Estreou
em Portugal a última obra de Hayao Miyazaki. A última por ser a mais recente. A
última por, assim o promete o cineasta, ser a derradeira. Não a quero ver. Sei
que acabarei por vê-la, mas não a quero ver enquanto não souber mais sobre o
seu conteúdo.
No
dia em que, perambulando por um supermercado, comprei um DVD de filme de
animação em promoção, de um autor desconhecido para mim, em cuja capa se
afirmava ter sido nomeado para o Óscar – um euro por um quase-Óscar, deve valer
a pena, pensei –, descobri o universo fantástico de Hayao Miyazaki. Soube
depois que fora o criador dos anime dos
filmes da Heidi da minha infância. Mas as suas longas metragens pertencem a
outra dimensão.
O Castelo Andante
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As
mais conhecidas são “O Castelo Andante”, o quase-Óscar de 2005, e “A Viagem de
Chihiro”, que venceu o Óscar de melhor filme de animação, em 2002. Por uma vez
a Academia esteve certa, porque são ambos fabulosos. As protagonistas são duas
jovens corajosas e ingénuas, que talvez comecem sendo corajosas por serem
ingénuas mas a quem o sofrimento, desgastando a ingenuidade, reforça a coragem.
As
jovens e as meninas de Miyazaki são, aliás, notáveis e surgem em todos os seus
filmes. Desde a princesa Nausicaä que tem uma empatia especial pela natureza e
fala com os monstros Ohm, persuadindo-os e apaziguando-os, à Sophie de “O
Castelo Andante” que, amaldiçoada, nunca perde a esperança e vence pela
persistência. Depois, as meninas Satsuki e a irmã de quatro anos cuja mãe está
doente no hospital e, muitas vezes sozinhas, encontram esse gatarrão mágico,
Totoro, que só os olhos lavados das crianças conseguem ver. E Kiki, a aprendiz
de feiticeira, na sua aventura para aprender essa arte ancestral, empreendedora
quando lança um serviço de entregas aéreo, voando na sua vassoura acolitada
pelo gatinho Jiji e salvando o seu amigo quando aprende a vencer os seus medos.
Num
filme diferente, “O Porquinho Voador”, cujo título português engana por evocar
os três porquinhos, o que temos é um cínico aviador da Grande Guerra, tornado
mercenário, vendendo os seus serviços para proteger os navios de recreio do
Adriático ameaçados pela pirataria hidroaérea, que sentiu de perto o hálito
tentador da morte mas resistiu, perdendo o direito a amar. Como que para se
proteger dos sentimentos humanos, transformou-se num porco antropomórfico:
cabeça de porco, corpo de homem. Mesmo aí surge a jovem engenheira Fio, capaz
de resolver todos os problemas, enfrentar todos os perigos e despertar o amor.
O
filme anterior de Miyazaki, “Ponyo”, era uma deliciosa aventura sobre um
peixinho encantador que, depois de experimentar o sabor do sangue humano, se
transforma na menina Ponyo. Num mundo aquático ameaçado pela mão do homem,
Ponyo e o seu amigo Sosuke tudo vão fazer para salvar os homens e a natureza.
A Princesa Mononoke
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Todos
estes filmes são alegorias mágicas, onde se afirmam valores mas também se
desenvolvem frequentemente personagens ambíguas e complexas. O mais
extraordinário de todos os filmes é, na minha opinião, “A Princesa Mononoke”.
Não é dos mais elaborados tecnicamente. Nessa vertente, “A Viagem de Chihiro” e
“O Castelo Andante” têm cenas em que nos recusamos a acreditar, tal a
perfeição da imagem, multiplicando-se os pormenores assombrosos e luxuriantes
que julgaríamos impossíveis de atingir na animação.
Ao
nível da narrativa, no entanto, “A Princesa Mononoke” é uma alegoria excepcional
sobre a história do Japão. Desde que o jovem nobre Ashitaka se vê forçado a
abandonar o povo Emishi, a quem salvou do ataque de um monstro que o amaldiçoou,
sabe que nunca mais voltará ao que era e que terá para sempre de buscar a fonte
do mal. Ultrapassando mil perigos, usando de extrema violência, descobre a
Cidade do Ferro, Tataraba, governada por Eboshi, uma daquelas mulheres ambíguas
e complexas, que explora as suas trabalhadoras e que parece fazer o mal por
gosto para depois se perceber que é capaz de todas as ignomínias para salvar os
seus e um modo de vida ameaçado. E que as suas trabalhadoras especializadas
foram atingidas por uma mal – a lepra – que faria com que fossem mortas sem a
sua protecção.
Nessa
cidade fabricam-se armas de fogo, o que de imediato nos remete para a sua
introdução pelos portugueses, em 1543, na cidade costeira de Tanegashima.
Eboshi é a única que fabrica armas de fogo, pelo que tem de negociar com os
samurais do Senhor Aasano e com um agente do Imperador, o falso Jiku. A
destruição e a morte que as armas provocam são assustadoras, mas a Princesa
Mononoke, que luta com as armas tradicionais e a magia, ajudada por Ashitaka,
acaba por vencer depois de muito sofrimento. E a história como que retoma o seu
curso. Mas nunca é permitido voltar atrás.
Hayao
Miyazaki cobre com o manto da magia e da imaginação tudo o que o assombra.
Nascido em 1941, o seu pai tinha uma empresa de produção de componentes para a
aviação, usados, nomeadamente, nos famosos Mitsubishi Zero da força aérea
imperial. Daí vem o fascínio de Miyazaki pela aviação, presente em quase todos
os seus filmes. Contou, mais do que uma vez, o que o marcou na juventude: a
tranquilidade com que a sua família atravessou aqueles anos tenebrosos porque o
pai desempenhava uma função essencial para o esforço de guerra; depois, o
tempos do fim, quando assistiu ao bombardeamento de Utsunomiya, em Julho de
1945; ao que se seguiu a evacuação da cidade incendiada, em que a sua família
se acomodou em bons automóveis e o pequeno Hayao viu os pobres compatriotas que
ficavam para trás e a quem foi recusado um lugar nas viaturas para escapar à
tragédia.
Esta
é uma memória que marca Hayao Miyazaki e que marca ainda hoje o Japão. Uma
memória que criou o imperativo categórico do nunca mais. Nunca mais sofrer o
indizível.
É
interessante notar que o “anime” japonês é muito mais do que Miyazaki. Ele
fundou, com um companheiro, os famosos Estúdios Ghibli (cujo símbolo é o
gatarrão mágico Totoro). Aí surgiram muitos autores destacados e alguns filmes
extraordinários. Chamo a atenção para dois. Em primeiro lugar um filme que nos
toca fundo no coração, o terrivelmente belo “O Túmulo dos Pirilampos”, de Isao
Takahata. Parece que em 1988 já se podia fazer um filme sobre aquilo que o
jovem Hayao, e dezenas de milhões de japoneses, passaram no fim do conflito.
Deve
recordar-se que a guerra só chegou ao território do Japão muito tarde e apenas
pela via aérea. A excepção foi o primeiro ataque anfíbio a território japonês
mas que, simultaneamente, foi a última batalha da guerra. A ilha de Okinawa
pertence ao arquipélago de Ryukyu e foi tomada no decurso da maior batalha
marítimo-terrestre-aérea da história. Mas tal ocorreu apenas em Abril de 1945.
A invasão aérea começou com o “raid Doolitlle”, de 18 de Abril de 1942, mas
este teve efeitos apenas propagandísticos – dizia-se assim aos americanos que a
vingança chegava ao coração do Japão –, e
pouquíssimos japoneses se aperceberam do ataque. Na verdade, de início a
ofensiva aérea aliada tinha dificuldades em chegar ao território japonês. Só
mais tarde, com o lento avanço pelo Pacífico, sacrificado à opção estratégico-política
de dar prioridade à derrota da Alemanha, foi possível conquistar bases que
permitissem bombardeamentos em massa. Quando estes chegaram, a destruição foi
terrível, sobretudo com bombas incendiárias que aproveitavam o facto de as
habitações típicas dos japoneses serem sobretudo em madeira e papel. De facto,
morreram muito mais civis japoneses em consequência de ataques com bombas
incendiárias do que em Hiroshima e Nagasaki.
“O
Túmulo dos Pirilampos” conta a história de dois irmãos, um rapaz e uma menina,
que sobrevivem a um bombardeamento incendiário mas ficam órfãos de mãe.
Entregues a si próprios, ignorados pelos compatriotas que só pensavam na sua
própria sobrevivência, perseveram e fazem o seu caminho. Um estória
extraordinária a que assistimos com um
nó no coração, do princípio ao fim, amaldiçoando todas as guerras e todos os
egoísmos. Um tema caro a Hayao Miyazaki.
Yoshifumi Kondo, O Sussurro do Coração, 1995
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O
mesmo se pode dizer de outro filme lindo, lindo: “O Sussurro do Coração”, de
Yoshifumi Kondo, de 1995. É a obra perfeita para presentear uma adolescente que
procure o verdadeiro amor e julgue só o poder encontrar num rapaz que tenha uma
alma semelhante à sua: inteligente, sonhadora, corajosa e muito, muito amante
de livros. Shizuke, a adolescente que tem paixão por ler, descobre que todos os
livros que levanta na biblioteca já foram requisitados por alguém chamado Seiji
Amasawa. Quem será aquele que lê os mesmos livros? Só pode ser uma alma gémea,
pensa Shizuke. Mas não será um velhinho desdentado? Ray Bradbury escreveu um
conto, também ele lindo, lindo, sobre um jovem que encontra a sua alma gémea
prisioneira do corpo muito velhinho de uma senhora da cidade onde vivia; o
mínimo que se pode dizer é que a leitura desse conto é pungente. Mas aqui não,
Yoshifumi Kondo não tem esse sentido tragicómico da vida. Seiji Amasawa é um
jovem encantador que tem um sonho – ser construtor de violinos – e que
incentiva Shizuku a seguir o seu sonho – ser escritora. Depois de muitas
peripécias emocionantes, ficam juntos para sempre seguindo os seus sonhos.
Estes
filmes têm estórias muito bem contadas, animação de primeira água e muito bons
sentimentos. Mas falta-lhes o golpe de asa genial de Hayao Miyazaki. Aquela
magia que assoma a cada passo e que tudo transforma. Que, de súbito, nos cria
engulhos porque deixamos de perceber o sentido. Temos tendência a exigir da
arte um sentido. Com se tudo na vida
tivesse sentido pleno tal qual os filmes de Takahata e de Kondo, como se toda a
arte devesse ser demonstrativa e prenhe de ensinamentos facilmente legíveis.
Miyazaki
é mais estranho, mais impenetrável e sempre inesperado. Nada substitui a
primeira visão de um dos seus filmes. Quando, nas últimas cenas de “O Castelo
Andante”, o Cabeça de Nabo se liberta da sua maldição e se transforma num
príncipe que ama Sophie e nós sabemos que Sophie ama e é amada pelo mágico
Howl, percebemos que o amor do Cabeça de Nabo nunca será correspondido. Não
estávamos à espera, nunca estaríamos à espera. Porque essa impossibilidade é
trágica. Esse é, aliás, o verdadeiro significado da tragédia: algo que é sentido
como necessário e, simultaneamente, compreendido como impossível.
A
vida é feita de pequenas ou grandes tragédias dessas. Os filmes demasiado
perfeitos não. Por isso, Miyazaki não sendo perfeito, atinge a perfeição da
imaginação. Em todos os seus filmes até agora. Receio que o seu derradeiro filme,
aquele em que evoca o pai, seja diferente e, por isso, temo correr o risco de
nele não encontrar a perfeição da imaginação do pequenino Hayao, assombrado
pela sua memória, exorcizando-a com as suas alegorias fantásticas.
Quando
os meus filhos perguntam se o Lobinho que lhes garanto que está ao fundo a cama
ou os Pocós Azuis que se escondem debaixo da mesa e comem as migalhas que eles deixam
cair existem mesmo, nunca lhes digo que existem nem que não existem. Digo
sempre que existem… na sua imaginação.
É
nos sentidos obscuros que florescem na nossa imaginação que encontramos o
melhor amparo para sobrepassar as pequenas e as grandes tragédias da nossa
vida. Aí e no abraço de quem nos ama. Mas o que é o amor senão a partilha da
nossa imaginação?
José
Luís Moura Jacinto
Caro José, sem querer estragar nada, queria apenas deixar aqui algumas ideias.
ResponderEliminarVi o filme no S.Jorge e garanto que vale a pena ver, embora, aparentemente, seja o menos alegórico dos seus filmes.
Aparentemente, por que ao servir-se de uma biografia, HM reflecte sempre sobre a cultura do Japão, embora sem recorrer ao fantástico. Talvez por isso haja algumas cenas muito próximas de um certo cinismo,ao menos foi o que senti.
Pareceu-me também o mais desencantado dos seus filmes e mais melancólico.
Então, estava eu procurando pela musica do filme "Sussurros do Coração" e me deparei com a sua postagem, li e compartilho dos seus pensamentos, me doí um pouco ter assistido ao ultimo filme do Miyazaki, pois o fiz sem saber quer seria o ultimo, alguns dos filmes do estúdio Ghibli me ensinaram lições valorosas, frequentemente me trazendo lágrimas aos olhos, a riqueza de detalhes e o fato de nunca se poder voltar ao que era antes fazem suas historias tão fascinantes, e eu sinto certo pesar de ver algumas dessas historias terem chegado ao seu fim da forma que foi feita, talvez por isso eu me identifique tanto, acho que a vida acaba sendo assim mesmo, uma sucessão de caminhos sem volta, em que nada é o mesmo, nem pode retornar a graça do que foi na primeira vez, como os poetas gostam de dizer, é a natureza efêmera das coisas, parabéns pelo seu texto, está muito bem escrito, não tive coragem ainda de assistir o túmulo dos vaga-lumes, a historia toda me parece extremamente triste.
ResponderEliminarUm abraço.