De
tempos a tempos, há uma grande editora, normalmente americana, que decide fazer,
a partir do nada, do mais absoluto zero, um êxito literário
planetário. Daqueles sucessos de massas, comprados em massa e que dão muita
massa. Quando isso sucede e a coisa funciona, logo saltam da toca as imitações
de segunda, terceira e quarta ordem. Estas contrafacções só têm um mérito: cometem
a proeza, difícil, de serem piores do que o original. Não dão tanta massa como
o original, é certo, mas alguma coisa sempre vai caindo. E, como tudo isto opera a uma escala
mundial, no final o que cai é razoável e cobre os gastos, vale o
investimento na escrita (que é pouco). Aqui há uns anos foi aquela corja da vampiragem
a entrar-nos casa adentro, normalmente a desoras e sempre com péssimas
intenções. No encalço da saga Twilight, tivemos até vampiros cowboys, aos tiros no faroeste, ou
recriações da Jane Eyre a quererem ferrar-nos os dentes no subsídio de Natal.
Agora, aproveitando a aberta das 50 Sombras de Grey, as livrarias estão
inundadas de temáticas sado-masoch, apresentadas em versão soft e calminha, para que a filhota mais velha, que já vai no 12º, também os
possa ler nos escassos intervalos da facebookada. Ao contrário do neorrealismo de outrora, esta literatura agrilhoada não
circula na clandestinidade. Na breve resenha aqui apresentada, os títulos
foram anotados na livraria do El Corte Inglés, até os empregados chamarem o
segurança e expulsarem dali o tarado de gabardina que, num caderninho negro,
escrevinhava às pressas o que ia vendo numa mesa farta e muito central, encimada
com os dizeres «Literatura Erótica». Os dizeres é que chateiam, pois de
literatura isto tem pouco e de erótico…
Não aprofundámos conteúdos, porque os
títulos falam por si, desde Pede-me o Que
Quiseres até Os Teus Desejos São Ordens,
ambos patrocinados pelo Sindicato de Empregados de Mesa e Restauração do Sul e
Ilhas. No encalço das 50 Sombras,
muitos títulos trazem números de calendário, havendo, além das clássicas mas
deslavadas Cinco Semanas em Balão (de Jules Verne), as 52 Semanas de Sedução (de Betty Herbert)
os 80 Dias. A Cor do Prazer (de Vina
Jackson) ou as 243 Semanas de Assistência
Financeira (de C. Lagarde), para
não falar do escanzelado Um Dia na Vida
de Ivan Denisovich, que também mete pancadaria com algemas mas é todo passado
entre homens reclusos, no meio dum frio do caraças. Muito bom é Cinquenta Tons de Prazer, da Marisa
Benett (patrocínio Tintas Cin?). Outro artista avançou mesmo com As Cinquenta Sombras de Mr. Darcy. Há
livros que falam da situação da mulher, sempre castigada: ora está Submissa, ora se encontra Rendida, ora vem Iluminada (da autoria P. C. Cast). Em Portugal, bem poderíamos ter obras que retratem o menosprezo das mulheres, como Precária, Assediada ou A Recibos Verdes. Nesta vaga literária, deparamos ainda com mulheres
em posições como Envolvida, Dominadora ou até Refletida. Para breve, por certo, o Esmigalhada, primeiro volume da saga Porrada Nelas. De facto, e como nas novelas, muitos destes livros aparecem
«em série» ou «em saga», como os da «série Crossfire», por ex.. Outros surgem
aos pares, com Sylvain Reynard a assinar O
Êxtase de Gabriel e O Inferno de
Gabriel, ambos com o apelativo autocolante: «As Cinquenta Sombras de Grey
Souberam a Pouco?». Curiosamente, esta mesmíssima pergunta («As Cinquenta Sombras
de Grey Souberam a Pouco?») aparece na capa de Jogos Perversos, da prolífica Shayla Black.
Quem diz que não há sentimentos nestes
livros está muito enganado. Temos sentimentos de Luxúria e de Tentação
(ambos de Eve Berlin), de Indiscrição
(de Charles Dubow) e também de Obsessão
(de Maya Banks). Já
há autores portugueses neste mercado, pelo que nos admira não ter aparecido
ainda um Nação Protectorada ou até mesmo um Algemada pela Gorda.
Submissão?
Muitíssima. Temos um A Submissa (de
Tara Sue Me), A Casa da Submissão (de
Marina Anderson), outra Submissa (mas
de Shayla Black) e um hipócrita Falsa Submissão
(de Laura Reese). Na secção de hortofloricultura, encontramos Frutos Proibidos mas também Flores Silvestres. As capas? Todas um
mimo.
A questão não é de moralismo,
entendamo-nos. A ideia de que «há espaço para tudo» é mentira. Já que falamos de fisicalidade, recordemos o óbvio: uma
livraria tem um espaço físico limitado, pelo que quanto mais invadida for por
este lixo menos sobra para coisas que valham a pena. Experimentem entrar numa
livraria para ver o que para ali vai de porcaria. Pior ainda: se perguntarmos ao
rapaz do balcão pela Anna Karénina,
lá vai ter o moço que ir ao computador para saber quem é essa miúda eslava e se a têm ou
não aprisionada em stock ou até mesmo se a danada da russa não se terá esgueirado para a prateleira
dos chicotes, aos saltos de agulha.
Nesta corrente literária, talvez o título mais expressivo seja o de um livro da consagrada Maya Banks. O nome? Delírio. A editora? Bertrand.
António Araújo
Nada de novo under the sun .Lembremos o sucesso que a literature nórdica do romance policial teve depois da trilogia Millennium de Stieg Larsson !
ResponderEliminarJá se perdeu a conta de quantos autores suecos (e todos vendem) apareceram no mercado ultimamente e o extraordinário é que brotaram num país com das menores taxas de criminalidade do planeta..
De Camilla Lackerberg (já ouviu falar ?) dizia o Washington Post recentemente:
"Mother of three and stepmother of two, published her debut novel, "The Ice Princess," in Sweden in 2003, but it's finally reaching U.S. readers. It's a highly touted, moody tale of a long-ago murder in a tiny resort town of Fjällbacka. It's a monstrous bestseller in Europe (a British trade magazine ranked her as the continent's sixth-most-popular author last year) and Pegasus Books, her American publisher, is hoping for similar success here.
She says that Scandinavian crime writers "owe a lot to Stieg Larsson" for their international success since his trilogy began conquering the world in 2005. She recounts a story about how "Princess" was snatched up by a French publisher eager to ride Larsson's popularity after his first book, "The Girl With the Dragon Tattoo." Her book has since sold 300,000 copies in France, she says, and there's a movie deal already signed there.
"People don't usually perceive Swedes as action heroes," she says in a telephone interview from her home in Stockholm. "But a real window has opened up. It's sort of thrilling and sort of surreal. . . . I was at a book festival in Madrid and the schedule had me booked to sign autographs for three hours. Three hours! I thought it was a mistake. I got there, and it wasn't. I could barely move my right hand afterwards."
O Mundo é realmente um lugar estranho AA dixit...
O que achei muito curioso é o facto de que, com raríssimas exceções, essa literatura é da autoria de mulheres.
ResponderEliminarAinda me lembro do "Nove Semanas e Meia" com a Kim Bassinger (já tem 60 anos, meu Deus!) e um canastrão (Mickey Rourke) que depois fez uma coisa muito jeitosa na pele de wrestler em pré-reforma. Para mim estas histórias de mulheres alegadamente submissas, limitadas pelo calendário (histórias, mulheres e submissão), começou no cinema...
ResponderEliminarComo este blog tem um arquivo fenomenal acho e peço que era de justiça uma homenagem (em capas) ao percursor mundial disto, o nosso Grande Vilhena. Obrigado.
ResponderEliminarEu acho que toda essa literatura é escrita por homens de barba rija, sob o pseudónimo de glamorosas mulheres. Devem ser na maior parte jovens jornalistas e candidatos a intelectuais com contratos laborais precários.
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