Há poucos dias, nem sequer há uma semana, o Jorge, amigo grande, dos mais generosos que tenho, mandou-me uma notícia do Haaretz. Dizia-se aí que Gino Bartali tinha sido homenageado no Yad Vashem. À minha ignara pergunta sobre quem era Gino Bartali, respondeu o Jorge também com uma pergunta, letal, e um pequeno texto que explicava tudo:
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O
ciclismo, a épica da rivalidade Coppi/Bartali, serão uma lacuna na sua cultura?
Coppi representava a esquerda e Bartali a direita. Era a luta entre as
duas Itálias do pós-guerra. A mitologia é irresistível. Mas, de facto, Coppi
votava na DC e Bartali era amigo de De Gasperi. Este pediu-lhe um dia que
ganhasse uma etapa da Volta à França para acalmar as tensões do atentado contra
Togliatti. Bartali assim fez e, ao fim da tarde, a Itália confraternizava. E,
durante a guerra, Bartali lá ia na bicicleta levando documento para salvar
judeus… Nunca se vangloriou disso. Era um homem justo.
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Depois,
com a generosidade de sempre, mandou-me um texto que escreveu para o Público, em Junho deste ano, aqui divulgado parcialmente:
O
italiano Gino Bartali ganhou o seu primeiro Tour de France em 1938. Fausto
Coppi triunfa pela primeira vez em 1949. Temos de fazer um curto desvio por
Itália para perceber a dimensão histórico-política do ciclismo.
O
muito popular Giro d’Italia transfigura-se no pós-guerra. As primeiras voltas
são o reencontro da Itália vencida consigo mesma. “Era também a revista da
nossa pobreza, um país destruído e virado de pernas para o ar por uma guerra
catastrófica”, anota um historiador. Nas bermas das estradas, olhando a
caravana, “os italianos começavam apenas a sorrir.”
A
Itália não era só um país arrasado, mas politicamente dividido e dilacerado. O
Giro teve uma função unificadora. Em 1947, surge uma nova literatura ligada ao
ciclismo, que é reescrito como um romance nas colunas dos jornais. Escritores
comunistas e conservadores, de Vasco Pratolini a Dino Buzzati, de Alfonso Gatto
a Curzio Malaparte, de Gianni Brera a Cesare Zavattini, passando pelos grandes
nomes do jornalismo político, mitificam ou politizam o Giro.
Os
italianos projectaram sobre o ciclismo a sua divisão política. O católico
Gino Bartali passa a representar a Igreja e a Democracia Cristã. “Bartali conquista
o paraíso a pedalar”, escreveu Brera. Fausto Coppi – que, ironicamente, votaria na DC –
passa a encarnar a Itália moderna e progressista. Malaparte teorizou este
contraponto mitológico num ensaio de 1949: “Gino é filho da fé. Fausto é filho
do livre pensamento. Bartali pertence aos que crêem nas tradições, Coppi é dos
que crêem no progresso.” Quando os espectadores gritam “Viva Bartali” ou “Viva
Coppi”, não estão necessariamente a pensar nos ciclistas.
Arqui-rivais,
foram amigos. Muito custou a Bartali ser suplantado pelo jovem concorrente,
cinco anos mais novo. Há uma célebre foto do Tour de 1952 em que os dois correm
isolados na montanha e há uma garrafa de água a passar de mãos. Quem passa a
água a quem? A foto, que fez capa de jornais, ilustra a reconciliação dos
italianos.
No dia 14 de Julho de 1948, um estudante dispara três tiros sobre Palmiro Togliatti, secretário-geral do Partido Comunista Italiano. No hospital, Togliatti apela em vão à calma. O país está em estado pré-insurreccional. O Governo admite pôr as tropas na rua. Bartali está em França, a correr o Tour. O primeiro-ministro, Alcide de Gasperi, telefona-lhe para Cannes, pedindo-lhe que ganhe a etapa e o Tour para salvar a Itália. Bartali cumpriu.
Estava
em 24.º lugar, a 20 minutos de Louis Bobet. Ganha a etapa isolado – e as duas
seguintes, vencendo o Tour. A notícia da vitória chega a Itália, no dia 15, às
17h30, “e as manifestações, como por magia, transformam-se em festa” (La
Repubblica).
A
vida privada de Coppi cimentou a sua lenda progressista. Em 1953, deixou a
mulher e foi viver com a mulher de um médico amigo, Giulia Occhini, “La Dama
Bianca”. A mulher de Coppi processou-o: o adultério era um delito. Giulia
esteve três dias na cadeia. A Coppi confiscaram o passaporte. Foram julgados e
condenados, com pena suspensa.
A
predestinação de Coppi para o mito é confirmada pela sua morte, escreve Mura.
Morrerá absurdamente em 1960, aos 40 anos. Apanhou malária numa corrida em
África e foi tratado, em Itália, a uma gripe. Muitos, como Brera, acreditaram
que “foi deixado morrer”.
Bartali
morreu em 2000, com 86 anos. Mas deixava também uma história só muito tarde
revelada. Durante a guerra, sem Giro para correr, treinava-se na estrada,
passando com facilidade as patrulhas alemãs. Mas o treino era muitas vezes
ficção. Fazia parte de uma organização de apoio aos judeus. Transportava,
escondidos na bicicleta, documentos para fazer passaportes falsos. Terá
contribuído para salvar 800 judeus. Tem um lugar na Álea dos Justos, em
Jerusalém.
Jorge
Almeida Fernandes
Leituras:
Lenbbro-me muito bem destas figuras. Era o tempo das rivalidades entre os suiços Kubler e Koblet, dos irmãos jean e "Luison" Bobet, antes da dupla Anquetil-Poulidor ou dos nossos Alves Barbosa (a quem alguns camavam o Coppi português) e Ribeiro da Silva, reeditando os célebres duelos da geração anteiror entre o benfiquista José Maria Nicolau e o "verde" Alfredo Trindade, Os dos "bouyaux" suplentes enfiados nos braços, como mostra a foto.
ResponderEliminarJoão Freire
Só queria acrescentar que Bartali tem um record que é basicamente imbatível. Venceu o Tour em edições com 10 anos de diferença. Teve o azar de ter apanhado a 2.ª guerra mundial, senão dizem que seria com toda a certeza o melhor ciclista da história, ainda melhor que Eddy Merckx. O Record de Fausto Coppi é ainda mais imbatível: venceu o Giro em edições da prova com 13 anos de diferença( 1940 e 1953)!
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