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Em Dezembro de 1914, o papa Bento XV pediu aos
contendores que aceitassem uma trégua: "Que as armas fiquem em silêncio,
ao menos na noite em que os anjos cantam".
Os beligerantes rejeitaram o apelo, mas os combatentes
não. Calcula-se que cerca de cem mil soldados estiveram, de alguma forma,
envolvidos em cessações de combates e, mesmo, em confraternizações ao longo da
frente.
E não é mito, houve mesmo jogos de algo parecido com
futebol. Não era bem um jogo, conta um dos participantes: havia uma bola, cerca
de cinquenta para cada lado e chutos para a frente - o célebre kick
and rush. Basicamente, trata-se da tática de chutar a bola e correr o
máximo que se possa que deu fama a muitas equipas inglesas de outros tempos. O
jogo, se tal nome se pode dar ao acontecido, terá durado trinta minutos e não
terá havido nem entradas a matar nem lesões sérias entre os participantes. Estavam-se
a guardar para os dias seguintes.
Depois, chegaram ordens para por fim às celebrações e
os oficiais impuseram-se. Houve, mais tarde, quem quisesse refazer o evento
para refazer a história. A II Internacional nunca se recompôs do choque que
teve quando assistiu ao entusiasmo, alimentado por um fortíssimo espírito
nacionalista, com que os operários de todos os contendores seguiram para a
batalha em agosto. Agora, era possível recuperar a ideia de que os soldados
preservavam afinal a consciência operária e o correspondente internacionalismo
proletário. Os malandros dos oficiais, pela brutalidade com que puseram fim à
confraternização, ameaçando com penas fortíssimas, demonstrariam que os
privilegiados é que tinham imposto aos seus homens, à força, uma atitude
guerreira. Na verdade, há inúmeros relatos de participação nas
confraternizações de oficiais, sendo certo que os estados maiores é que
reagiram de forma dura, porque temiam que assim se pusesse em causa o esforço
de guerra.
Aquilo a que se
assistiu nada tinha a ver com consciência de classe. Tinha apenas a ver com a
natureza humana. Muitos anos depois, o cientista social Robert Axelrod – em The Evolution of Competition (1984) – serviu-se justamente deste exemplo
para explicar como, nas situações mais inverosímeis, nascem formas de
colaboração entre os homens. Por outras palavras, Axelrod põe em causa aquilo
que Immanuel Kant designava por “sociabilidade
insociável” dos homens, a inclinação para se agruparem convivendo a todo o
tempo com a tendência para a dissolução da união. No grupo, onde o homem tem de
viver, sentir-se-ia mais homem, mas no isolamento afirmaria a “propriedade
insocial de querer dispor de tudo a seu gosto”. Afinal, cada homem aspiraria
secretamente a viver com os outros como se vivesse sozinho.
Ora, se fosse, assim, a
vida em comum seria altamente improvável. Contudo, nos momentos de necessidade,
o homem revela o seu verdadeiro eu. E esse eu é um nós.
É certo que há sempre quem o procure contrariar, e
quem o faça da forma mais radical, pretendendo fundar-se num comunitarismo que,
de tão arreigado, nega a natureza humana. Na peça do dramaturgo nazi Heinz
Steguweit – Petermann schließt
Frieden oder Das Gleichnis vom deutschen Opfer (Petermann
faz a paz, ou a parábola do sacrifício alemão) –, conta-se a estória de um
soldado alemão que avançou, confiando na contenção dos inimigos em tempo de
advento, e colocou um pinheiro na terra de ninguém, decorando-o com luzes de Natal.
Os espectadores alemães podiam ouvir os belos cânticos alusivos entoados pelos camaradas
dos soldados. De súbito, há tiros e o soldado cai. Mais tarde, os camaradas
encontram o seu corpo e notam, "com horror", que os snipers inimigos tinham feito de cada
luz da árvore de Natal alvo dos seus tiros. Assim se manipulavam os sentimentos
dos alemães em 1933.
Na verdade, pouco interessa o que se disse depois: na
noite de Natal de 1914 os anjos cantaram.
José Luís Moura Jacinto
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