Era suposto que Portugal estivesse hoje a ferro e fogo
com hordas de jovens adultos estropiando pessoas por prazer e devastando
património com indiferença. Pelo menos foi esta a alarmante previsão que há
quase 20 anos alvoroçou os segmentos mais lúcidos e sadios da Nação, tais como
pedagogos, psicólogos, maîtres à penser
e a Dra. Maria Barroso. Nesses idos de noventa, entre 1996-1999, a SIC exibiu
as perversíssimas animações Dragon Ball e Dragon Ball Z, cuja influência
deletéria iria de certeza certa traumatizar irreversivelmente a moralidade da
juventude portuguesa. Bem tinha avisado o velho Popper que a televisão era um
instrumento reprovável, tanto mais quanto deixado à deriva no mar alteroso e
amoral do mercado.
Esta série de animação, era patente, corrompia nos
jovens a noção do bem e do mal, relativizando-a e esbatendo-lhe os contornos,
incrementaria neles a propensão para a violência como forma favorita de
resolução de conflitos, deslaçaria as solidariedades sociais e os laços
familiares (havia a personagem de um velho masturbador diante das meninas,
dizia-se). Numa palavra: era perigosa. E sobre ser perigosa não tinha
qualidade, o que ainda seria pior. Tanto mais perigosa porque incidia sobre os
entes mais fracos, desprotegidos e impreparados – as crianças. Enfim: um
perfeito colapso dos valores da sociedade ocidental.
Fez-se ouvir por todo o lado, ou seja, em todos os
meios de comunicação, a voz da indignação, da justa indignação das pessoas
decentes, cuja natureza é serem precisamente justas e indignadas. Produziram-se
declarações excitadas subordinadas ao tema “para onde estamos a ir?”;
palestraram-se na academia estudos concludentes acerca dos danos éticos
provocados pelas hertzianas no córtex cerebral infantil (porque havia que ir ao
fundo das coisas: o desenho animado era apenas uma irrupção fenomenológica do
nefasto império da televisão que reduziria a cinzas o gosto bem formado); no
mínimo abanaram-se cabeças de consternação acerca da “sociedade de consumo”.
Nem o parlamento se subtraiu a verberar a tremenda insensibilidade da SIC e a
consternar-se pelo futuro de uma Pátria que de tal modo destratava as suas
gerações pueris.
O que aconteceu a seguir foi terrível: a polémica
aborreceu e o tempo a esqueceu – e a SIC prosseguiu a emissão dos Dragon Ball
para gaudio das massas alienadas, sem alguém, nem ao menos uma comissãozita de
peritos, que tutelasse pela sua higiene cívica. O resultado destes três
elementos perniciosos foi ainda pior que o previsto: as crianças cresceram
normalmente e tornaram-se adultos normais.
Tal como um relógio parado está certo duas vezes ao
dia, também um profeta da desgraça nunca se engana e muito menos cai em si,
fenómeno da consciência que só acomete personagens de romance ou pacientes da
psicanálise. E se nenhuma catástrofe adveio do visionamento do Dragon Ball em
tenra e impressionável idade, tal se deveu, dirá o impenitente profeta, à sua
intervenção tempestiva que por outras vias, como a do processo de
aprendizagem/ensino ou a do investimento cultural na criação de novos públicos,
obstou a que a maleita proliferasse sem remédio.
São atributos do profeta ter uma seguríssima opinião
sobre o seu próprio gosto; considerar que ao seu gosto é inalienável o juízo
entre o que é bom e o que é mau; sustentar esse juízo na crença da sua
universalidade. Em consequência destas três certezas, decorre assim um
corolário fatal: é preciso educar quem não partilha delas. Nada o demoverá das
suas convicções.
À volta do profeta, fora do seu círculo de pureza, o
profeta vê o Outro, ou seja as trevas, se assim se pode dizer. O gosto do Outro
é sempre duvidoso. E por ser duvidoso é necessariamente nefasto. O gosto do
Outro é duvidoso, porque o Outro é, em si mesmo, suspeito de ser uma fera
hobbesiana contida a custo pela previdência do profeta e seus aliados.
Reconhece-se que o Outro nunca és tu, a quem me dirijo, mas um alguém mítico e
anónimo, cujas características fundamentais são andar, ao mesmo tempo, no meio
de nós e muito fora da nossa influência. É pois num sobressalto de caridade
cívica e intelectual que o profeta deseja limitar, condicionar, enquadrar,
determinar, refrear, regular, o acesso público do Outro àquilo de que ele gosta
– só assim será protegido de si próprio.
18 anos volvidos a SIC reincide.
Há agora um programa em que uns tipos sem um mínimo de
pejo se submetem em público a repelentes torturas somáticas e psicológicas,
movidos pela cupidez e pela frivolidade da fama televisiva. Como se isto não
fosse sobejamente pavoroso, há ainda que juntar o deleite alarve dos telespetadores,
a crer nas audiências, esse infame ferramenta de medir quantidades em vez de
aferir qualidades – levantou-se outra vez o tampo da caixa de Pandora…
Todavia, quem não sofrer da graça de se incluir no
círculo eleito dos profetas descreveria o programa doutra maneira:
Um conjunto de patuscos vai de livre vontade
participar num concurso televisivo em que tem de passar por uma série de provas
para ganhar um prémio. Como desde os tempos em que uma tarte de creme na cara
impávida de Buster Keaton nos fez rir, também hoje os que ficam em casa gozam
com as figuras ridículas dos concorrentes.
Este que vos escreve acha aquele programa muito parvo
e contrário à sua sensibilidade, tal como não aprecia arroz de frango ou
previsões astrológicas. Por isso, enquanto a sua filha solta gargalhadas na
sala a ver as peripécias dos concorrentes, prefere ler romances ou escrever em
blogs, passatempos, reconheça-se, tão inócuos como o de ver programas
televisivos. Mas por quem sois, não seja por causa disto que haveremos de vislumbrar
aqui o colapso da ética e da educação, um jorro de obscenidades e degradações,
a prostituição de toda a dignidade humana, ou outras coisas assim tremendas
como se acelerássemos por uma autoestrada que só termina no regresso aos
autos-de-fé, porque só aqui nos podem conduzir os horrores do entretenimento
quando não temperado pela cultura.
Been there,
done that… e só o profeta da desgraça, entontecido pela sua cólera redentora e
afogado nas suas visões de um apocalipse social iminente, se recusa a ficar
intrigado com a mais óbvia ilação: nada está pior do que era antes disto,
porque nada ficou pior das outras vezes em que se disse que pior não poderia
ser.
Modestamente adianto duas razões para semelhante
mesmidade:
A primeira é que classe social composta de
concorrentes e espetadores televisivos coincide exatamente com os mesmos tipos
que encontramos a comprar iogurtes nos corredores dos supermercados que nós
frequentamos e a fazer fila nas mesmas assembleias de voto em que nós votamos –
a sério, não são uma raça alienígena, somos NÓS.
A segunda é que, por mais incrível que pareça, as
pessoas sabem mesmo o que querem. E o que querem, por exemplo em política e em
nutrição, comprovadamente não se distancia muito daquilo que NÓS queremos. Por
isso, tal como NÓS, também elas conseguem proceder à suspension of disbelif e destrinçar o entretenimento da realidade,
uma brincadeira parva de uma tortura. Daqui em diante é uma questão de gosto e
desde que não me impeçam de ouvir os meus disquinhos de jazz enquanto se
distraem com as suas vulgares paródias, então está bem.
Por estas duas singelas razões é que ninguém reclama a tutela dos profetas
a não ser os próprios profetas que julgam ouvir o seu nome no clamor da
multidão, escutado lá de longe. Passaram então 18 anos, a Constituição permanece em vigor, a moral não se
abandalhou e os infantes inoculados pelo
vírus dissolvente do Dragon Ball cresceram, empregaram-se, casaram e alguns
tiveram filhos. E hoje recordam com nostalgia aquela animação que muito os divertiu
em pequenos, enquanto voltam a sentar-se diante do televisor para ver o “Cante
se puder”. Parece-me barato se for este o preço a pagar para que não voltem a
mandar os árbitros do gosto.
José Navarro de Andrade
Percebo que não é um programa que irá corromper a juventude, mas lembro o adágio: tantas vezes vai o cântaro à fonte...
ResponderEliminarE o que é certo é que a sua conclusão está errada. É verdade que os jovens cresceram, mas não saíram de casa, não se empregaram e não casaram. Quanto a filhos, eles esforçar-se, esforçam-se, mas resultados, népia, e por isso se despedem os professores...se a culpa é do Dragon ball, não sei, mas como diz outro adágio: a culpa sempre morre solteira!
Cá por mim,a única vez que achei graça a um programa de apanhados foi quando o apanhado pregou dois sopapos ao apanhador!