Além do que referi nos textos
anteriores, um outro fator explicativo do momento que atravessam as ciências
sociais e humanidades (admito que se possa ir além deste domínio) é o das
difíceis relações de vizinhança entre as diferentes disciplinas ou áreas
académicas resultantes da consciência crescente da complexidade da condição
humana e das idiossincrasias da vida em comum. Tal tendência está a conduzir ao
esgotamento do modelo universidade tal como o conhecemos.
É adquirido que um dado fenómeno social
pode ser abordado tanto pelo ângulo da história, como da sociologia, psicologia
social, economia, literatura, direito, relações internacionais, jornalismo,
antropologia, ciência política, arquitetura, entre outros. É por essa razão que
há várias décadas foram-se constituindo mecanismos de aproximação entre as
diferentes áreas do saber designados por interdisciplinaridade, multidisciplinaridade
ou transdisciplinaridade, práticas hoje correntes. Tal caminho contribuiu
indubitavelmente para que se ultrapassassem alguns bloqueios na elaboração de conhecimentos
sobre a condição humana e sobre as sociedades, mas paradoxalmente também foram-se
sempre avolumando novos obstáculos. Isso porque a colaboração entre as
diferentes disciplinas académicas foi crescendo sem que as identidades
originárias de cada uma delas fossem abandonadas. É nesse ponto que o sistema
perdeu parte importante da sua funcionalidade. Significa que com o tempo alteraram-se
de forma substantiva os pressupostos teóricos ou conceptuais de produção e
regulação de conhecimentos, porém mantiveram-se as estruturas institucionais de
funcionamento herdadas dos momentos primordiais do atual sistema académico. Tal
incongruência entre novos pressupostos
e velhas práticas de origem atingiu um
ponto de estagnação que ajuda a fazer com que o ensino superior corra o risco
de se tornar a prazo, ao menos em parte, em mais um dos muitos problemas
sociais do que, em vez disso, funcionar como referente cuja razão de ser tem a
ver com a capacidade de prevenir e preparar com sustentabilidade a
ultrapassagem de obstáculos com que se confrontam as sociedades contemporâneas
através do reforço da qualidade e renovação dos conhecimentos.
Neste passo importa esboçar uma
retrospetiva. Em geral desde o século XIX, quando foram surgindo disciplinas
como a sociologia, a economia (embora as teorias económicas remontem à época do
mercantilismo), a antropologia, a psicologia
social, entre outras, fazia sentido a compartimentação em diferentes áreas vocacionadas
para o estudo das sociedades. As razões eram compreensíveis. Além da tradição
especulativa da filosofia e do espírito positivista da época, a história andava
focada na antiguidade clássica e a avançar para a idade média, fazendo o seu longo
e lento caminhar, enquanto a compreensão do passado recente e do presente das
sociedades ficava entregue a uma espécie de terra de ninguém. Tal vácuo foi sendo
adequadamente preenchido na época por um conjunto de novas disciplinas
empíricas. Mas isso na transição do século XIX para o século XX. A questão é
que no presente, no século XXI, o contexto tornou-se substantivamente diferente,
reclamando um novo reequacionar de dados. Por um lado, a história faz-se, se
necessário, até ontem e, por outro lado, as outrora novas disciplinas tornaram-se
também herdeiras de um passado secular, ao mesmo tempo que persistem em
interessar-se até aos dias de ontem ou de hoje. Face a esta configuração original
no campo da produção e regulação de conhecimentos, tendo também em conta as
considerações sobre o estado das relações de vizinhança entre as disciplinas, é
a própria ideia de universidade, tal como se institucionalizou, que acaba por
estar em causa.
Um dos pesados obstáculos que torna
muito difícil os inevitáveis ajustamentos resulta de ter sido criado e consolidado
com o tempo um modelo de instituição universitária pesadíssimo e estático (com
os seus departamentos, disciplinas, distribuição de recursos, conflitos de
interesses, tudo muito compartimentado em disciplinas na lógica da tradição
oitocentista) que tornou a construção de conhecimentos refém das estruturas
administrativas e burocráticas das universidades quando deveria ser o
contrário, isto é, quando deveriam ser as características do objeto de
conhecimento – o indivíduo, a sociedade e o seu tempo histórico – a
condicionarem os pressupostos que a ele conduzem. O imbróglio criado é de tal
monta que se tornou num desafio para as sociedades no seu todo. O facto é que a
condição humana com muita dificuldade convive hoje espartilhada entre a
história, a economia, a psicologia social, a geografia, o direito, a
sociologia, a antropologia, entre outros.
Num momento em que as incongruências no
domínio académico são notórias, persistindo distantes de apontar para modelos
sustentáveis (ora a tentação é a de regressar à pureza solitária de cada disciplina; ora de reforçar a inter, trans ou pluri disciplinaridades
tal como têm funcionado), o que assistimos muitas vezes como preocupação visível
entre académicos é a fuga acelerada para o campo político – nos discursos mas
não menos nas práticas – com intuito de ajudar
a resolver os problemas da sua sociedade ou do seu país quando o âmago dos problemas contemporâneos reside precisamente
nas universidades.
Gabriel
Mithá Ribeiro
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