quarta-feira, 30 de abril de 2014

Primavera em Providence.

 
 
 
Fotografia de Onésimo Teotónio de Almeida




terça-feira, 29 de abril de 2014

De novo, o povo.

 
 
 
 
 
 
 
Na sequência de uma recensão crítica (e aqui) que fiz ao seu livro História do Povo na Revolução Portuguesa, 1974-75, Raquel Varela publicou um artigo no Público, vários «posts» no Facebook e, no site que tem o seu nome (http://raquelcardeiravarela.wordpress.com/), um texto intitulado «António Araújo, a História e a Farsa».
         Especialmente neste último texto, optou por recorrer ao insulto pessoal, caracterizando-me como «esta personagem», «um tipo que anda apostado numa reabilitação soft de Salazar» e, enfim, «um fanático conservador». Disse que o que escrevi no Público, se fosse escrito por um aluno do 1º ano de um curso universitário, seria liminarmente devolvido ao estudante, o que me faz temer o pior pelos alunos que andam a ser formados às mãos de Raquel Varela.
         Antes de todos os outros, este é o ponto que me separa e diferencia de Raquel Varela. Por um lado, nunca recorrerei a insultos de natureza pessoal, tanto mais que não está nem nunca esteve em causa a pessoa de Raquel Varela – ou a minha – mas sim o trabalho que produziu. Nunca a tratarei por «uma tipa» ou uma «fanática». Por outro lado, e ao contrário de Raquel Varela, que insistentemente me caracteriza como «constitucionalista» e refere as funções de consultor que desempenho na Presidência da República, considero que todas as outras actividades, gratuitas ou remuneradas, que Raquel Varela exerce, ou venha a exercer na vida, em nada valorizam, desvalorizam ou devem servir de critério para avaliar o livro que deu à estampa.
         Entendo, simplesmente, que a realização de uma «história do povo» é fundamental para a compreensão do 25 de Abril, e que a historiografia portuguesa se tem centrado em demasia naquilo a que convencionalmente se chama «elites». Existem já contributos parcelares muito importantes para uma «história do povo»  – como os de Luísa Tiago Oliveira sobre o serviço cívico estudantil ou de Sónia Vespeira de Almeida sobre as campanhas de dinamização cultural do MFA (curiosamente, nenhum deles é citado por Raquel Varela, como não é citada a obra colectiva, coordenada por José Neves, que mais recente e mais detidamente procurou recortar o conceito de «povo»). Em todo o caso, permanece por elaborar uma história de conjunto sobre o papel do povo na revolução do 25 de Abril. Considero que o livro de Raquel Varela, pelas deficiências e omissões que contém, não vem preencher esta lacuna. E repito que o problema não reside em se tratar de uma obra de história ideológica mas antes no facto de, neste livro, se revelar uma ausência de densidade intelectual da autora para apoiar as suas próprias convicções. Não é concebível, por exemplo, que, numa história do povo na revolução portuguesa, que contém 535 páginas, apenas 10 páginas sejam dedicadas à Reforma Agrária.
         Ao procurar responder à crítica que fiz, Raquel Varela apresentou um conjunto de argumentos. Vejamos. 
         1 – Elites – a autora afirmou, e cito, «Ao contrário de António Araújo, não uso o conceito impreciso de elites, mas o de classes sociais». Como penso ter demonstrado, aqui, aqui e aqui, Raquel Varela utiliza o conceito de elites no seu livro (pág. 494), e já antes: por várias vezes, numa recensão publicada na revista Análise Social, em 2006; depois, num artigo publicado na Revista Brasileira de História, em 2012; finalmente, nesta e nesta entrevistas, que deu para publicitar a sua mais recente obra. Em suma, Raquel Varela pode afirmar que considera elite um «conceito impreciso», mas ao dizer que não o utiliza está a dizer uma inverdade.
 
         2 – «Erros crassos de leitura» – No texto do Ípsilon, Raquel Varela atribui-me três «erros crassos de leitura».
         O primeiro «erro crasso» residiria no facto de  «criticar a ausência de obras no livro que são por mim amplamente citadas (John Hammond)». Já antes, no Facebook, havia afirmado: «[António Araújo] diz que não cito livros que cito amplamente».
 
 
 
 
            Na recensão que fiz, digo que, entre outras obras (de Chris Harman ou Anthony Downs), Raquel Varela não refere o livro, fundamental,  Building Popular Power.Worker’s and neighborhood movements in the Portuguese Revolution, publicado em 1988. Da autoria de John L. Hammond, é este, o livro:
 
Livro de John Hammond

Bibliografia de Raquel Varela
 
 
 
 
         Como, aliás, consta da bibliografia, Raquel Varela cita – e cita várias vezes – um artigo de John L. Hammond, publicado em 1981. Não é disso que falamos, nada de cortinas de fumo. A falha que lhe apontei sempre diz respeito ao livro de 1988. Ao atribuir-me um «erro crasso de leitura», ao dizer que citou «amplamente» esse livro, Raquel Varela está a dizer uma inverdade.   
         O segundo «erro crasso de leitura» prende-se com a actuação de Salgueiro Maia no dia 25 de Abril. Raquel Varela afirma, inclusivamente, que corto intencionalmente partes de frases da sua autoria, para inverter o respectivo significado. Para que não restem dúvidas, publica-se o extracto em causa, da página 122, ficando à consideração dos leitores concluir se Raquel Varela enquadra, ou não, a acção de Salgueiro Maia numa alegada «estrutura de repressão» corporizada no MFA.
 

 
 
O terceiro «erro crasso de leitura» reside no «pacto social» e na Constituição de 1976. No livro em apreço, Raquel Varela afirma: «Argumentamos que o pacto social nasceu em 1975 e ficou consagrado na Constituição de 1976» (p. 503).
 
 
 
 
Diz igualmente, na página 80, que «o direito ao trabalho e à segurança no emprego passam a ser reconhecidos como uma bandeira central» e que isso «será um dos eixos do Pacto Social, cuja expressão jurídica ficará consagrada na Constituição Portuguesa, aprovada em 1976». E noutros trabalhos tem defendido os direitos conquistados graças ao Pacto Social. Assim, diz: «os direitos sociais em Portugal foram conquistados durante os 19 meses de período revolucionário e consolidados na década seguinte – sob a forma de um Pacto Social de facto» (Raquel Varela, «Ruptura e Pacto Social em Portugal (1974-2002», História e Perspectivas, 2013, p. 338, com uma defesa dos direitos consagrados na Constituição a pp. 353-354; Id., «Rutura e pacto social em Portugal: um olhar sobre as crises económicas, conflito político e direitos sociais em Portugal (1973-1975, 1981-1986)», in AA.VV., Quem Paga o Estado Social em Portugal?, 2012, em esp. pp. 92ss).
 
 
 
 
 
Ao dizer que o Pacto Social é fruto, entre o mais, da «radicalidade social, económica e política durante o período revolucionários» e que ele teve «expressão jurídica na Constituição», consagrando um conjunto de «direitos sociais com carácter universal em Portugal», penso ser legítimo inferir que Raquel Varela defende a Constituição e esses direitos dos trabalhadores. Ou não? A autora não prima pela clareza, pois tanto alude a um Pacto Social que teve expressão de iure na Constituição como a um Pacto Social de facto. Em todo o caso, é legítimo perguntar: se o cerco e o sequestro à Constituinte tivessem vingado, teríamos uma Constituição que garante direitos sociais? A autora, colocando-se, ao que diz, contra o «Pacto Social», preferiria que a Constituição não lhe tivesse dado expressão jurídica, consagrando esses direitos dos trabalhadores?
 
Já agora, o que diz Raquel Varela sobre os portugueses (todos eles, sem distinção) que foram viver para África. Nomeadamente, sobre o povo, que, em vez de emigrar para a Alemanha ou em França, encontrou em África o seu modo de vida, em busca, diz a autora, de uma «válvula de escape social». Esses, segundo ela, tornaram-se «cúmplices da barbárie a seu lado» e eram «homens e mulheres que faziam vénias quando um inspector da PIDE entrava num hotel ou lugar público na África colonizada por Portugal». Penso tratar-se, no mínimo, de uma generalização excessiva e abusiva. Ei-la:
 
 



Poderíamos alongar-nos, apontando novos e mais erros factuais a uma obra que, como demonstrei aqui, apresenta uma imagem do 1º de Maio dizendo tratar-se de uma fotografia do 25 de Abril, com os populares a apoiarem as manobras dos tanques do MFA. Ou de um livro que classifica António de Sousa Franco, professor de Direito, como «economista e cientista social» (p. 486). Para além, como é evidente, de a autora – e esse é o principal defeito da sua obra – não definir previamente, e com suficiente precisão, o conceito de «povo», o tópico e o tema centrais do livro que publicou.  
Para quem acusa os outros de deturparem o sentido das suas frases, Raquel Varela não está mal. Ainda assim, de uma coisa pode ficar ciente e absolutamente tranquila. Raquel Cardeira Varela pode classificar-me, vezes sem conta, como «um tipo que anda apostado numa reabilitação soft de Salazar» ou «um fanático conservador». Nunca a tratarei por «uma tipa» ou por uma «fanática». Da minha parte, nunca recorrerei a insultos desta natureza e limitar-me-ei sempre, e tão-só, a apreciar o seu trabalho, tanto nos defeitos como nas qualidades.  Não cederei a insultos, mas também não me deixarei intimidar por eles. Porquê? A resposta tem quarenta anos. E  resume-se numa palavra: liberdade. 
 
 
António Araújo  
 
 

domingo, 27 de abril de 2014

Raquel Varela, cinéfila alternativa.

 
 
 

 
 
O livro de Raquel Varela A História do Povo na Revolução Portuguesa é, todo ele, muito bom. Até nas imagens – ou, melhor dizendo, nas legendas que as acompanham.
Temos, por exemplo, esta pérola: «Populares nas ruas de Lisboa apoiam a vitória dos militares revoltosos – 25 de abril de 1974»:
 
 
 
 
 
 
 
Populares aglomeram-se, de facto. Mas nas escadarias do Cinema Império, à Alameda Afonso Henriques, por onde não consta que a revolução tenha passado.
 
Melhor ainda, o filme em exibição: «O Couraçado Potemkin», de Eisenstein. Estreou em Lisboa a 2 de Maio de 1974. As imagens, claro está, são da manifestação do 1º de Maio. O filme estrearia no dia seguinte, como se explica desenvolvidamente aqui e aqui ou até na Infopédia, aqui. Já agora, uma outra imagem, de um ângulo diferente:
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Raquel Varela discorda. E apresenta uma  leitura historiográfica alternativa destes acontecimentos. Segundo a historiadora, a imagem exibe, isso sim: «Populares nas ruas de Lisboa apoiam a vitória dos militares revoltosos – 25 de abril de 1974».
Pensar que no dia 25 de Abril de 1974 estava em cartaz o filme de Eisenstein, que o governo de Marcelo Caetano permitiria a exibição de «O Couraçado Potemkin» é não perceber NADA do que era o Estado Novo, a repressão e a censura.  
Confirma-se, uma vez mais.
Raquel Varela escreve do que não sabe ou já não sabe o que escreve.



 

il miglior fabbro.

 
 
Vasco Graça Moura (1942-2014)
 
 
 



sábado, 26 de abril de 2014

Onde estão as elites?

 
 
 


 



 


 
 
 
Regressando a Raquel Varela, que diz não saber o que são «elites», e afirma não usar este «conceito impreciso», vejamos hoje uma recensão que publicou na revista Análise Social, precisamente sobre o 25 de Abril.
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E um artigo, também sobre o 25 de Abril, que publicou na Revista Brasileira de História. 
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Atente-se, já agora, na quantidade de vezes que a expressão «elite» é utilizada neste livro de que foi co-coordenadora.
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Aliás, na entrevista que deu a João Céu e Silva, a propósito da sua História do Povo, diz, com modéstia: «Há pressões fortíssimas sobre nós, porque quase todas as elites de hoje tiveram um papel na revolução e reclamam o seu testemunho que é parte da história».
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Confirma-se, portanto.
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Raquel Varela escreve do que não sabe ou já não sabe o que escreve.

 

Horta, 1962.

 
 
Colecção Cortez Liberato 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Onde estão as elites?

 
 



 

No Público de hoje, Raquel Varela pretende responder a uma recensão que fiz à sua obra História do Povo na Revolução Portuguesa.
A dado passo, afirma: «não uso o conceito impreciso de elites».
E já antes, no Facebook, tinha dito: «não sei o que são elites (...) é um conceito impreciso que não uso no meu trabalho».
Veja-se a página 494 do livro.
Raquel Varela escreve do que não sabe ou já não sabe o que escreve.
 
 


quinta-feira, 24 de abril de 2014

24 de Abril de 1974 (e antes).

 
 
 
 
Bastaria ver não mais do que dois filmes para apresentar numa cápsula o país que era Portugal anterior ao 25 de Abril.
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A memória é uma construção. A memória é o que fica depois de rasurados, esquecidos, distorcidos, subestimados e processados os acontecimentos e os factos de um tempo. A memória é, pois, o que se consagra como a imagem (que se presume verdadeira, ou, havendo temeridade, exata) de uma época. Esta manipulação e depuração não decorrem forçosamente de uma atitude de má-fé, com vontade de ocultar ou iludir, mas de uma selecção natural fomentada pelo cérebro humano – mesmo que a este cérebro possamos chamar de “consciência colectiva”.

 
Determinou a consciência colectiva portuguesa que a memória dos tempos cessados com o dia 25 de Abril tenha um cunho essencialmente político e que esse período se caracterize pelo regime político que estava em vigor. Não há quem duvide designar esse regime como uma ditadura, embora se mantenha a discussão sobre a configuração dessa ditadura.

 
Só 38% dos portugueses contemporâneos tinha mais de 10 anos aquando do 25 de Abril; ou seja, só 38% de nós guarda alguma memória direta e sensível dessa data. Mas só 25% da população actual tinha mais de 20 anos ao dia 24 de Abril, o que significa que só um quarto dos portugueses vivos (em 2011) tem uma experiência integral dos tempos da ditadura.
 
A memória meramente política do Antigo Regime é, pois, a única hoje disponível para quem não “esteve lá”. Ora essa memória tem omitido e desbotado que aquilo que durou até ao 25 de Abril foi muito pior do que uma ditadura política.

 
O Antigo Regime foi uma longa e torpe sonolência, um deslassamento sem fim à vista do entusiasmo pelo novo que varria o hemisfério ocidental (dos Beatles ou dos Doors a Woodstock, do Vaticano II a Jean-Luc Godard, da minissaia ao Maio de 68); um cerramento na mesmidade, na espécie de miséria mental que era ter ficado para trás, encalhado na autocomiseração. E estes eram os avatares das minúsculas classes médias urbanas, que ainda tinham a possibilidade de ir a Paris ou Londres ver como era. No imenso resto do país, uma charneca que de noite mergulhava na escuridão e que ainda hoje leva a etiqueta de “país real”, era uma pobreza confrangida e um quotidiano confrangedor, o mais das vezes tão conformada que não sabia doutro modo de vida.

 
Por cima disto pairava uma sombra – a guerra. Mas essa era como se não fizesse parte, por ser longínqua e calada.

 
Custa a acreditar mas era assim.

 
Claro que as pessoas riam, tinham alegrias e satisfações, faziam amor e criavam filhos, porque estas são emoções inalienáveis e não há ditadura que as extinga, mas o horizonte era curtíssimo e o júbilo, esse excesso, era improvável e descabido. E claro, também, que a resistência à ditadura se cingiu a um grupo restrito de pessoas e o heroísmo (ou seja, o compromisso absoluto com essa resistência, que acarretava um rosário incessante de perigos e incómodos, como ser preso e torturado ou ter que viver debaixo de olho da polícia) a uma fracção ainda mais reduzida de indivíduos – nada de excepcionalmente português nisto.

 
Como explicar aos vivos de hoje a suave mas insidiosa abjeção desta existência? Talvez vendo-a dentro dos filmes da época.


 
SARILHOS DE FRALDAS
Um deles é “Sarilhos de Fraldas” de 1967. Foi um tremendo êxito de bilheteira e era abrilhantado pelas supernovas da canção nacional António Calvário e Madalena Iglésias; o comedy relief estava garantido por um Nicolau Breyner a fazer de Louis de Funès abastardado; Tonicha lançava-se como estrela nascente; e para assegurar a ligação ao passado putativamente glorioso da “comédia portuguesa” e ao popularíssimo teatro de revista, António Silva fazia o seu cameo.

 
A inverosimilhança do argumento de “Sarilhos de Fraldas” é de uma extravagância vizinha do dadaísmo. Um Volkswagen verde estaciona mesmo atrás doutro VW verde na Av. da Igreja. Só por volta de Pombal é que António Calvário repara que trocou de carro e que no banco de trás vai uma alcofa com um bebé. Mas a monumental e imparável digressão que está a fazer com Madalena Iglésias por esse país fora (o Porto rivaliza com Las Vegas em néons) impede-os, como lhes parece óbvio, de devolverem o bebé na esquadra ou na Misericórdia mais próximas. A dona do carro roubado queixa-se na Judiciária e segue-se uma perseguição policial iniciada com a frase mais fulminante da história do cinema português: ao saber que Calvário parara no complexo nó rodoviário do Carregado (uma esquina com uma placa a dizer “Porto” e outra “Santarém”) o inspector sai a correr avisando os colegas: “parto ainda hoje para o Carregado!”

 
Mas a deixa não está isolada, praticamente todos os diálogos conferem este supino calibre sintático (como se pode verificar pela amostra junto). Além de que “Sarilhos de Fraldas” é um “musical”, segundo a fórmula: (Minnelli ÷ estúdios da Tobis) + (Demy ÷ coristas do Parque Mayer).

 
 
 

 
 
 
Está cá tudo. O Portugal dúctil e pueril, que o Antigo Regime apascentava, ressalta intacto neste filme e, na sua tremenda ingenuidade, podemos vê-lo como o retrato aparvalhado de um país simplório. “Sarilhos de Fraldas” tem todas as (más) razões para se tornar um filme de culto como os de Ed Wood, porque é um paradigma do kitsch. Convém, portanto, desmobilizar as especulações de Walter Benjamin, Hermman Broch, Abraham Moles, e ainda dos pós-modernismos, se quisermos ultrapassar o exercício de ironia ou de relativização que a fita incentiva e que deveras empobrece o olhar. Melhor será levar a sério o que “Sarilhos de Fraldas” revela, em vez de nos determos no gozo que nos dá aquilo que mostra ou diz. Porque é precisamente a sua fragilidade, estalado o verniz da competência técnica, artística e narrativa, que o torna verdadeiramente interessante aos nossos olhos, como um involuntário documento de uma época.
 
Pretendendo inserir-se no género “musical” e medir-se com os filmes “lá de fora”, “Sarilhos de Fraldas” exibe uma formidável anacronismo, sintomático do atraso em que vivia o entretenimento nacional. Houve quem acreditasse que o moribundo cinema musical ressuscitava com “Música no Coração” (1965), um dos maiores sucessos cinematográficos de sempre em Portugal e no mundo, e que seria possível parasitar esse ressurgimento à maneira portuguesa. Isto torna “Sarilhos de Fraldas” uma peça idiossincrática, estribada nos cançonetistas nacionais. Madalena Iglésias (“Ele e ela”, 1966) Calvário (“Oração”, 1964) estavam no auge da celebridade e, embora humilhantemente ignorados na Eurovisão, rutilavam uma star quality paroquial, formando o casalinho de sonho; até havia a bruxa má na figura de Simone de Oliveira, para completar o arranjo. Descansem os cépticos que não é só contemporânea a constatação de que a formidável incompatibilidade entre os ademanes efeminados dele e a frigidez expressiva dela, torna implausível qualquer simulacro de atração física entre Madalena e António. Naquela altura, como eles demonstram com infatigável reserva, estavam ainda muito ao largo da costa portuguesa aquilo que Larkin descobriu no ano de 1963 em “Annus Mirabilis”. Mas não faltava quem desse por isso e “Sarilhos de Fraldas” foi vituperado, com toda a violência possível, pelos inimigos deste Portugal do Regime e desta alienada imagem ele.  

 
Tal como o país de então, “Sarilhos de Fraldas” alimenta-se de mistificações. Elas são tão límpidas e cândidas, que nos permitem perceber que o mundo anterior ao 25 de Abril está no fundo de um túnel do qual perdemos a entrada.

 
MEUS AMIGOS
Mas, como sempre sucede, ao lado e por baixo destas imagens, havia outro espectro de imagens, a fazerem outras realidades. Havia outro Portugal antes do 25 de Abril – aquele que se declarou vencedor depois desse dia. E, precisamente, porque triunfou – Vae victis! – tomou entre mãos a memória, a qual é extraordinariamente plástica e moldável, como se sabe.

 
Está por fazer uma história do Cinema Novo que não seja a dos próprios protagonistas, canónica e oficiosa. O movimento começou lendariamente no café Vavá e debutou com a imensa vitalidade de “Belarmino” (Fernando Lopes, 1964). E depois? Depois, até à década de 70, o mais que deu terá sido a figura da Dra. Maria Barroso, toda Teatro Nacional Amélia Rey Colaço, airosamente descalça em cima da caruma a fazer boquinha de grão-de-bico como quem quer ser povo. Convenhamos que não é fácil acreditar nisto.

 

Maria Barroso em “Mudar de vida” (Paulo Rocha, 1967)

 
 
Nos anos 70, esta geração despertou com algum caudal cinematográfico, mas as contrariedades e as contradições e algumas desavenças, embora mais surdas que públicas, puseram escolhos ao seu curso. Mais ou menos de fora, como se “de ombro na ombreira”, Eduardo Guerra Carneiro, descreve a coisa assim, com as entrelinhas indispensáveis ao ludíbrio da censura:

 
"Os guerrilheiros que saem do Vává benzem-se à sua maneira, como se a próspera guerrilha se fundasse em qualquer casa além da linha. Sábios de nascença citam nomes e têm decorada uma biblioteca, tal qual alguns desenraizados do Saldanha - mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade."
in “Isto anda tudo ligado”, 1970 (repescado do blog “duas ou três coisas” de Francisco Seixas da Costa).

 
Disse quem viu e sabia.

 
Mas, na verdade, existe um filme angular e imprescindível, que captura com uma sinceridade pungente (inadvertida ou intencional?) O pathos desesperançado e o ethos hiper-auto-crítico reinante entre as hostes oposicionistas no annus horribilis de 1973: em Abril, a Oposição Democrática constata-se desunida e crivada de melindres e suspeitas recíprocas no Congresso de Aveiro, o qual foi rematado com a proverbial carga da polícia, e em Outubro realizam-se as eleições do regime, já sem as ilusões de uma “abertura” e com grande crueza repressiva.
 


 
 
O filme é “Meus amigos” (1973) do produtor & realizador António Cunha Telles e foi rodado entre aqueles dois famigerados acontecimentos. A história foi ingrata com ele. Estreado mês e meio antes do 25 de Abril, foi completamente superado e desactualizado pela revolução. Tudo o que era uma evidência no dia 24 deixou de o ser no dia 26 – sobretudo vice-versa; os “vencidos da vida” em 24 acordaram em 26 com as portas do poder abertas graças a uma vitória que lhes caiu no regaço. A inevitabilidade do 25 de Abril só foi evidente depois de ele ter sido inesperadamente feito por quem menos se previa (a redundância é, neste caso, apropriada).

 
“Meus amigos” tem sofrido de uma discrição e de um esquecimento de todo imerecido (há de ser exibido brevemente na Cinemateca em belíssima cópia restaurada). Os seus méritos cinematográficos são muito curtos, mas a forma como se expõe é rara, sobretudo no Portugal contido, previsto e cauteloso da época. Sim, será uma heresia, mas “Meus amigos” é, na riqueza de entrelinhas e na aspereza do entrevisto, comparável a “Sarilhos de fraldas”.

 
O filme é longo mas cada vez menos penoso, para quem o foi revendo ao longo destes anos, em que se foi distanciando do seu tempo. Cunha Telles claramente encantara-se com “L’Amour fou” (1969) o film fleuve de Rivette, em que as personagens deambulam e interagem sujeitas aos azares do momento, a partir de meia dúzia de indicações e de escassas linhas de diálogo; a câmara anda atrás delas e a montagem, acometida pelo pudor, limita-se pouco mais do que a juntar estas sequências, num tempo longo e vagaroso.

 
Assim é “Meus amigos” nos seus 140 minutos de duração. Três colegas (amigos?) da Faculdade, da geração de 62, encontram-se e desencontram-se, conversam e embirram; ou seja, a famosa geração chegava à idade madura, os 30 anos, e tinha as portas fechadas, a consciência torturado e a vida por resolver – e é isto o argumento.  

 
À primeira vista o filme é um desconchavo. A mise-en-scène é rudimentar, quase sempre à volta de uma mesa, ou em exteriores pouco mais que paisagísticos, com uma notável exceção no Cais do Sodré em que a cena mais ousada do filme (um beijo muito esfregado) é filmada no meio de mirones. As sequências (raras têm movimentos de câmara) terminam quando acaba o rolo de filme na máquina, o que é muito patente nas mudanças de bobine na projeção.

 
Mas há postas suculentas:

 
Os diálogos são digressivas improvisações, por vezes penosas, a partir de um texto molecular e esboçado. Desancorados, estes discursos saltitam de grande tema em grande tema, sobre questões de consciência e de princípio, atormentados por uma ideia de autenticidade e ambicionando atingir uma verdade. Mas o verbo e a verve não dão para mais. Cheios de vontade de palpitarem grandes fulgores espirituais ou rasgos intelectuais intensos, sobretudo Modesto Navarro e Manuel Madeira acabam, à uma, com a personalidade dissecada pelas mulheres (Lia Gama e Teresa Mota são especialmente argutas) e, à outra, – o que hoje é particularmente constrangedor – evidenciam as suas gritantes debilidades e insuficiências: para nada têm resposta a não ser uns clichés pouco convictos, mastigam a desilusão sem alternativas, tudo os amarfanha e assumem uma pose rotativamente cínica, sarcástica e irónica, típica dos que se escondem nestas afetações para escamotearem a falta de vigor. Uma geração que se achava perdida e a culpa era “do sistema” – no way out.

 
Em “Meus amigos” as personagens são indestrinçáveis dos atores. São elas: José Vaz Pereira, o quadro de uma grande empresa; António Modesto Navarro: o intelectual desempegado, insinuando militância no Partido (coisa que não se podia dizer abertamente), saído de um casamento frustrante com uma menina rica; Manuel Madeira: o rebelde niilista regressado de Paris. Depois há as femininas: Lia Gama, a tal menina rica; Teresa Mota, a jovem namorada de Navarro e Maria Otília, a pobre coitada que se envolve com Madeira. Na verdade, esta biografia é pouco distinta da dos próprios atores à época (neles, porque nelas vê-se trabalho de atriz) e Modesto Navarro haveria de ser preso no dia 6 de Abril de 1974, por volta da estreia do filme.

 
Estes actores-personagens são deixados ao deus-dará: há gestos e olhares infinitesimais em que parecem estar a acertar as marcações. Nalguns momentos quase descambam no insulto quando se criticam com a aspereza dos virtuosos e com uma irritação aparentemente genuína. Tantas são as vezes que Teresa Mota se queixa de que “vocês não me deixam falar”, que fica a sensação de vermos uma actriz a dar indicações de cena, mais do que uma personagem a intervir num diálogo.

 
Reza a lenda da rodagem do filme que Cunha Telles os espicaçava e se não for verdade é bem achado porque o filme tem um inesperado e suspenso final, à machadada, quando esta confusão atinge o auge. Veja-se, imperdível, aqui

 
A conclusão que é permitido retirar de “Meus amigos” é demasiado dura e insuportável para a sua geração: se dependesse daquela oposição política nunca teria havido 25 de Abril. E isto é difícil.
 
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Praticamente meio século volvido, “Sarilhos de fraldas” e “Meus amigos” têm muito mais em comum do que alguma vez poderiam ter suposto, já que a feroz dialéctica que os opunha é, toda ela, estranha à consciência contemporânea. O tempo não volta para trás, ao contrário do que suplicava António Mourão, por isso não mata esperanças vãs. Ambos se perderam no tempo, desapareceram na memória, tornaram-se invisíveis, que é a pior expiação de um filme, nascido para ser visto. Ambos, também, estão longe de serem primores cinematográficos, cada um com o seu lote particular e específico de defeitos. Mas esta má qualidade é encantadora porque nos revela o que nenhum documentário (essa equívoca forma de ficção) nos pode dar. Na verdade, os objectos ficcionais, que manipulam a dita realidade em função dos seus objectivos diegéticos, acabam por se exporem muito mais às condições do seu tempo de um modo inconsciente. Porque um filme é sempre um conjunto de imagens provenientes de uma realidade que lhe é exterior, que às vezes tenta escamotear, mas que em todo o caso, nunca da realidade se liberta.

 
Assim “Sarilhos de fraldas” e “Meus amigos”: dois filmes prisioneiros da sua época, de um tempo que os infectou e que a memória, se não fossem eles, teria obliterado.
 
José Navarro de Andrade