Andrea Smith e Jason Watson. Niagara Falls, 14 de Agosto de 2011.
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Creio
que é de Saramago uma definição da morte que dizia mais ou menos isto,
cruamente: «estás vivo e a seguir não estás». Ao contrário, o gato de
Schrödinger consegue estar vivo e morto ao mesmo tempo. Mas nós não somos
gatos, muito menos gatos quânticos, pelo que se cairmos do alto a morte é
certa, ou quase certa. Vem esta conversa despropositada a propósito de uma
imagem que Raymond Frenken utilizou na abertura de um belíssimo ensaio sobre as
Cataratas do Niagara: «Pictures from the Brink of Love and Death. Niagara
Falls». O texto surgiu num livro recente, fascinante: Objects in Mirror. The Imagination of the American Landscape. Para
os amantes de «Americana» – atenção, José Navarro, isto é para ti! –, o livrinho,
profusamente ilustrado, tem um pouco de tudo: Grand Canyon, Yosemite, Easy Rider, bisontes, Niagara Falls. Estão
lá vários lugares ou ícones que construíram a imagem da América e a projectaram
no mundo, que fizeram o Irresistible Empire de que fala, noutro belo livro,Victoria de Grazia.
Andrea Smith e Jason Watson. Ontário, 16 de Agosto de 2011.
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Regressemos à imagem de Niagara Falls. Mostra, em primeiro
plano, um casal abraçado, na encenação clássica da felicidade a dois: Andrea
Smith e Jason Watson. Foi captada em Agosto de 2011 pelo filho de ambos, Jared.
Uma fotografia familiar, do mais banal que se pode imaginar, com a mãe no
limiar da obesidade e o pai envergando uma t-shirtdo
Batman. Um pouco atrás, vê-se uma mulher magra, envergando um pólo vermelho. De
pé, no parapeito, acima dos outros, contemplando as quedas de água. Michael
Conner, de Maryland, um visitante habitual de Niagara Falls, viu-a subir o
parapeito e ultrapassar a barreira de segurança. Ela e a amiga viam as
cataratas, em Horseshoe Falls, e tiravam fotografias uma à outra, como vulgares
turistas. Numa fracção de segundo, Michael Conner ainda pensou avisá-la: desde
miúdo que ia ali, muitas vezes tinha chamado a atenção de vários turistas mais
afoitos – ou menos conscientes. Pensou alertar a rapariga, mas, desta vez,
ficou calado. Instantes depois, a mulher de vermelho desaparecia no vazio. Era
um Domingo, a meio de Agosto, 14 de Agosto de 2011. A rapariga, Ayano Tokumasu,
de 20 anos, decidira visitar as Cataratas com uma amiga. Estava no Canadá há
poucas semanas, para estudar Inglês. No dia seguinte, foi descoberto um cadáver
não-identificado, mas era de um homem. O corpo de Ayano apareceria quatro dias
depois, confirmou a polícia canadiana. A seguir à Golden Gate, de São Francisco (revejam Vertigo!), as Cataratas do Niagara são o local dos Estados Unidos
onde se regista o maior número de suicídios. Segundo as estatísticas, 20 a 25
pessoas por ano lançam-se da Rainbow Bridge. Mas, curiosamente, são raras as
mortes acidentais. De 1905 até hoje, apenas sete pessoas morreram nas Cataratas
do Niagara devido a quedas involuntárias. No dia seguinte à notícia do
desaparecimento da estudante japonesa, quando o corpo ainda não havia sido
descoberto, Andrea Smith e Jason Watson viram as fotografias que o seu filho
tirara. Perceberam que, muito provavelmente, aquela era a rapariga que
desaparecera no som e na fúria de Horseshoe Falls. Recordaram-se, então, que na
altura lhes acorreu ao espírito o risco que aquela mulher corria e, ao
observarem a imagem, carregam consigo a culpa de não terem evitado a morte. «E
agora temos esta fotografia dela», disse Andrea Smith (ver aqui). Quer Michael Conner, quer
o casal fotografado lamentam não ter feito mais para salvar uma vida e ambos
recordam que, num instante preciso, pensaram no perigo. A fotografia de Andrea e Jason, que deveria servir como lembrança de um
momento bom, ficou para sempre maculada pela presença da estudante suicida.
Ayano Tokumasu não quis, certamente, suscitar a culpa de Michael Conner ou do
casal Andrea e Jason. Muito menos pretendeu manchar a imagem de felicidade que
o filho dos Watson captara. Não foi por sua vontade que apareceu na fotografia,
ainda que obviamente soubesse que estavam pessoas em seu redor e que essas
pessoas, como é praxe obrigatória nos locais turísticos, se fotografavam umas
às outras. Se não tivesse morrido, a sua presença naquela imagem seria fortuita
e banal. Agora, só porque se largou no vazio segundos depois, converteu-se num fantasma
que a máquina conseguiu capturar. Ali, onde a vemos, Ayano Tokumasu está viva,
não passa de uma vulgar turista, igual a milhões. Mas, ao sabermos que se
suicidou, a sua presença adquire outro sentido para quem a
observa ali. Convoca a presença fria da morte, que é incorporada na imagem apenas porque sabemos o que aconteceu depois.
Se tivesse morrido no dia seguinte – num desastre de viação, por exemplo
– nada disto teria este significado. Mas a proximidade à morte – e à morte voluntária,
note-se – é de tal forma intensa que quase somos tentados a pensar que aquela é
a imagem de um cadáver iminente. Há muitos anos, tentaram captar imagens de
fantasmas ou seres invisíveis, que só o dispositivo fotográfico permitiria
desvendar. Em Fotografia e Verdade,
Margarida Medeiros fala-nos em profundidade da optofotografia, da fotografia
espírita, da fotografia de fluidos. Aqui, é diferente. No momento da captação
da imagem, Ayano Tokumatsu estava viva; mas, segundos depois, precipitar-se-ia
na grande queda. Quando a vemos na imagem, está lá, viva, mas no momento em que
olhamos para a imagem, em que a observamos, já não está cá, entre nós. Viva e
não-viva, como o gato de Schrödinger. E, ao atirar-se para as águas, aquela
mulher não ia só. Na sua página do Facebook, aqui, muitos amigos recordam-na. E consigo levou um pouco da felicidade de Andrea Smith e Jason
Watson; paradoxalmente, porque estes encenaram uma felicidade em que a sua
infelicidade também estava presente, mesmo que de forma involuntária e casual. Por
mais solitária que seja a opção de morrer, nunca partimos sós quando decidimos
fazê-lo.
António Araújo
Ayano Tokumasu, fotografia no Facebook, aqui
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Excelente texto. Mas o que o leva a dizer que foi um suicídio? Tudo leva a crer que foi, de facto, um acidente (ainda que estes sejam extremamente raros).
ResponderEliminarObrigado, Ana, pelo seu comentário. Agradeço o elogio (imerecido) ao texto mas, acima de tudo, ter questionado o facto de se ter tratado de um suicídio. É a hipótese mais provável, em que Raymond Frenken se baseia no seu ensaio. Mas deve notar-se que, segundo o próprio Frenken, não há certeza sequer de a rapariga na imagem ser Ayano Tokumasu. Tudo indicia que sim, mas não há certezas absolutas quer sobre a identidade, quer sobre o suicídio. Pelo menos, foi o que apurei na imprensa disponível online que pude consultar. Aconselho vivamente a leitura do ensaio de Frenken, que, no início, fala abundantemente dos suicídios em Niagara Falls.
EliminarCordialmente,
António Araújo