A cena era de uma brutalidade incomum. Uma mulher, ajudada por outra, degolava um homem que se debatia, ainda. O sangue escorria, escuro, a contrastar com a brancura do lençol da cama onde o homem fora surpreendido. Não era este, contudo, o contraste que mais chocava, mas o da absoluta serenidade do rosto da mulher que manejava o punhal com a violência do acto que, impassível, executava.
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Lembro-me de achar o quadro perturbador. E de, já a dar meia-volta, espreitar a tabuleta, só para ver quem teria pintado aquilo. Um nome de mulher: Artemisia Gentileschi. A data, 1613. Espantoso. Mas rapidamente, confesso, me distraí, perante a perspectiva de entrar, daí a minutos, no curioso e irresistivelmente outrageous Gabinetto Segreto, um dos motivos que me levara, nessa tarde, ao Museo di Capodimonte, em Nápoles.
Voltei a cruzar-me com o quadro, anos depois. Não já num museu, mas num livro. No surpreendente Vinte Anos e Um Dia, de Jorge Semprún, cuja protagonista, Mercedes, desenvolve uma estranhíssima obsessão com esta Giuditta che decapita Oloferne. A memória daquela tarde e as alusões do livro ao contexto em que teria sido pintado dispararam a minha curiosidade. Procurei. E foi extraordinário tudo o que encontrei.
Artemisia, nascida em 1593, era filha de Orazio Gentileschi, pintor tuscano radicado em Roma. Cedo revelou um excepcional talento e um estilo próprio, bem demarcado do do seu pai, seu primeiro mestre, e fortemente influenciado por Caravaggio, cujo trabalho pôde ainda acompanhar de perto. Tinha 17 anos quando completou o seu primeiro quadro, Susanna e i Vecchioni, em 1610.
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O início da idade adulta de Artemisia ficou marcado por eventos que se reflectiram fortemente na sua vida e obra. Recusada como discípula nas principais academias de arte, por ser mulher, o seu pai confiou a sua formação a um colega, Agostino Tassi. Este, após um longo período de assédio, violou Artemisia, a qual terá, não obstante, acedido num subsequente relacionamento, na expectativa, criada por Tassi, de um reparador casamento. Quando se tornou claro que este não tencionava cumprir tal promessa, Orazio Gentileschi apresentou queixa. Seguiram-se novas e tremendas provações para Artemisia. O julgamento (cujas transcrições chegaram até nós) evidenciou graves antecedentes de Tassi, nesta e noutras matérias (fora julgado e punido pela mesma acusação, relativamente à cunhada, menor, e por ter mandado matar a mulher, com quem casara após idêntico episódio). Porém, e porque a relevância criminal da sua conduta dependia apenas da prova da virgindade de Artemisia à data em que fora atacada, esta viu-se forçada a refutar acusações de devassidão, a submeter-se a exames vexatórios e a ser interrogada sob tortura. Condenado Tassi e restaurada a reputação de Artemisia pelo casamento prontamente ajustado com Pietro Antonio Stiattiesi, também pintor, esta partiu para Florença, em finais de 1612.
E terá sido justamente nesta altura que pintou o impressionante Giuditta che decapita Oloferne. O qual, neste contexto, ganha todo um novo sentido, essencialmente catártico e libertador. Artemisia haveria de voltar ao tema, mais tarde, num quadro idêntico (datado de 1620) e em vários outros retratando distintas cenas do mesmo episódio.
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Os anos de Florença foram de trabalho e de reconhecimento para Artemisia. Teve como patrono Cosimo II di Medici. Conquistou o respeito dos seus pares, tendo sido admitida (nenhuma mulher o fora antes) na Accademia delle Arti del Disegno, em 1616. Bem mais sombrio era o panorama no plano pessoal: a morte prematura de quatro dos cinco filhos nascidos do casamento com Stiattiesi e uma relação tormentosa com este, que preferia o jogo ao trabalho. Cerca de 1621, Artemisia deixou Florença, opção ditada pela morte do seu patrono e pela crescente pressão dos inúmeros credores do marido, que por lá terá ficado. Após vários anos entre Roma, Veneza e Génova, Artemisia fixou-se em Nápoles, em 1830, com as suas duas filhas (a que tivera com Stattiesi e uma outra, natural, entretanto nascida). Aqui viveu novo período de intenso trabalho e de consagração, traduzida em encomendas para pintar, não apenas quadros, mas também retábulos, painéis e interiores de igrejas e de residências. Viajou para Inglaterra, onde permaneceu entre 1638 e 1642 na corte de Carlos I (tendo decorado um dos tectos da Queen’s House, em Greenwich). Pouco se sabe dos seus últimos anos, não havendo sequer certeza quanto à data da sua morte (algures entre 1652 e 1656). Seguiu-se um longo período de obscuridade, durante o qual muitas das suas criações foram erradamente atribuídas a seu pai ou a outros pintores da época. Só recentemente, já em finais do séc. XX, diversas investigações e estudos trouxeram de novo para a luz as suas espantosas vida e obra.
A preponderância que na obra de Artemisia assumem episódios que evocam a violência, explícita ou sugerida, sobre a mulher (Judite e Holofernes, Susana e os Velhos, Sisera e Jael, Corsica e o Sátiro), bem como as figuras femininas fortes, desafiadoras ou em situações-limite (Cleópatra, Judite, Ester, Bathsheba, Lucrécia, Maria Madalena), muitas delas com traços fisionómicos de auto-retrato, fizeram com que durante muito tempo a sua obra fosse encarada e interpretada quase exclusivamente como expressão das sequelas das suas tribulações passadas. Nesta linha, certas análises, de claro pendor feminista, fazem de Artemisia um ícone da female resistance to masculine dominance. Investigações mais recentes tendem, contudo, a atenuar tal abordagem, por ser excessiva e, sobretudo, redutora. E a considerar que a opção de retratar strong and struggling women e, em especial, a perspectiva essencialmente feminina que dos seus quadros se desprende, reflectiriam antes o gosto e a sensibilidade pessoais da própria Artemisia e a sua intensa personalidade – que a terá levado, em mais de uma ocasião, a recusar modificar a sua interpretação do tema para se conformar com o gosto do cliente. Admite-se mesmo que – com excepção da primeira Giuditta che decapita Oloferne – os seus subsequentes retornos ao tema representariam um aproveitamento consciente da fama associada ao julgamento para impor um estilo próprio, de sexually-charged, female-dominant art. Qualquer que seja a tese que se perfilhe, Artemisia foi inquestionavelmente uma sobrevivente, que se não deixou destruir pela violência que lhe foi infligida e uma lutadora que, com esforço e persistência, conseguiu ver o seu talento reconhecido e conquistar um estatuto de paridade com os melhores pintores da sua época, recusando o papel menor (em temas, géneros e obras) que às raríssimas mulheres pintoras era então reservado. E é isto que, junto com a beleza e força da sua pintura, faz dela uma figura extraordinária.
Artemisia Gentileschi, Auto-retrato, 1630
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Joana Vasconcelos
toscano...
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