Man Ray, de quem foi musa e modelo. Por isso, teatralizou a imagem, compôs o cenário. Para esta diferença de perspectivas teria contribuído também, digo eu, os distintos perfis e públicos-alvo das revistas para que ema e outra trabalhavam: Miller para a mais “frívola” Vogue; Margaret para a Life, mansão histórica do fotojornalismo straight. A partir daí, tecem-se grandes considerações sobre o “intimismo” que Lee Miller alcançara ao fotografar os corpos de perto, o envolvimento emocional com o objecto retratado, o facto de as mulheres, mãe e filha, parecerem estar a dormir, porventura o sono eterno. Chega-se ao ponto de falar das semelhanças físicas entre a rapariga suicidada e a linda, maravilhosa, Lee Miller. Esta, atenta aos pormenores físicos, ficara fascinada com a dentição da jovem morta: “extraordinarily preety teeth”, disse Lee Miller.
Enfim, é esta a versão que corre, dita até pela boca dos mais reputados especialistas, de grandes críticos de renome... A biógrafa de Miller, Carolyn Burke, também alinha por este diapasão, por bandas da página 254 do seu livro. Bourke-White retratara a cena de longe, Miller escolhera o close-up. Ao contrário da sua colega de ofício, fotografara os mortos colocando-se ao mesmo nível, não a partir de cima. Com isto, obteve uma imagem poderosíssima da filha do burgomestre de Leipzig. Jazendo num sofá de cabedal, a rapariga, jovem e de cabelos louros, era uma metáfora da Germânia aniquilada. Há quem afirme que o retrato se assemelha a uma fotografia de moda. Tão poderosa é essa imagem, um dos ícones da fotografia do século XX, que figura na capa do livro, atrás citado, sobre os suicídios na Alemanha nazi.
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Eu peço humildemente desculpas por me vir intrometer no que dizem e escrevem grandes nomes da crítica fotográfica. Se me estou a equivocar, peço desde já desculpas. Em todo o caso, parece-me que a história está mal contada.
As fotografias que geralmente se comparam são estas: à direita as de Lee Miller, à esquerda as de Margaret Bourke-White.
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Leipzig, 1945.
Margaret Bourke-White (fotografias da esq.)
Lee Miller (fotografias da dir.)
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Mas, além destas, há outras imagens. Para já, importa dizer que o gabinete do burgomestre ou tesoureiro de Leipzig foi palco de uma devassa completa: soldados americanos a andar por ali, a fotografar, um tropel de gente.
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.....Depois, há um ponto importante. Afirma-se que Miller encenara a fotografia, colocando no chão um retrato de Hitler, para, algo puerilmente, adensar o dramatismo da cena e assinalar o local onde a imagem fora captada. Disso, não há dúvida. Nas suas imagens, de facto, está lá o retrato do Führer, nas de Bourke-White não está. Na altura, note-se, a ética do fotojornalismo não condenava estas coisas. Pelo menos, não condenava com a veemência dos nossos dias. E que Miller criava o décor disso não há dúvida. O seu companheiro nestas andanças – e, até certo ponto, mentor –, outro grande nome, David Scherman, admitia sem problemas que as fotografias poderiam ser encenadas, o cenário ajeitado para obter o efeito pretendido. Lee Miller ajudou, vezes sem conta, Dave Scherman a “inventar” imagens (era o termo usado!), numa abordagem a que chamavam “foto-dramatização”.
Lee Miller, Leipzig, 1945. O retrato de Hitler colocado no chão
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O exemplo mais acabado desta encenação – que, note-se, nada tinha de censurável para os padrões da época – é uma fotografia igualmente famosa, em que Lee Miller aparece nua, a tomar banho, na banheira da casa de Hitler em Munique. Basta observarmos a fotografia, conhecidíssima, para percebermos que de novo lá está um retrato do Führer, estrategicamente colocado, que a estatueta provavelmente deu entrada em cena pelas mãos de Scherman e de Miller, e que aquelas botas da tropa junto à banheira são demasiado perfeitas para o enquadramento. Quase de certeza, o uniforme e as botas foram colocados intencionalmente para dar um "toque" à imagem.
Lee Miller na banheira de Hitler. Munique, 1945
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Um ângulo ligeiramente diferente, imagem menos conhecida
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Há outra fotografia de Lee Miller que também parece acusar a marca de uma composição teatral. De novo, na imagem, um retrato desfeito do tirano Adolfo.
Lee Miller, Dead Volksturm General, Leipzig, 1945
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Simplesmente, e ao contrário do que se anda por aí a propalar, com densas e doutas interpretações, Margaret Bourke-White também captou close-up’s da família voluntariamente defunta do burgomestre Alfred Freyburg (há quem diga que se trata de um "Dr. Lisso"). Portanto, cai por terra a tese clássica e consagrada, a interpretação hegemónica segundo a qual Lee Miller se aproximara dos corpos e Margaret-Bourke-White preferira manter as devidas distâncias, criando um cordon sanitaire entre ela e o objecto fotografado que lhe garantiria menos “envolvimento”, mais isenção, uma captação de imagens mais imparcial e objectiva.
Imagens de Margaret Bourke-White.
Como se vê, também fazia close-up...
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Agora vamos entrar na hipótese mais arriscada. Ao olhar para as imagens de Bourke-White, interrogo-me se não terá existido aqui também alguma “criatividade” na composição da cena. Pode não ter sido da autoria de Margaret Bourke-White, fotógrafa grandiosa, possivelmente até mais grandiosa do que Lee Miller. Pode ter-se tratado de um movimento do cadáver do burgomestre, que com o passar do tempo acabou por desabar sobre a secretária coberta de pó e cinzas (também o corpo da filha não parece estar sempre na mesma posição). Se repararem, o posicionamento do corpo do morto é diferente. Na primeira imagem, a cabeça, pendente, não toca na secretária e nas mãos; na segunda, a cabeça está tombada sobre as secretária e sobre as mãos. Ambas as fotografias têm a mesma data: 13 de Abril de 1945. A cabeça pode ter tombado entretanto, mas é estranho. Pode tratar-se de uma questão de ângulo de captação da imagem, mas não parece ser o caso. O close-up fica mais "dramático" na forma como Margaret Bourke-White o apresenta. Pelos vistos, Margaret também se aproximava dos objectos que fotografava...
Margaret Bourke-White, Leipzig, 13 de Abril de 1945.
Imagem 1 - a cabeça pendente, sem tocar as mãos
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Tudo isto não envolve qualquer censura a Margaret Bourke-White. Era assim que se fazia na altura. E ainda hoje continua a fazer… Suscito apenas uma mera hipótese, que bem merecia ser investigada pelo olhar penetrante de Errol Morris, de que já falámos aqui e que leva aos limites o trabalho de análise de imagens.
O que não constitui mera hipótese é o facto de Margaret Bourke-White ter, à semelhança de Lee Miller, captado imagens muito próximas dos corpos do burgomestre e da sua desafortunada família. Com isso, desabam por terra as divagações que se fazem, todas muito eruditas, sobre o sentido distinto do trabalho de ambas as fotógrafas: Lee Miller, a retratista envolvida de perto com o objecto fotografado; Margaret Bourke-White, a repórter distanciada.
Lee Miller foi uma personalidade fascinante. Quem sobre ela escreve refere a sua extraordinária beleza física, a marca de ter sido sexualmente abusada enquanto criança, a sua atribulada e muito preenchida vida erótica, o facto de ter convivido de perto (e isto é um eufemismo) com nomes como Man Ray ou Pablo Picasso, o gosto pela boémia, o espírito de indomável liberdade. No final da vida, lamentou apenas não ter sido ainda mais livre no modo como passou por este mundo. Tudo isso é muito interessante, como interessantes são as fotografias que fez antes da guerra. A “solarização” é uma técnica que, possivelmente, deve tanto a Man Ray quanto a Lee Miller. A mim, contudo, o que me mais me interessa, fascina e intriga é a loucura com que mergulhou no coração das trevas. Em Büchenwald, ao deparar-se com um cenário dantesco, feito de pilhas de cadáveres e homens esquálidos, George Patton, general lendário pela sua têmpera de ferro, afastou-se e vomitou. Um assistente religioso, firme nas suas crenças, abandonou o local onde se amontoavam os corpos nauseabundos. Os correspondentes de guerra olhavam de longe os montes de cadáveres. Lee Miller não. Aproximava-se deles, num frenesi insano, e captava imagens dos rostos, das mãos, de pormenores indizíveis. Ao ver o que viu, tornou-se visceralmente anti-germânica. Mas entrevistou e fotografou os guardas dos campos, alguns desfigurados e agredidos pelos presos libertados (só num dia, os detidos mataram cem guardas em Büchenwald). Lee Miller fazia tudo aquilo, aparentemente, com um irreprimível gozo, um qualquer prazer perverso. Dizem que fotografava os campos de extermínio com uma paixão imensa, sabendo, ou não, que aquilo que então fazia iria marcá-la para sempre. O odor a sangue humano não me sai dos olhos – só me ocorrem agora estes versos de Ésquilo, numa tradução muito livre. Depois da guerra, Lee Miller dedicou-se a várias coisas. Na culinária, revelou-se exímia. Nunca mais tirou uma fotografia sequer.
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Para a Angie, e à nossa loucura de fotografar o perigo e o mal
António Araújo
meu caro AAraujo, tu raramente me desiludes, mas agora foi fatal: por favor não voltes a dizer 'então é assim:'antes de contares qualquer coisa. já não consegui ler o teu post......
ResponderEliminar(...post mt bom)o burgomestre não teria caído da cadeira devido a rigidez característica dos cadáveres e não é preciso ser o pinto da costa das morgues para saber isso, agora não se sabe qual seria a posição inicial. será que o cadáver foi inicialmente encontrado na posição fotografada por Margaret Bourke-White e depois teria tombado e lee miller numa acçaõ de composição de cena o teria reposto ? em todo o caso o penteado apresenta-se irrepreensivel, como dizem os vendedores de automoveis. relativamente à posição fotografada por miller, gosto mais e até acho mais dramática - é 'um tombar sobre a mesa' mais derrotado. seria talvez interessante saber qual foi o veneno ingerido e saber por ex se provoca convulsões e contorções...relativamente à questão da criatividade na composição de cena esta é tão só uma qualidade ao alcance dos melhores - tudo é composição de cena - caso contrário trata-se apenas de fotojornalismo.
ResponderEliminarOh! Deus! Não é o Manuel Loff que está naquela secretária?...
ResponderEliminarBelíssimo post (as usual).
ResponderEliminarA mise-en-scene na fotografia não é uma técnica datada. Pelo contrário, marcado por uam época e um estilo é o naturalismo, nascido, precisamente da reportagem fotográfica durante a 2ªGGM. Vê as impressionantes fotos de Gurski (um dos meus contemporâneos favoritos)e repara na extrema mas discreta manipulação.
José Navarro
Obrigado, José Navarro
EliminarUm abraço
António Araújo