terça-feira, 17 de setembro de 2013

Ainda a propósito do fim do mundo ao serão na nossa sala de estar.









Era suposto que Portugal estivesse hoje a ferro e fogo com hordas de jovens adultos estropiando pessoas por prazer e devastando património com indiferença. Pelo menos foi esta a alarmante previsão que há quase 20 anos alvoroçou os segmentos mais lúcidos e sadios da Nação, tais como pedagogos, psicólogos, maîtres à penser e a Dra. Maria Barroso. Nesses idos de noventa, entre 1996-1999, a SIC exibiu as perversíssimas animações Dragon Ball e Dragon Ball Z, cuja influência deletéria iria de certeza certa traumatizar irreversivelmente a moralidade da juventude portuguesa. Bem tinha avisado o velho Popper que a televisão era um instrumento reprovável, tanto mais quanto deixado à deriva no mar alteroso e amoral do mercado.

Esta série de animação, era patente, corrompia nos jovens a noção do bem e do mal, relativizando-a e esbatendo-lhe os contornos, incrementaria neles a propensão para a violência como forma favorita de resolução de conflitos, deslaçaria as solidariedades sociais e os laços familiares (havia a personagem de um velho masturbador diante das meninas, dizia-se). Numa palavra: era perigosa. E sobre ser perigosa não tinha qualidade, o que ainda seria pior. Tanto mais perigosa porque incidia sobre os entes mais fracos, desprotegidos e impreparados – as crianças. Enfim: um perfeito colapso dos valores da sociedade ocidental.

Fez-se ouvir por todo o lado, ou seja, em todos os meios de comunicação, a voz da indignação, da justa indignação das pessoas decentes, cuja natureza é serem precisamente justas e indignadas. Produziram-se declarações excitadas subordinadas ao tema “para onde estamos a ir?”; palestraram-se na academia estudos concludentes acerca dos danos éticos provocados pelas hertzianas no córtex cerebral infantil (porque havia que ir ao fundo das coisas: o desenho animado era apenas uma irrupção fenomenológica do nefasto império da televisão que reduziria a cinzas o gosto bem formado); no mínimo abanaram-se cabeças de consternação acerca da “sociedade de consumo”. Nem o parlamento se subtraiu a verberar a tremenda insensibilidade da SIC e a consternar-se pelo futuro de uma Pátria que de tal modo destratava as suas gerações pueris.

O que aconteceu a seguir foi terrível: a polémica aborreceu e o tempo a esqueceu – e a SIC prosseguiu a emissão dos Dragon Ball para gaudio das massas alienadas, sem alguém, nem ao menos uma comissãozita de peritos, que tutelasse pela sua higiene cívica. O resultado destes três elementos perniciosos foi ainda pior que o previsto: as crianças cresceram normalmente e tornaram-se adultos normais.

Tal como um relógio parado está certo duas vezes ao dia, também um profeta da desgraça nunca se engana e muito menos cai em si, fenómeno da consciência que só acomete personagens de romance ou pacientes da psicanálise. E se nenhuma catástrofe adveio do visionamento do Dragon Ball em tenra e impressionável idade, tal se deveu, dirá o impenitente profeta, à sua intervenção tempestiva que por outras vias, como a do processo de aprendizagem/ensino ou a do investimento cultural na criação de novos públicos, obstou a que a maleita proliferasse sem remédio.

São atributos do profeta ter uma seguríssima opinião sobre o seu próprio gosto; considerar que ao seu gosto é inalienável o juízo entre o que é bom e o que é mau; sustentar esse juízo na crença da sua universalidade. Em consequência destas três certezas, decorre assim um corolário fatal: é preciso educar quem não partilha delas. Nada o demoverá das suas convicções.

À volta do profeta, fora do seu círculo de pureza, o profeta vê o Outro, ou seja as trevas, se assim se pode dizer. O gosto do Outro é sempre duvidoso. E por ser duvidoso é necessariamente nefasto. O gosto do Outro é duvidoso, porque o Outro é, em si mesmo, suspeito de ser uma fera hobbesiana contida a custo pela previdência do profeta e seus aliados. Reconhece-se que o Outro nunca és tu, a quem me dirijo, mas um alguém mítico e anónimo, cujas características fundamentais são andar, ao mesmo tempo, no meio de nós e muito fora da nossa influência. É pois num sobressalto de caridade cívica e intelectual que o profeta deseja limitar, condicionar, enquadrar, determinar, refrear, regular, o acesso público do Outro àquilo de que ele gosta – só assim será protegido de si próprio.

18 anos volvidos a SIC reincide.

Há agora um programa em que uns tipos sem um mínimo de pejo se submetem em público a repelentes torturas somáticas e psicológicas, movidos pela cupidez e pela frivolidade da fama televisiva. Como se isto não fosse sobejamente pavoroso, há ainda que juntar o deleite alarve dos telespetadores, a crer nas audiências, esse infame ferramenta de medir quantidades em vez de aferir qualidades – levantou-se outra vez o tampo da caixa de Pandora…
Todavia, quem não sofrer da graça de se incluir no círculo eleito dos profetas descreveria o programa doutra maneira:

Um conjunto de patuscos vai de livre vontade participar num concurso televisivo em que tem de passar por uma série de provas para ganhar um prémio. Como desde os tempos em que uma tarte de creme na cara impávida de Buster Keaton nos fez rir, também hoje os que ficam em casa gozam com as figuras ridículas dos concorrentes.

Este que vos escreve acha aquele programa muito parvo e contrário à sua sensibilidade, tal como não aprecia arroz de frango ou previsões astrológicas. Por isso, enquanto a sua filha solta gargalhadas na sala a ver as peripécias dos concorrentes, prefere ler romances ou escrever em blogs, passatempos, reconheça-se, tão inócuos como o de ver programas televisivos. Mas por quem sois, não seja por causa disto que haveremos de vislumbrar aqui o colapso da ética e da educação, um jorro de obscenidades e degradações, a prostituição de toda a dignidade humana, ou outras coisas assim tremendas como se acelerássemos por uma autoestrada que só termina no regresso aos autos-de-fé, porque só aqui nos podem conduzir os horrores do entretenimento quando não temperado pela cultura.

Been there, done that… e só o profeta da desgraça, entontecido pela sua cólera redentora e afogado nas suas visões de um apocalipse social iminente, se recusa a ficar intrigado com a mais óbvia ilação: nada está pior do que era antes disto, porque nada ficou pior das outras vezes em que se disse que pior não poderia ser. 

Modestamente adianto duas razões para semelhante mesmidade:

A primeira é que classe social composta de concorrentes e espetadores televisivos coincide exatamente com os mesmos tipos que encontramos a comprar iogurtes nos corredores dos supermercados que nós frequentamos e a fazer fila nas mesmas assembleias de voto em que nós votamos – a sério, não são uma raça alienígena, somos NÓS.
A segunda é que, por mais incrível que pareça, as pessoas sabem mesmo o que querem. E o que querem, por exemplo em política e em nutrição, comprovadamente não se distancia muito daquilo que NÓS queremos. Por isso, tal como NÓS, também elas conseguem proceder à suspension of disbelif e destrinçar o entretenimento da realidade, uma brincadeira parva de uma tortura. Daqui em diante é uma questão de gosto e desde que não me impeçam de ouvir os meus disquinhos de jazz enquanto se distraem com as suas vulgares paródias, então está bem.

Por estas duas singelas razões é que ninguém reclama a tutela dos profetas a não ser os próprios profetas que julgam ouvir o seu nome no clamor da multidão, escutado lá de longe. Passaram então 18 anos, a Constituição permanece em vigor, a moral não se abandalhou  e os infantes inoculados pelo vírus dissolvente do Dragon Ball cresceram, empregaram-se, casaram e alguns tiveram filhos. E hoje recordam com nostalgia aquela animação que muito os divertiu em pequenos, enquanto voltam a sentar-se diante do televisor para ver o “Cante se puder”. Parece-me barato se for este o preço a pagar para que não voltem a mandar os árbitros do gosto.
 
 
José Navarro de Andrade


 


1 comentário:

  1. Percebo que não é um programa que irá corromper a juventude, mas lembro o adágio: tantas vezes vai o cântaro à fonte...
    E o que é certo é que a sua conclusão está errada. É verdade que os jovens cresceram, mas não saíram de casa, não se empregaram e não casaram. Quanto a filhos, eles esforçar-se, esforçam-se, mas resultados, népia, e por isso se despedem os professores...se a culpa é do Dragon ball, não sei, mas como diz outro adágio: a culpa sempre morre solteira!
    Cá por mim,a única vez que achei graça a um programa de apanhados foi quando o apanhado pregou dois sopapos ao apanhador!

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