Foreign Office
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Começou
a contagem decrescente para o centenário da Grande Guerra. Nome prejudicado
pelo conflito sucedâneo, mas que ainda assim prefiro, quanto não mais seja pelo
facto de a 2ª Guerra não passar disso mesmo, de um sucedâneo.
Nesta
fase apetece recordar algumas estórias exemplares do pré-guerra. Por outras
palavras, há precisamente cem anos já se fazia muitas das asneiras que
conduziriam à guerra. O que nos deixa sempre com aquela impressão subliminar (e
im-provável) de que, se as coisas fossem um bocadinho muito pequenino
diferentes, não teria havido a Grande Guerra (nem a 2ª, nem o bloco soviético,
nem a Guerra Fria, nem bombas atómicas, enfim, o nosso mundo teria sido
ligeiramente diferente, talvez nem tivesse havido Estado Novo). Esta ideia das
pequeninas coisas que mudam tudo recorda-me o
clinamem da doutrina atomista de Epicuro: o mínimo desvio das partículas
que tudo torna possível. Uma teoria óptima para os autores da história virtual.
Aqui, contudo, não estamos contra os factos, apenas queremos desenterrar alguns
factos pequeninos.
Uma
das grandes personagens do período pré-guerra foi o responsável do Foreign Office, Sir Edward Grey (Foreign Secretary de 1905 a 1916, o mais
longo período em que a mesma pessoa desempenhou o cargo). Sucede que é mais
interessante saber quem estava por trás dele. Nesse trabalho arqueológico,
recupera-se a figura de Sir William Tyrrell, private secretary do ministro de 1907 a 1915. Considerado a
eminência parda de Edward Grey, deve ter-se em conta que Tyrrell não era o seu
Sir Humphrey: este era permanent
under-secretary, enquanto Tyrrell era private
secretary. No entanto, por razões muito curiosas, dispôs a partir de 1912
de uma tremenda influência, sobretudo na área das nomeações.
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Sir Charles Hardinge
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Tyrrell
devia o seu lugar a Sir Charles Hardinge, permanent
under-secretary de 1906 a 1910. Este queria ser embaixador em Paris quando
o diplomata aí colocado se aposentasse, mas desejava que homens da sua
confiança ficassem nos cargos chave do Foreign
Office (sobretudo os cargos de assistant
under-secretary e de private secretary. Em 1907 conseguiu que Edward Grey
designasse os seus candidatos: Louis Mallet e Tyrrell. Hardinge partiu do
princípio de que Tyrrell o apoiaria nas suas pretensões, porque julgava que ele
se sentia em dívida para consigo. Afinal, Hardinge evitara o aposentamento
prematuro de Tyrrell quando este tivera um colapso nervoso que, aliás, o
conduziria a uma longa dependência do álcool. Acontece que Tyrrell, apesar ou
mesmo por causa disso, odiava Hardinge e estava disposto a tudo fazer para
frustrar os seus planos.
Sir
Charles foi então substituído por Sir Arthur Nicolson, ex-embaixador em S.
Petersburgo, sendo nomeado vice-Rei da Índia até ao posto de Paris vagar. Ou
assim pensava ser. O seu objectivo é que, a breve trecho, Mallet sucedesse a
Nicolson, para mandar à distância no Foreign
Office. Tyrrell bem o percebeu, e conseguiu convencer Grey a manter
Nicolson num posto que este detestava. Nicolson detestava o caro. Crítico, opunha-se
à política do governo inglês e não conseguia manter-se calado. Preferia mil
vezes ser nomeado para outra embaixada, pelo que solicitou Viena e, mais tarde,
Constantinopla (o Foreign Office continuava
a preferir esta designação). Depois de fazer com que Grey resistisse a todos os
pedidos de Nicolson, Tyrrell finalmente percebeu que não o ia conseguir manter
no cargo mais tempo pelo que fez ver a Grey que Nicolson tinha capital de
queixa e merecia a embaixada de Paris, assim conseguindo frustrar a expectativa
de Hardinge para a embaixada mais importante da carreira diplomática de então.
Entretanto, algo mudou: Tyrrell entrou em choque com a visão de Nicolson sobre a política externa a seguir,
pelo que mudou de ideias e intrigou para que este já não seguisse para Paris,
sendo antes imediatamente aposentado.
Interessante
é ter em conta o motivo das divergências: as relações anglo-russas. A guerra
russo-japonesa e a revolução de 1905 afectaram de tal modo o prestígio do
império czarista que o Foreign Office
de Hardinge passara a entender que dali já não provinha nenhuma ameaça para os
interesses imperiais britânicos. Restava uma única ameaça, a alemã. Eis o que
explica o tratado anglo-russo de 1907.
O
único dentro do Foreign Office a
contestar o tratado fora um amigo de Tyrrell, o qual acusou Hardinge de ter
vistas curtas: a Rússia, pela dimensão, pela população, pelas riquezas naturais
estratégicas, e também pelo sistema autocrático e ambição do czar, podia a
qualquer momento retomar a condição e, sobretudo, o comportamento de grande
potência, tornando-se uma ameaça tão grande quanto a alemã. Aliada à
Inglaterra, a Rússia poderia arrastá-la para um conflito criado pela Rússia
para defender os seus interesses, tanto mais que esta se sentiria protegida
pela Royal Navy (o grande problema
estratégico dos russos sempre fora o do acesso ao mar e do receio de, apesar da
sua dimensão descomunal, serem sitiados por outra potência mundial).
Tyrrell,
pelo seu lado, entendia que o tratado só tinha sentido se a Rússia continuasse
impotente, ou seja, incapaz de adotar um comportamento agressivo e mesmo de ter
pretensões de tomar a ofensiva. Ora, em 1912, o grupo de Tyrrell no Foreign Office conclui que a Rússia já
estava a querer retomar o estatuto de grande potência. Encontravam um sinal
decisivo no comportamento russo durante as guerras balcânicas, hoje esquecidas,
mas que acenderam o barril de pólvora sempre latente na área e que explodiria
em 1914. Considerando que a Rússia e a Alemanha eram demasiado hostis entre si
para se aliarem contra a Inglaterra, Tyrrell entendeu que o melhor caminho a
seguir era o da equidistância, o que, nas circunstâncias, significava para os
ingleses evitar uma política anti-alemã e distanciar-se da Rússia. É óbvio para
nós hoje que, se esse entendimento tivesse sido seguido, as fragilidades russas
teriam feito com que esta fosse muito menos afirmativa na sua política
pan-eslava e que, em consequência, muito provavelmente a Grande Guerra não
teria eclodido.
Sir Arthur Nicholson
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Sucede
que o permanent under-secretary, Sir
Arthur Nicolson, discordava, como se disse, frontalmente de Tyrrell. Por isso,
este concluiu que Nicolson era demasiado pró-russo para ser embaixador em Paris
(recorde-se que, no dominó das alianças, a Rússia sabia que se entrasse em
guerra a França também entraria, pelo que se sentia muito mais segura para
optar pelo conflito, mesmo que se tratasse acima de tudo de servir interesses
seus e não da França, nem da Inglaterra claro está). Tyrrell manobrou então
para convencer Grey a já não nomear Nicolson para Paris, sendo antes
aposentado. Para o efeito, bastaria manter o titular de Paris, Sir Francis
Bertie, no cargo até ao final de 1914. Se tal sucedesse, além de Hardinge
continuar a aboborar na Índia, Nicolson teria de se reformar porque atingia os
65 anos em Setembro de 1914 e, pormenor delicioso, como permanent under-secretary seria abrangido pelas regras do
funcionalismo público – reforma obrigatória aos 65 anos –, e não pelas regras
dos diplomatas, os quis se podiam manter em funções até aos 70.
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1914
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O
grão de areia na engrenagem construída por Tyrrell era que Nicolson continuava
como permanent under-secretary e
promoveu um brilhante Eyre Crowe, que defendia uma política resolutamente
anti-alemã. Crowe, a estrela nascente do Foreign
Office, defendeu a posição de Nicolson contra Tyrrell: a Rússia estava mais
forte, mas muito menos que a Alemanha, esta era a verdadeira ameaça, pelo que o
tratado anglo-russo tinha de ser mantido como uma pedra angular da política
externa inglesa.
No
verão fatídico de 1914, depois do ultimato austríaco, Tyrrell, fez tudo para
impedir que a Inglaterra fosse para guerra secundando a Rússia. Em 1 de gosto
foi ele que convenceu Grey a ter um encontro com o embaixador alemão que
contribuiu para que o Kaiser concluísse que a Inglaterra não declararia guerra
à Alemanha (o que, ironicamente, pode ter levado Wilhelm II a crer que apenas
teria de bater a Rússia e a França, entrando mais confiante no conflito). A
proposta de Tyrrell que Grey apresentou, registe-se, era absurda: garantia a
neutralidade inglesa, não só no caso de guerra germano-russa, mas também no
caso de guerra franco-alemã, aqui no caso de as forças germânicas não entrarem
em território francês.
Em
1915 Tyrrell teve um colapso, devido à enorme tensão gerada ao longo dos anos
pelas suas manigâncias, mas seguramente detonada pela morte do filho mais novo
na frente francesa. Ficou três meses sem poder trabalhar e entregou-se mais
pronunciadamente à bebida. Grey defendeu-o inicialmente. No entanto, quando o
embaixador francês, conhecedor em alguma medida, aliás como os alemães, das
intrigas de Tyrrell e querendo comprometê-lo, veio a público revelar o segredo
de estado – o alcoolismo de Tyrrell –, Grey viu-se finalmente forçado a
substituí-lo. Ouviu-se então um prolongado suspiro de alívio no Foreign Office. Eram as vítimas das tramas
de Tyrrell: muito diplomatas, além dos mais importantes referidos, se podiam
contar nesse rol.
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O
mais espantoso é que, em Agosto de 1916, quando Tyrrell tinha recuperado a
compostura, o próprio Hardinge convidou Tyrrell para seu assistente pessoal:
este tinha conseguido manter secretas as suas manigâncias em relação ao mentor
que, ignorante, continuava a ver nele um fiel seguidor. Na verdade, Tyrrell tinha
uma qualidade enorme para um artista do género: não se comprometia, não deixava
rasto, sobretudo, nada deixava por escrito. Conta-se, a propósito, que
Francisco Franco a certa altura nomeou um governador para as Canárias, o qual,
fiel e obrigado, pediu uma última audiência antes de se deslocar na qual suplicou
ao ditador que o aconselhasse quanto ao modo de proceder. E este debitou as
regras que teriam guiado toda a sua carreira política: “Oír todo, hablar poco, escribir nada!”.
Tyrrell,
o homem que, pelo menos de setembro de 1913 a Julho de 1914, ou seja, na fase
crucial, dispôs da maior influência junto do Foreign Secretary e que poderia mesmo ter contribuído para evitar a
guerra, foi prejudicado pela sua natureza conspirativa. A que se devia tamanha
influência? À superfície, Tyrrell era pessoa de uma amabilidade extrema. Alguém
que tinha todas as razões para o detestar, Nicolson, dele disse: “by pliant and adaptable gaiety conquered so
many hearts.” No entanto, fora outro o factor determinante: a fragilidade
anímica de Sir Edward Grey. Viúvo, solitário, Grey sentia a necessidade
emocional de ter alguém, um verdadeiro amigo, com quem trabalhar quotidiana e
proximamente. Ora, ninguém mais amigável na aparência do que Tyrrell. Além do
mais, ninguém mais disponível: o seu casamento fora um fracasso, pelo que a sua
mulher o deixara sozinho em Londres, fixando-se com os filhos no country inglês. A todos os títulos, Tyrrell
parecia o amigo ideal de que Grey tanto carecia.
Assim
se tecem as estórias dos homens que se entretecem com a história do mundo.
José
Luís Moura Jacinto
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