sábado, 15 de junho de 2013

As pequenas estórias da Grande Guerra.






Foreign Office






Começou a contagem decrescente para o centenário da Grande Guerra. Nome prejudicado pelo conflito sucedâneo, mas que ainda assim prefiro, quanto não mais seja pelo facto de a 2ª Guerra não passar disso mesmo, de um sucedâneo.

Nesta fase apetece recordar algumas estórias exemplares do pré-guerra. Por outras palavras, há precisamente cem anos já se fazia muitas das asneiras que conduziriam à guerra. O que nos deixa sempre com aquela impressão subliminar (e im-provável) de que, se as coisas fossem um bocadinho muito pequenino diferentes, não teria havido a Grande Guerra (nem a 2ª, nem o bloco soviético, nem a Guerra Fria, nem bombas atómicas, enfim, o nosso mundo teria sido ligeiramente diferente, talvez nem tivesse havido Estado Novo). Esta ideia das pequeninas coisas que mudam tudo recorda-me o clinamem da doutrina atomista de Epicuro: o mínimo desvio das partículas que tudo torna possível. Uma teoria óptima para os autores da história virtual. Aqui, contudo, não estamos contra os factos, apenas queremos desenterrar alguns factos pequeninos.

Uma das grandes personagens do período pré-guerra foi o responsável do Foreign Office, Sir Edward Grey (Foreign Secretary de 1905 a 1916, o mais longo período em que a mesma pessoa desempenhou o cargo). Sucede que é mais interessante saber quem estava por trás dele. Nesse trabalho arqueológico, recupera-se a figura de Sir William Tyrrell, private secretary do ministro de 1907 a 1915. Considerado a eminência parda de Edward Grey, deve ter-se em conta que Tyrrell não era o seu Sir Humphrey: este era permanent under-secretary, enquanto Tyrrell era private secretary. No entanto, por razões muito curiosas, dispôs a partir de 1912 de uma tremenda influência, sobretudo na área das nomeações.
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Sir Charles Hardinge




Tyrrell devia o seu lugar a Sir Charles Hardinge, permanent under-secretary de 1906 a 1910. Este queria ser embaixador em Paris quando o diplomata aí colocado se aposentasse, mas desejava que homens da sua confiança ficassem nos cargos chave do Foreign Office (sobretudo os cargos de assistant under-secretary e de private secretary. Em 1907 conseguiu que Edward Grey designasse os seus candidatos: Louis Mallet e Tyrrell. Hardinge partiu do princípio de que Tyrrell o apoiaria nas suas pretensões, porque julgava que ele se sentia em dívida para consigo. Afinal, Hardinge evitara o aposentamento prematuro de Tyrrell quando este tivera um colapso nervoso que, aliás, o conduziria a uma longa dependência do álcool. Acontece que Tyrrell, apesar ou mesmo por causa disso, odiava Hardinge e estava disposto a tudo fazer para frustrar os seus planos.

Sir Charles foi então substituído por Sir Arthur Nicolson, ex-embaixador em S. Petersburgo, sendo nomeado vice-Rei da Índia até ao posto de Paris vagar. Ou assim pensava ser. O seu objectivo é que, a breve trecho, Mallet sucedesse a Nicolson, para mandar à distância no Foreign Office. Tyrrell bem o percebeu, e conseguiu convencer Grey a manter Nicolson num posto que este detestava. Nicolson detestava o caro. Crítico, opunha-se à política do governo inglês e não conseguia manter-se calado. Preferia mil vezes ser nomeado para outra embaixada, pelo que solicitou Viena e, mais tarde, Constantinopla (o Foreign Office continuava a preferir esta designação). Depois de fazer com que Grey resistisse a todos os pedidos de Nicolson, Tyrrell finalmente percebeu que não o ia conseguir manter no cargo mais tempo pelo que fez ver a Grey que Nicolson tinha capital de queixa e merecia a embaixada de Paris, assim conseguindo frustrar a expectativa de Hardinge para a embaixada mais importante da carreira diplomática de então. Entretanto, algo mudou: Tyrrell entrou em choque com a visão  de Nicolson sobre a política externa a seguir, pelo que mudou de ideias e intrigou para que este já não seguisse para Paris, sendo antes imediatamente aposentado.

Interessante é ter em conta o motivo das divergências: as relações anglo-russas. A guerra russo-japonesa e a revolução de 1905 afectaram de tal modo o prestígio do império czarista que o Foreign Office de Hardinge passara a entender que dali já não provinha nenhuma ameaça para os interesses imperiais britânicos. Restava uma única ameaça, a alemã. Eis o que explica o tratado anglo-russo de 1907.

O único dentro do Foreign Office a contestar o tratado fora um amigo de Tyrrell, o qual acusou Hardinge de ter vistas curtas: a Rússia, pela dimensão, pela população, pelas riquezas naturais estratégicas, e também pelo sistema autocrático e ambição do czar, podia a qualquer momento retomar a condição e, sobretudo, o comportamento de grande potência, tornando-se uma ameaça tão grande quanto a alemã. Aliada à Inglaterra, a Rússia poderia arrastá-la para um conflito criado pela Rússia para defender os seus interesses, tanto mais que esta se sentiria protegida pela Royal Navy (o grande problema estratégico dos russos sempre fora o do acesso ao mar e do receio de, apesar da sua dimensão descomunal, serem sitiados por outra potência mundial).

Tyrrell, pelo seu lado, entendia que o tratado só tinha sentido se a Rússia continuasse impotente, ou seja, incapaz de adotar um comportamento agressivo e mesmo de ter pretensões de tomar a ofensiva. Ora, em 1912, o grupo de Tyrrell no Foreign Office conclui que a Rússia já estava a querer retomar o estatuto de grande potência. Encontravam um sinal decisivo no comportamento russo durante as guerras balcânicas, hoje esquecidas, mas que acenderam o barril de pólvora sempre latente na área e que explodiria em 1914. Considerando que a Rússia e a Alemanha eram demasiado hostis entre si para se aliarem contra a Inglaterra, Tyrrell entendeu que o melhor caminho a seguir era o da equidistância, o que, nas circunstâncias, significava para os ingleses evitar uma política anti-alemã e distanciar-se da Rússia. É óbvio para nós hoje que, se esse entendimento tivesse sido seguido, as fragilidades russas teriam feito com que esta fosse muito menos afirmativa na sua política pan-eslava e que, em consequência, muito provavelmente a Grande Guerra não teria eclodido.
 
 
Sir Arthur Nicholson
 

Sucede que o permanent under-secretary, Sir Arthur Nicolson, discordava, como se disse, frontalmente de Tyrrell. Por isso, este concluiu que Nicolson era demasiado pró-russo para ser embaixador em Paris (recorde-se que, no dominó das alianças, a Rússia sabia que se entrasse em guerra a França também entraria, pelo que se sentia muito mais segura para optar pelo conflito, mesmo que se tratasse acima de tudo de servir interesses seus e não da França, nem da Inglaterra claro está). Tyrrell manobrou então para convencer Grey a já não nomear Nicolson para Paris, sendo antes aposentado. Para o efeito, bastaria manter o titular de Paris, Sir Francis Bertie, no cargo até ao final de 1914. Se tal sucedesse, além de Hardinge continuar a aboborar na Índia, Nicolson teria de se reformar porque atingia os 65 anos em Setembro de 1914 e, pormenor delicioso, como permanent under-secretary seria abrangido pelas regras do funcionalismo público – reforma obrigatória aos 65 anos –, e não pelas regras dos diplomatas, os quis se podiam manter em funções até aos 70.
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1914



O grão de areia na engrenagem construída por Tyrrell era que Nicolson continuava como permanent under-secretary e promoveu um brilhante Eyre Crowe, que defendia uma política resolutamente anti-alemã. Crowe, a estrela nascente do Foreign Office, defendeu a posição de Nicolson contra Tyrrell: a Rússia estava mais forte, mas muito menos que a Alemanha, esta era a verdadeira ameaça, pelo que o tratado anglo-russo tinha de ser mantido como uma pedra angular da política externa inglesa.

No verão fatídico de 1914, depois do ultimato austríaco, Tyrrell, fez tudo para impedir que a Inglaterra fosse para guerra secundando a Rússia. Em 1 de gosto foi ele que convenceu Grey a ter um encontro com o embaixador alemão que contribuiu para que o Kaiser concluísse que a Inglaterra não declararia guerra à Alemanha (o que, ironicamente, pode ter levado Wilhelm II a crer que apenas teria de bater a Rússia e a França, entrando mais confiante no conflito). A proposta de Tyrrell que Grey apresentou, registe-se, era absurda: garantia a neutralidade inglesa, não só no caso de guerra germano-russa, mas também no caso de guerra franco-alemã, aqui no caso de as forças germânicas não entrarem em território francês.

Em 1915 Tyrrell teve um colapso, devido à enorme tensão gerada ao longo dos anos pelas suas manigâncias, mas seguramente detonada pela morte do filho mais novo na frente francesa. Ficou três meses sem poder trabalhar e entregou-se mais pronunciadamente à bebida. Grey defendeu-o inicialmente. No entanto, quando o embaixador francês, conhecedor em alguma medida, aliás como os alemães, das intrigas de Tyrrell e querendo comprometê-lo, veio a público revelar o segredo de estado – o alcoolismo de Tyrrell –, Grey viu-se finalmente forçado a substituí-lo. Ouviu-se então um prolongado suspiro de alívio no Foreign Office. Eram as vítimas das tramas de Tyrrell: muito diplomatas, além dos mais importantes referidos, se podiam contar nesse rol.
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O mais espantoso é que, em Agosto de 1916, quando Tyrrell tinha recuperado a compostura, o próprio Hardinge convidou Tyrrell para seu assistente pessoal: este tinha conseguido manter secretas as suas manigâncias em relação ao mentor que, ignorante, continuava a ver nele um fiel seguidor. Na verdade, Tyrrell tinha uma qualidade enorme para um artista do género: não se comprometia, não deixava rasto, sobretudo, nada deixava por escrito. Conta-se, a propósito, que Francisco Franco a certa altura nomeou um governador para as Canárias, o qual, fiel e obrigado, pediu uma última audiência antes de se deslocar na qual suplicou ao ditador que o aconselhasse quanto ao modo de proceder. E este debitou as regras que teriam guiado toda a sua carreira política: “Oír todo, hablar poco, escribir nada!”.

Tyrrell, o homem que, pelo menos de setembro de 1913 a Julho de 1914, ou seja, na fase crucial, dispôs da maior influência junto do Foreign Secretary e que poderia mesmo ter contribuído para evitar a guerra, foi prejudicado pela sua natureza conspirativa. A que se devia tamanha influência? À superfície, Tyrrell era pessoa de uma amabilidade extrema. Alguém que tinha todas as razões para o detestar, Nicolson, dele disse: “by pliant and adaptable gaiety conquered so many hearts.” No entanto, fora outro o factor determinante: a fragilidade anímica de Sir Edward Grey. Viúvo, solitário, Grey sentia a necessidade emocional de ter alguém, um verdadeiro amigo, com quem trabalhar quotidiana e proximamente. Ora, ninguém mais amigável na aparência do que Tyrrell. Além do mais, ninguém mais disponível: o seu casamento fora um fracasso, pelo que a sua mulher o deixara sozinho em Londres, fixando-se com os filhos no country inglês. A todos os títulos, Tyrrell parecia o amigo ideal de que Grey tanto carecia.

Assim se tecem as estórias dos homens que se entretecem com a história do mundo.

 
José Luís Moura Jacinto




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