O Diário de Notícias de 18-II-1975,
debaixo do cabeçalho “DECAPITADA A ESTÁTUA/ DE OLIVEIRA SALAZAR/ EM SANTA COMBA DÃO ”,
publicava uma foto do monumento vitimado pela decapitação, relatando em seguida
o acto ocorrido na véspera: “Desconhecidos decapitaram a estátua de Salazar
erigida no largo fronteiro do Palácio da Justiça de Santa Comba Dão, durante a
madrugada de ontem, levando consigo a cabeça de bronze do sinistro ditador que
mergulhou Portugal no obscurantismo que ainda hoje subsiste em muitas regiões.
Testemunhas
tinham visto três indivíduos, que se deslocaram de automóvel, perto da estátua,
cerca das 4h, mas o acto não foi, aparentemente. presenciado por ninguém. O corte,
que se julga, foi efectuado com uma serra eléctrica, dada a sua perfeição. A
«decapitação» foi feita imediatamente acima do colarinho da camisa.
A
estátua do ditador foi colocada no local em 1965, aquando da inauguração do
Palácio da Justiça, por iniciativa do então ministro Antunes Varela, e não é a
primeira vez, depois do 25 de Arbil, que é alvo de acções diversas. Para além
de epítetos pintados no pedestal, já foi coberta de tinta vermelha, numa
ocasião, e de tinta amarela, noutra, além de ter também aparecido uma vez
envolvida num pano negro” (p. 3, a duas colunas).
A
nossa imprensa ocupar-se-ia abundantemente do caso nos dias imediatos
seguintes, assim como nos anos que se seguiriam, sobretudo em Fevereiro de
1978, quando o restante bronze da estátua decapitada foi estilhaçado por uma
explosão, em órgãos como A Luta, Primeiro de Janeiro (5-III-1978), Diário de Notícias (11-II-78), 87-II-78), Expresso (11-II-78), Opção (16-II-78), etc. Desse modo se
punha definitivamente fim, quatro anos após o 25 de Abril, ao derradeiro
vestígio monumental do nosso Ditador, uma vez que as poucas outras estátuas
suas que existiam, nomeadamente no pátio interior do Palácio Foz (por algum
tempo local do Ministério da Comunicação Social) tinham sido recolhidas para
armazéns que os guardaram sem ninguém mais se lembrar delas. Ou de repor diante
do palácio da Justiça o monumento pulverizado por anónimos autores que têm tido
a modéstia democrática ou o talento discreto de não se ufanar do acto que
varreu do país a única presença estatuária do nosso Ditador, mesmo na sua
região natal.
Quanto
a Leopoldo de Almeida (1899-1975), falecido dois meses antes, no mesmo ano em
que a sua estatificação de Salazar era decapitada, foi um escultor que estudou
inicialmente em Paris e Roma (1926
a 1929), onde se imbuiu de neoclassicismo, evoluindo depois
para uma estilo de frieza académica de que expurgaria todas os seus alardes
modernizantes anteriores, e que fora exemplo o Fauno exposto em 1929 no SNBA. Recorde-se que este artista ficaria
muito ligado à estatuária heroicizante do Estado Nono, como no Padrão dos
Descobrimentos, feito de colaboração com Cottinelli Telmo, o monumento a
António José de Almeida (1937) à frente duma República toda máscula, em Lisboa
(com a colaboração do arq.º Pardal Monteiro), ou ainda a estátua equestre de D. João I na Praça da Figueira, em
Lisboa (1972), além dum monumento a Nuno Álvares Pereira, na Batalha e de três
estátuas de escritores na Avenida da Liberdade, na capital, Castilho (1950), Herculano (1950), Oliveira
Martins (1952) e ainda a de Eça na
Póvoa do Varzim (1950), sem esquecer diversas outras obras de cariz religioso
em diversas igrejas do país. Mais do que Francisco Franco (1885-1955), Leopoldo
de Almeida representou a estatuária comemorativa oficial do Estado Novo.
Foi
nomeado mestre de Escultura da ESBAL (1957) e subdirector dessa escola, para a
qual entrara, por concurso, em 1934, como professor de Desenho de Figura do
Antigo e do Modelo Vivo. Uma derradeira nótula sobre a estátua de Salazar
decapitada e pulverizada em
Santa Comba Dão : ela não deixa de ter alguma sugestão colhida
num dos monumentos mais excelsos da estatuária mundial, o monumento a Lincoln
esculpido pelo americano Daniel Chester French (1859-1931). A verdade, porém, é
que a versão do nosso Ditador sentado peca pela pobreza simbólica, pela postura
rígida e quase catatónica, enquanto que a de French, inaugurada em 1922 no Mall
de Washington, é animada por um sopro democrático grandioso e empolgante que
suscitaria várias utilizações deste impressionante ícone em grandes filmes
norte-americanos.[1]
A
terminar, lembremos que outra estátua de Salazar togado, de borla e capelo, a
cabeça pensativa e ligeiramente inclinada para a frente, feita pelo artista
funchalense Francisco Franco 1885-1955), destinada a figurar no pavilhão português
na Exposição Universal de Paris em 1937, de que se fizeram diversas cópias,
teve uma réplica que, erecta no átrio do Liceu Salazar de Lourenço Marques
(hoje Maputo), seria destruída pelos rebeldes moçambicanos nos derradeiros anos
da nossa colonização naquele país do leste africano.[2]
João Medina
[1] Veja-se o
nosso livro A minha América,
Guimarães, Opera Omnia, 2012, pp. 207-309 (os filmes são de Frank Capra e John
Ford).
[2]
Sobre esta estátua de Salazar feita por Francisco Franco e a sua destruição em Moçambique,
veja-se o que dizemos no nosso livro Salazar,
Hitler e Franco. Estudos sobre Salazar e a Ditadura, Lisboa, Livros
Horizonte, 2000, pp.192-198. Fala-se aí também das estátuas de Salazar feitas
por Leopoldo de Almeida e do destino que depois tiveram (op. cit., pp. 198 e 209-10).
A estátua de Salazar togado, de borla e capelo, sei eu onde está. Está em Lisboa, junto ao rio, num armazém.
ResponderEliminarBem assinalada a imitação canhestra da bela estátua de Lincoln. Canhestra em todos os sentidos: no material, no artístico e no simbólico.
ResponderEliminarObrigada, fico feliz em visitar aqui
ResponderEliminarobat stroke
A estátua em bronze de Salazar togado que estava em Lourenço Marques em frente do Liceu Salazar, igual à que foi retirada em 1974 do Palácio Foz em Lisboa, não foi "destruída pelos rebeldes moçambicanos nos derradeiros anos da nossa colonização". Também não foi destruída depois do 25 de Abril, nem mesmo depois da independência. Está hoje precariamente arrumada num recanto exterior da Biblioteca Nacional do Maputo, ostensivamente virada para a parede. Veja-se: https://delagoabayworld.wordpress.com/category/historia/a-estatua-de-salazar-em-maputo/
ResponderEliminarou ainda:
http://www.tvi24.iol.pt/internacional/estatua/salazar-virado-para-a-parede-de-castigo-em-maputo
Segundo Aurélio Valente Langa (Memórias de um Combatente da Causa), a estátua foi destruída por democratas brancos nos primeiros nos da década de 60.
EliminarFoi destruída uma primeira versão em pedra, inaugurada em 1952 e decapitada com explosivos, em 1962 ou 1963. Foi depois substituída por segunda versão em bronze (mais difícil destruir? mais barato mandar vir da Metrópole?), colocada no mesmo lugar em frente do Liceu em 1964, e que é a que está na Biblioteca Nacional do Maputo. O Rui Nogar refere-se ao episódio em Vozes moçambicanas: Literatura e Nacionalidade (org. Patrick Chabal, Lisboa: Vega, 1994, p. 160–182).
Eliminar(Para eventuais interessados, remeto para a minha tese de mestrado -- onde erradamente digo que a segunda estátua de Salazar também foi destruída -- e um texto de 2012 -- "Monumentos coloniais em tempos pós-coloniais. A estatuária de Lourenço Marques" -- que podem ser vistos em https://independent.academia.edu/GerbertVerheij.)
Quem tudo faz para apagar a história, mais não faz que contribuir para que ela se repita.
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