29-VIII
Regressar
Os
nossos visitantes já partiram há uns dias e agora já não falta muito para nós
mesmos regressarmos. E à medida que se aproximava a data do nosso retorno,
fomos tomando o hábito de passar a tarde no jardim arrelvado que nos s para dos
vinhedos que se estendem pelas colinas mais próximas. Os pássaros não têm,
felizmente, o hábito de se empoleirarem neste enorme abeto azulado, o que nos
permite passar horas de lazer tranquilo debaixo da sua sombra. Olho a paisagem
que se alarga em direcção ao vale, miramos pela enésima vez os cumes do monte
Ventoux diante de nós, sentindo que estas faldas do Luberon são ondulações
lentas dum mar de pedras, terra e plantas, vinhas e árvores, riachos invisíveis
e bosques onde lebres se escondem, com um ou outro mas (habitação provençal) de permeio. Como nunca gostei de
montanhas demasiado altas e vertiginosas, antes aprecio serras de moderada
estatura, sem encostas abruptas nem vales muito cavados, sinto-me, nestes
arredores de Bonnieux, no meu paraíso terreal de férias.
Olho
de novo, antes de partir pela França e Espanha fora, as distâncias que nos
separam ainda da costa atlântica, e quedo-me a saborear com avidez esta
paisagem que tanto amo, esta paisagem à minha volta, semeada de vinhas e de
bosques de plantio natural, com rochedos no intervalo da vegetação, penedos
ocres ou brancos. E sinto que esta paisagem tem qualquer coisa de musical, de
melodia composta por um oculto artista enamorado da natureza, na sua incrível
diversidade e unidade essencial de elementos opostos, de cores e texturas,
posta diante dos nossos olhos para êxtase mais íntimo da nossa alma carente de
ar livre, de cenários criados por geração espontânea. E é este timbre interior,
discreto mas forte, que pulsa ainda nas derradeiras linhas destas horas que
passamos aqui. Assim como no meu diário rascunhado ao longo de um mês de férias
na sublime região da Provença, pátria de quando em quando recuperada, depois
perdida, recordada, vista de novo numa nova visita ritual, até que se
transforme de vez em passado que passou deveras, em memória que se vai delindo
até dela nada restar, nem uma sílaba dita ou escrita, nem uma ramada de
cipreste que o vento afaga, nem um trinar de pássaros que deslizam velozes por
cima de nós, enquanto o sol se levanta e põe, ora iluminando, ora enchendo de
trevas todos estes cenários, ao mesmo tempo que uma mão vai tentando deixar
gravada na pele efémera duma folha palavras de um diário, palavras que
desaparecem como as horas em que foram sentidas e escritas…
João Medina
Sem comentários:
Enviar um comentário