.
.
.
Nasceu em Abril de 1722, já viúva e com três filhos. Deixou de existir seis meses depois, de forma abrupta e em estranhas circunstâncias, que envolveram uma grande zanga entre dois irmãos, causada pela muita audácia do mais novo e pela crescente insegurança do mais velho.
Mrs. Silence Dogood ganhou notoriedade e uma legião de fiéis e entusiasmados leitores pelas suas cartas que, com cadência quinzenal, o The New-England Courant, de Boston, publicou entre 2 de Abril e 8 de Outubro de 1722. Ao todo catorze, todas metidas, durante a noite, debaixo da porta da redacção do jornal, em Queen Street.
Nelas começou por se apresentar como — são suas, as palavras — “an Enemy to Vice, and a Friend to Vertue, one of extensive Charity and a great forgiver of private injuries, a hearty lover of the Clergy and all good Men and a mortal Enemy to arbitrary Government and unlimited Power”. Declarou-se ainda tão fervorosamente apegada aos “Rights and Liberties of my Country”, que o menor indício de restrição a estes “is apt to make my Blood boil exceedingly”. Last but not the least, assumiu uma “natural Inclination to observe and reprove the Faults of others, at which I have an excellent Faculty” que, avisou, não se coibiria de utilizar. Foi o que fez. E como.
Nas suas cartas, Mrs. Dogood tratou temas variados e, não raro, controversos como a liberdade de expressão, o papel das mulheres (defendendo mais instrução e mais participação destas na vida pública), a hipocrisia religiosa e a corrupção dos governantes, a importância da poesia e dos elogios fúnebres (indicando mesmo os passos a seguir na construção destes), a igualdade de oportunidades no acesso ao ensino (sendo particularmente cáustica com Harvard College, que acusava de elitismo e de falta de qualidade e exigência, formando alunos somente arrogantes e preconceituosos) e, em geral, “the vices of the Town” (do excessivo consumo de álcool à vaidade no trajar, que levava muitos a endividarem-se e à adopção de modas ridículas). Sempre com frontalidade e desassombro, sensatez e ironia. Os seus comentários e opiniões sintonizavam plenamente com o tom critico e satírico dos Couranteers (também conhecidos como Hell-Fire Club), o grupo de colaboradores do The New-England Courant, um jornal independente do governo colonial (terá sido o primeiro, na América) que se destacou — não sem alguns contratempos – pelos ferozes e certeiros ataques que dirigia ao establishment político e religioso, dominado pela comunidade puritana.
Inteligente e arguta, impiedosa observadora dos ways of the world e dotada de um corrosivo sentido de humor, Mrs. Silence Dogood causou quite an impression na Boston de então. Todos — a começar pelos próprios Couranteers — se interrogavam sobre quem seria tão misteriosa e fascinante figura.
Parte desta imensa curiosidade foi satisfeita pela própria Mrs. Silence Dogood que, com notável à vontade, contou ter nascido a bordo de um navio vindo de Inglaterra, ter ficado órfã ainda criança, ter a sua educação sido confiada a um sacerdote de uma pequena comunidade nos arredores da cidade, a “pious good natur’d young Man”. Revelou ainda detalhes do inesperado casamento com este seu tutor (causa de algum espanto e de bastante falatório), com o qual vivera “happily together in the Height of conjugal Love and mutual Endearments, for near Seven Years”.
E, sobretudo, alongou-se sobre a sua inconformada viuvez, já de alguns anos. Que a atingira na força da juventude (“when my Sun was in its meridian Altitude”) e que muito lhe desagradava (it is a State I never much admir’d), pelo que se anunciava desejosa de voltar a casar (“I could be easily persuaded to marry again”) — desde que o pretendente reunisse, claro, a “few good qualities”, a saber, ser “good-humour’d, sober and agreeable”. Esta confissão, aliada à revelação, também pela própria, de que era “courteous and affable, good humour’d (unless I am first provok’d,) and handsome, and sometimes witty”, levou vários arrebatados leitores do Courant a escrever para o jornal, declarando-se dispostos a casar com such lively and charming woman…
O fim inesperado e nunca explicado das suas cartas causou tal consternação nos seus inúmeros e dedicados seguidores que o director do Courant publicou um anúncio, a 3 de Dezembro de 1722 (“If any person or persons will give a true account of Mrs. Silence Dogood, whether dead or alive, married or unmarried, in town or countrey, that so, (if living) she may be spoke with, or letters convey’d to her, they shall have thanks for their pains”) o qual jamais obteve resposta. Porque, na realidade, tal não era possível.
Silence Dogood foi o primeiro dos muitos alter-egos que Benjamin Franklin criou e assumiu ao longo da sua vida (Poor Richard ou Richard Saunders, Henry Meanwell, Alice Addertongue, Timothy Turnstone, Martha Careful, Polly Baker, Busy Body, to name a few). O traço que (para além das experiências que levaram à invenção do pára-raios) mais me encantou quando pela primeira vez li a sua biografia, devia ter uns treze anos. Lembro-me de achar absolutamente irresistível a ideia de Franklin se desdobrar em personagens, com biografias próprias, para escrever e exprimir opiniões mais arrojadas ou controversas, lançar a discussão sobre certo tema ou simplesmente porque isso o divertia. E de me parecer, sobretudo, extraordinária a profusão de aliases femininos — mulheres dignas, articuladas e convincentes, num tempo em que raras teriam instrução ou conhecimentos que as habilitassem a exprimir opiniões susceptíveis de serem atendidas e consideradas.
Quando criou Mrs. Silence Dogood, Benjamin Franklin tinha dezasseis anos e ingressara, pouco tempo antes, como aprendz de tipógrafo no The New-England Courant, fundado, dirigido e impresso pelo seu irmão mais velho, James. Desejoso de se estrear na escrita, admirador da prosa crítica dos Couranteers, mas temendo não ser levado a sério, decidiu tentar a sua sorte, sob falsa identidade. Escolheu fazer-se passar por uma mulher e de meia-idade – o próprio o admitiu mais tarde -, para conferir mais credibilidade e mais contundência às observações que se propunha fazer. O apelido Dogood terá sido uma paródia a Cotton Mather, um reputado padre puritano, que expusera as suas ideias nuns muito divulgados Essays to do Good. Já o primeiro nome, Silence, tanto podia ser uma alusão a outro livro de Mather, Silentiarius: A Brief Essay on the Holy Silence and Godly Patience, that Sad Things are to be Entertained withal, como uma fortíssima sugestão de silêncio ao próprio Mather e a tudo aquilo que este representava de intolerância e de incoerência. O estilo das cartas, esse era claramente inspirado no Spectator, de Joseph Addison e Richard Steele, que o jovem Franklin muito admirava.
A descoberta da autoria das cartas e da identidade de Mrs. Silence Dogood deixou James Franklin muito desagradado. O mais que provável ressentimento perante o êxito do irmão — traduzido nos generalizados apreço e admiração que aquelas haviam suscitado – e o temor de que este lhe fizesse sombra terão sido, porventura, agravados pelo facto de parte das cartas de Mrs. Dogood terem sido publicadas, por indicação do próprio Benjamin, no período de algumas semanas (entre Junho e Julho de 1722) em que James estivera preso (por causa de um editorial que especialmente enfurecera as autoridades) e lhe confiara a direcção do The New-England Courant. A tensão entre os dois irmãos, desencadeada por todos estes eventos e potenciada pela intransigência do mais velho ante a ambição do mais novo, culminou, meses depois, na decisão de Benjamin partir para Filadélfia, para tentar a sua sorte.
Quanto a Mrs. Silence Dogood, sabe-se apenas que terá ficado por Boston. Porque, infelizmente, não voltou a dar ares da sua graça.
Joana Vasconcelos
(originalmente publicado aqui)
Sem comentários:
Enviar um comentário