Fotografia de Onésimo Teotónio de Almeida
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quarta-feira, 30 de abril de 2014
terça-feira, 29 de abril de 2014
De novo, o povo.
Na
sequência de uma recensão crítica (e aqui) que fiz ao seu livro História do
Povo na Revolução Portuguesa, 1974-75, Raquel Varela publicou um artigo no Público, vários «posts» no Facebook e, no site que tem o seu nome (http://raquelcardeiravarela.wordpress.com/),
um texto intitulado «António Araújo, a História e a Farsa».
Especialmente neste último texto, optou
por recorrer ao insulto pessoal, caracterizando-me como «esta personagem», «um tipo que
anda apostado numa reabilitação soft de Salazar» e, enfim, «um fanático
conservador». Disse que o que escrevi no Público, se fosse escrito por um aluno do 1º ano de um curso universitário, seria liminarmente devolvido ao estudante, o que me faz temer o pior pelos alunos que andam a ser formados às mãos de Raquel Varela.
Antes de todos os outros, este é o
ponto que me separa e diferencia de Raquel Varela. Por um lado, nunca recorrerei
a insultos de natureza pessoal, tanto mais que não está nem nunca esteve em
causa a pessoa de Raquel Varela – ou a minha – mas sim o trabalho que produziu.
Nunca a tratarei por «uma tipa» ou uma «fanática». Por outro lado, e ao contrário de Raquel Varela, que insistentemente me caracteriza
como «constitucionalista» e refere as funções de consultor que desempenho na Presidência da
República, considero que todas as outras actividades, gratuitas ou remuneradas, que Raquel Varela exerce, ou venha a exercer na vida, em nada valorizam, desvalorizam ou devem servir de critério para avaliar o livro que deu à estampa.
Entendo, simplesmente, que a realização
de uma «história do povo» é fundamental para a compreensão do 25 de Abril, e
que a historiografia portuguesa se tem centrado em demasia naquilo a que convencionalmente
se chama «elites». Existem já contributos parcelares muito importantes para uma «história do povo» – como os
de Luísa Tiago Oliveira sobre o serviço cívico estudantil ou de Sónia Vespeira de
Almeida sobre as campanhas de dinamização cultural do MFA (curiosamente, nenhum
deles é citado por Raquel Varela, como não é citada a obra colectiva,
coordenada por José Neves, que mais recente e mais detidamente procurou
recortar o conceito de «povo»). Em
todo o caso, permanece por elaborar uma história de conjunto sobre o papel do
povo na revolução do 25 de Abril. Considero que o livro de Raquel Varela, pelas
deficiências e omissões que contém, não vem preencher esta lacuna. E repito que
o problema não reside em se tratar de uma obra de história
ideológica mas antes no facto de, neste livro, se revelar uma ausência de
densidade intelectual da autora para apoiar as suas próprias convicções. Não é concebível, por exemplo, que, numa história
do povo na revolução portuguesa, que contém 535 páginas, apenas 10 páginas
sejam dedicadas à Reforma Agrária.
Ao procurar responder à crítica que
fiz, Raquel Varela apresentou um conjunto de argumentos. Vejamos.
1 – Elites – a autora afirmou, e cito,
«Ao contrário de António Araújo, não uso o conceito impreciso de elites, mas o de classes sociais». Como penso ter demonstrado, aqui, aqui e aqui, Raquel Varela utiliza o
conceito de elites no seu livro (pág. 494), e já antes: por várias vezes, numa
recensão publicada na revista Análise
Social, em 2006; depois, num artigo publicado na Revista Brasileira de História, em 2012; finalmente, nesta e nesta
entrevistas, que deu para publicitar a sua mais recente obra. Em suma, Raquel Varela pode
afirmar que considera elite um «conceito impreciso», mas ao dizer que não o utiliza
está a dizer uma inverdade.
2 – «Erros crassos de leitura» – No texto do Ípsilon, Raquel Varela
atribui-me três «erros crassos de leitura».
O primeiro «erro crasso» residiria no
facto de «criticar a ausência de obras no livro que são por mim amplamente citadas (John Hammond)». Já antes, no Facebook, havia afirmado: «[António
Araújo] diz que não cito livros que cito amplamente».
Na recensão que fiz, digo
que, entre outras obras (de Chris Harman ou Anthony Downs), Raquel Varela não
refere o livro, fundamental, Building Popular Power.Worker’s and neighborhood movements in the Portuguese Revolution, publicado
em 1988. Da autoria de John L. Hammond, é este, o livro:
Bibliografia de Raquel Varela
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Como, aliás, consta da bibliografia, Raquel Varela cita – e cita várias
vezes – um artigo de John L. Hammond, publicado em 1981. Não é disso que falamos, nada de cortinas de fumo. A
falha que lhe apontei sempre diz respeito ao livro de 1988. Ao atribuir-me um «erro
crasso de leitura», ao dizer que citou «amplamente» esse livro, Raquel Varela está a dizer uma inverdade.
O segundo «erro crasso de leitura» prende-se com a actuação de Salgueiro Maia no dia 25 de Abril. Raquel Varela afirma,
inclusivamente, que corto intencionalmente partes de frases da sua autoria,
para inverter o respectivo significado. Para que não restem dúvidas, publica-se
o extracto em causa, da página 122, ficando à consideração dos leitores concluir se Raquel
Varela enquadra, ou não, a acção de Salgueiro Maia numa alegada «estrutura de repressão» corporizada no MFA.
O
terceiro «erro crasso de leitura» reside no «pacto social» e na Constituição de
1976. No livro em apreço, Raquel Varela afirma: «Argumentamos que o pacto
social nasceu em 1975 e ficou consagrado na Constituição de 1976» (p. 503).
Diz
igualmente, na página 80, que «o direito ao trabalho e à segurança no emprego
passam a ser reconhecidos como uma bandeira central» e que isso «será um dos
eixos do Pacto Social, cuja expressão jurídica ficará consagrada na
Constituição Portuguesa, aprovada em 1976». E noutros trabalhos tem defendido
os direitos conquistados graças ao Pacto Social. Assim, diz: «os direitos
sociais em Portugal foram conquistados durante os 19 meses de período
revolucionário e consolidados na década seguinte – sob a forma de um Pacto
Social de facto» (Raquel Varela,
«Ruptura e Pacto Social em Portugal (1974-2002», História e Perspectivas, 2013, p. 338, com uma defesa dos direitos consagrados
na Constituição a pp. 353-354; Id., «Rutura e pacto social em Portugal: um olhar
sobre as crises económicas, conflito político e direitos sociais em Portugal
(1973-1975, 1981-1986)», in AA.VV., Quem
Paga o Estado Social em Portugal?, 2012, em esp. pp. 92ss).
Ao dizer que o
Pacto Social é fruto, entre o mais, da «radicalidade social, económica e
política durante o período revolucionários» e que ele teve «expressão jurídica na
Constituição», consagrando um conjunto de «direitos sociais com carácter
universal em Portugal», penso ser legítimo inferir que Raquel Varela defende a
Constituição e esses direitos dos trabalhadores. Ou não? A autora não prima pela clareza, pois tanto alude a um Pacto Social que teve expressão de iure na Constituição como a um Pacto Social de facto. Em todo o caso, é legítimo perguntar: se o cerco e o sequestro à Constituinte tivessem vingado, teríamos uma Constituição que garante direitos sociais? A autora, colocando-se, ao que diz, contra o «Pacto Social», preferiria que a Constituição não lhe tivesse dado expressão jurídica, consagrando esses direitos dos trabalhadores?
Já agora, o que diz Raquel Varela sobre os portugueses (todos eles, sem distinção) que foram viver para África. Nomeadamente, sobre o povo, que, em vez de emigrar para a Alemanha ou em França, encontrou em África o seu modo de vida, em busca, diz a autora, de uma «válvula de escape social». Esses, segundo ela, tornaram-se «cúmplices da barbárie a seu lado» e eram «homens e mulheres que faziam vénias quando um inspector da PIDE entrava num hotel ou lugar público na África colonizada por Portugal». Penso tratar-se, no mínimo, de uma generalização excessiva e abusiva. Ei-la:
Poderíamos alongar-nos, apontando novos e mais erros factuais a uma obra que, como demonstrei aqui, apresenta uma imagem do 1º de Maio dizendo tratar-se de uma fotografia do 25 de Abril, com os populares a apoiarem as manobras dos tanques do MFA. Ou de um livro que classifica António de Sousa Franco, professor de Direito, como «economista e cientista social» (p. 486). Para além, como é evidente, de a autora – e esse é o principal defeito da sua obra – não definir previamente, e com suficiente precisão, o conceito de «povo», o tópico e o tema centrais do livro que publicou.
Mas
há outro ponto que, esse sim, merece ser realçado. Entre o vasto conjunto de insultos
pessoais que me dirige, afirma, entre aspas, que terei dito: «nunca precisou de bolsas na FCT na vida». Ora, o que afirmei, numa entrevista ao Expresso, foi: «Há actualmente um problema gravíssimo. Os historiadores que estão na academia já estãoempregados. E os da minha geração, ou abaixo dela, estão à mercê dos programasde investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Nunca tive nem pedi bolsas da FCT, mas amigos e colegas meus, que querem fazer trabalho sério,estão a ficar numa situação muito difícil.»
Para quem acusa os outros de deturparem o sentido das suas frases,
Raquel Varela não está mal. Ainda assim, de uma coisa pode ficar ciente e
absolutamente tranquila. Raquel Cardeira Varela pode classificar-me, vezes sem conta,
como «um
tipo que anda apostado numa reabilitação soft de Salazar» ou «um fanático
conservador». Nunca a tratarei por «uma tipa» ou por uma «fanática». Da minha parte, nunca recorrerei a insultos desta natureza e
limitar-me-ei sempre, e tão-só, a apreciar o seu trabalho, tanto nos defeitos como nas qualidades. Não cederei a insultos, mas também não me deixarei intimidar por eles. Porquê? A resposta tem quarenta anos. E resume-se numa palavra: liberdade.
António Araújo
domingo, 27 de abril de 2014
Raquel Varela, cinéfila alternativa.
O
livro de Raquel Varela A História do Povo
na Revolução Portuguesa é, todo ele, muito bom. Até nas imagens – ou,
melhor dizendo, nas legendas que as acompanham.
Temos,
por exemplo, esta pérola: «Populares nas ruas de Lisboa apoiam a vitória dos
militares revoltosos – 25 de abril de 1974»:
Populares
aglomeram-se, de facto. Mas nas escadarias do Cinema Império, à Alameda Afonso
Henriques, por onde não consta que a revolução tenha passado.
Melhor
ainda, o filme em exibição: «O Couraçado Potemkin», de Eisenstein. Estreou em
Lisboa a 2 de Maio de 1974. As imagens, claro está, são da manifestação do 1º
de Maio. O filme estrearia no dia seguinte, como se explica desenvolvidamente aqui e aqui ou até na Infopédia, aqui. Já agora,
uma outra imagem, de um ângulo diferente:
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Raquel
Varela discorda. E apresenta uma leitura historiográfica alternativa destes acontecimentos. Segundo a historiadora, a imagem exibe, isso sim: «Populares nas ruas de Lisboa
apoiam a vitória dos militares revoltosos – 25 de abril de 1974».
Pensar
que no dia 25 de Abril de 1974 estava em cartaz o filme de Eisenstein, que o governo de
Marcelo Caetano permitiria a exibição de «O Couraçado Potemkin» é não perceber
NADA do que era o Estado Novo, a repressão e a censura.
Raquel
Varela escreve do que não sabe ou já não sabe o que escreve.
Onde estão as elites?
(Raquel Varela, in Diário da Liberdade.
Portal Anticapitalista da Galiza e os Países Lusófonos)
Portal Anticapitalista da Galiza e os Países Lusófonos)
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sábado, 26 de abril de 2014
Onde estão as elites?
Regressando a Raquel
Varela, que diz não saber o que são «elites», e afirma não usar este «conceito
impreciso», vejamos hoje uma recensão que publicou na revista Análise Social, precisamente sobre o 25
de Abril.
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E um artigo, também sobre o 25 de Abril, que publicou na Revista Brasileira de História.
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Atente-se, já agora, na quantidade de vezes que a expressão «elite» é utilizada neste livro de que foi co-coordenadora.
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Aliás, na entrevista que deu a João Céu e Silva, a propósito da sua História do Povo, diz, com modéstia: «Há pressões fortíssimas sobre nós, porque quase todas as elites de hoje tiveram um papel na revolução e reclamam o seu testemunho que é parte da história».
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Confirma-se, portanto.
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Raquel Varela escreve
do que não sabe ou já não sabe o que escreve.
sexta-feira, 25 de abril de 2014
Onde estão as elites?
No Público de hoje, Raquel Varela pretende responder a uma recensão
que fiz à sua obra História do Povo na
Revolução Portuguesa.
A dado passo, afirma: «não uso o conceito impreciso de elites».
E já antes, no Facebook, tinha dito: «não sei o que são elites (...) é um
conceito impreciso que não uso no meu trabalho».
Veja-se a
página 494 do livro.
Raquel Varela escreve do que não sabe ou já não sabe o que escreve.
quinta-feira, 24 de abril de 2014
24 de Abril de 1974 (e antes).
Bastaria ver não
mais do que dois filmes para apresentar numa cápsula o país que era Portugal
anterior ao 25 de Abril.
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A memória é uma
construção. A memória é o que fica depois de rasurados, esquecidos,
distorcidos, subestimados e processados os acontecimentos e os factos de um
tempo. A memória é, pois, o que se consagra como a imagem (que se presume
verdadeira, ou, havendo temeridade, exata) de uma época. Esta manipulação e
depuração não decorrem forçosamente de uma atitude de má-fé, com vontade de
ocultar ou iludir, mas de uma selecção natural fomentada pelo cérebro humano –
mesmo que a este cérebro possamos chamar de “consciência colectiva”.
Determinou a
consciência colectiva portuguesa que a memória dos tempos cessados com o dia 25
de Abril tenha um cunho essencialmente político e que esse período se
caracterize pelo regime político que estava em vigor. Não há quem duvide designar
esse regime como uma ditadura, embora se mantenha a discussão sobre a
configuração dessa ditadura.
Só 38% dos
portugueses contemporâneos tinha mais de 10 anos aquando do 25 de Abril; ou
seja, só 38% de nós guarda alguma memória direta e sensível dessa data. Mas só
25% da população actual tinha mais de 20 anos ao dia 24 de Abril, o que
significa que só um quarto dos portugueses vivos (em 2011) tem uma experiência integral
dos tempos da ditadura.
A memória
meramente política do Antigo Regime é, pois, a única hoje disponível para quem
não “esteve lá”. Ora essa memória tem omitido e desbotado que aquilo que durou
até ao 25 de Abril foi muito pior do que uma ditadura política.
O Antigo Regime
foi uma longa e torpe sonolência, um deslassamento sem fim à vista do
entusiasmo pelo novo que varria o hemisfério ocidental (dos Beatles ou dos
Doors a Woodstock, do Vaticano II a Jean-Luc Godard, da minissaia ao Maio de
68); um cerramento na mesmidade, na espécie de miséria mental que era ter
ficado para trás, encalhado na autocomiseração. E estes eram os avatares das
minúsculas classes médias urbanas, que ainda tinham a possibilidade de ir a Paris
ou Londres ver como era. No imenso resto do país, uma charneca que de noite mergulhava
na escuridão e que ainda hoje leva a etiqueta de “país real”, era uma pobreza
confrangida e um quotidiano confrangedor, o mais das vezes tão conformada que
não sabia doutro modo de vida.
Por cima disto
pairava uma sombra – a guerra. Mas essa era como se não fizesse parte, por ser longínqua
e calada.
Custa a
acreditar mas era assim.
Claro que as
pessoas riam, tinham alegrias e satisfações, faziam amor e criavam filhos,
porque estas são emoções inalienáveis e não há ditadura que as extinga, mas o
horizonte era curtíssimo e o júbilo, esse excesso, era improvável e descabido. E
claro, também, que a resistência à ditadura se cingiu a um grupo restrito de
pessoas e o heroísmo (ou seja, o compromisso absoluto com essa resistência, que
acarretava um rosário incessante de perigos e incómodos, como ser preso e
torturado ou ter que viver debaixo de olho da polícia) a uma fracção ainda mais
reduzida de indivíduos – nada de excepcionalmente português nisto.
Como explicar
aos vivos de hoje a suave mas insidiosa abjeção desta existência? Talvez vendo-a
dentro dos filmes da época.
SARILHOS DE
FRALDAS
Um deles é “Sarilhos
de Fraldas” de 1967. Foi um tremendo êxito de bilheteira e era abrilhantado
pelas supernovas da canção nacional António Calvário e Madalena Iglésias; o comedy relief estava garantido por um Nicolau
Breyner a fazer de Louis de Funès abastardado; Tonicha lançava-se como estrela
nascente; e para assegurar a ligação ao passado putativamente glorioso da
“comédia portuguesa” e ao popularíssimo teatro de revista, António Silva fazia
o seu cameo.
A
inverosimilhança do argumento de “Sarilhos de Fraldas” é de uma extravagância vizinha
do dadaísmo. Um Volkswagen verde estaciona mesmo atrás doutro VW verde na Av. da
Igreja. Só por volta de Pombal é que António Calvário repara que trocou de
carro e que no banco de trás vai uma alcofa com um bebé. Mas a monumental e imparável
digressão que está a fazer com Madalena Iglésias por esse país fora (o Porto
rivaliza com Las Vegas em néons) impede-os, como lhes parece óbvio, de devolverem
o bebé na esquadra ou na Misericórdia mais próximas. A dona do carro roubado
queixa-se na Judiciária e segue-se uma perseguição policial iniciada com a
frase mais fulminante da história do cinema português: ao saber que Calvário parara
no complexo nó rodoviário do Carregado (uma esquina com uma placa a dizer
“Porto” e outra “Santarém”) o inspector sai a correr avisando os colegas: “parto
ainda hoje para o Carregado!”
Mas a deixa não
está isolada, praticamente todos os diálogos conferem este supino calibre sintático
(como se pode verificar pela amostra junto). Além de que “Sarilhos de Fraldas”
é um “musical”, segundo a fórmula: (Minnelli ÷ estúdios da Tobis) + (Demy ÷ coristas
do Parque Mayer).
Está cá tudo. O
Portugal dúctil e pueril, que o Antigo Regime apascentava, ressalta intacto
neste filme e, na sua tremenda ingenuidade, podemos vê-lo como o retrato
aparvalhado de um país simplório. “Sarilhos de Fraldas” tem todas as (más)
razões para se tornar um filme de culto como os de Ed Wood, porque é um
paradigma do kitsch. Convém,
portanto, desmobilizar as especulações de Walter Benjamin, Hermman Broch,
Abraham Moles, e ainda dos pós-modernismos, se quisermos ultrapassar o
exercício de ironia ou de relativização que a fita incentiva e que deveras
empobrece o olhar. Melhor será levar a sério o que “Sarilhos de Fraldas”
revela, em vez de nos determos no gozo que nos dá aquilo que mostra ou diz. Porque
é precisamente a sua fragilidade, estalado o verniz da competência técnica,
artística e narrativa, que o torna verdadeiramente interessante aos nossos
olhos, como um involuntário documento de uma época.
Pretendendo
inserir-se no género “musical” e medir-se com os filmes “lá de fora”, “Sarilhos
de Fraldas” exibe uma formidável anacronismo, sintomático do atraso em que vivia
o entretenimento nacional. Houve quem acreditasse que o moribundo cinema musical
ressuscitava com “Música no Coração” (1965), um dos maiores sucessos
cinematográficos de sempre em Portugal e no mundo, e que seria possível
parasitar esse ressurgimento à maneira portuguesa. Isto torna “Sarilhos de
Fraldas” uma peça idiossincrática, estribada nos cançonetistas nacionais. Madalena
Iglésias (“Ele e ela”, 1966) Calvário (“Oração”, 1964) estavam no auge da
celebridade e, embora humilhantemente ignorados na Eurovisão, rutilavam uma star quality paroquial, formando o
casalinho de sonho; até havia a bruxa má na figura de Simone de Oliveira, para
completar o arranjo. Descansem os cépticos que não é só contemporânea a
constatação de que a formidável incompatibilidade entre os ademanes efeminados
dele e a frigidez expressiva dela, torna implausível qualquer simulacro de
atração física entre Madalena e António. Naquela altura, como eles demonstram
com infatigável reserva, estavam ainda muito ao largo da costa portuguesa
aquilo que Larkin descobriu no ano de 1963 em “Annus Mirabilis”. Mas não
faltava quem desse por isso e “Sarilhos de Fraldas” foi vituperado, com toda a
violência possível, pelos inimigos deste Portugal do Regime e desta alienada
imagem ele.
Tal como o país
de então, “Sarilhos de Fraldas” alimenta-se de mistificações. Elas são tão
límpidas e cândidas, que nos permitem perceber que o mundo anterior ao 25 de
Abril está no fundo de um túnel do qual perdemos a entrada.
MEUS AMIGOS
Mas, como sempre
sucede, ao lado e por baixo destas imagens, havia outro espectro de imagens, a
fazerem outras realidades. Havia outro Portugal antes do 25 de Abril – aquele
que se declarou vencedor depois desse dia. E, precisamente, porque triunfou – Vae
victis! – tomou entre mãos a memória, a qual é extraordinariamente plástica e
moldável, como se sabe.
Está por fazer
uma história do Cinema Novo que não seja a dos próprios protagonistas, canónica
e oficiosa. O movimento começou lendariamente no café Vavá e debutou com a imensa
vitalidade de “Belarmino” (Fernando Lopes, 1964). E depois? Depois, até à
década de 70, o mais que deu terá sido a figura da Dra. Maria Barroso, toda
Teatro Nacional Amélia Rey Colaço, airosamente descalça em cima da caruma a
fazer boquinha de grão-de-bico como quem quer ser povo. Convenhamos que não é
fácil acreditar nisto.
Maria Barroso em “Mudar de vida” (Paulo Rocha, 1967)
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Nos anos 70,
esta geração despertou com algum caudal cinematográfico, mas as contrariedades
e as contradições e algumas desavenças, embora mais surdas que públicas, puseram
escolhos ao seu curso. Mais ou menos de fora, como se “de ombro na ombreira”,
Eduardo Guerra Carneiro, descreve a coisa assim, com as entrelinhas
indispensáveis ao ludíbrio da censura:
"Os
guerrilheiros que saem do Vává benzem-se à sua maneira, como se a próspera
guerrilha se fundasse em qualquer casa além da linha. Sábios de nascença citam
nomes e têm decorada uma biblioteca, tal qual alguns desenraizados do Saldanha
- mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme
as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à
bandoleira e telefonam com muita assiduidade."
in “Isto anda
tudo ligado”, 1970 (repescado do blog “duas ou três coisas” de Francisco Seixas
da Costa).
Disse quem viu e
sabia.
Mas, na verdade,
existe um filme angular e imprescindível, que captura com uma sinceridade
pungente (inadvertida ou intencional?) O pathos
desesperançado e o ethos hiper-auto-crítico
reinante entre as hostes oposicionistas no annus
horribilis de 1973: em Abril, a Oposição Democrática constata-se desunida e
crivada de melindres e suspeitas recíprocas no Congresso de Aveiro, o qual foi
rematado com a proverbial carga da polícia, e em Outubro realizam-se as
eleições do regime, já sem as ilusões de uma “abertura” e com grande crueza
repressiva.
O filme é “Meus
amigos” (1973) do produtor & realizador António Cunha Telles e foi rodado
entre aqueles dois famigerados acontecimentos. A história foi ingrata com ele.
Estreado mês e meio antes do 25 de Abril, foi completamente superado e
desactualizado pela revolução. Tudo o que era uma evidência no dia 24 deixou de o
ser no dia 26 – sobretudo vice-versa; os “vencidos da vida” em 24 acordaram em
26 com as portas do poder abertas graças a uma vitória que lhes caiu no regaço.
A inevitabilidade do 25 de Abril só foi evidente depois de ele ter sido
inesperadamente feito por quem menos se previa (a redundância é, neste caso,
apropriada).
“Meus amigos”
tem sofrido de uma discrição e de um esquecimento de todo imerecido (há de ser
exibido brevemente na Cinemateca em belíssima cópia restaurada). Os seus
méritos cinematográficos são muito curtos, mas a forma como se expõe é rara,
sobretudo no Portugal contido, previsto e cauteloso da época. Sim, será uma
heresia, mas “Meus amigos” é, na riqueza de entrelinhas e na aspereza do
entrevisto, comparável a “Sarilhos de fraldas”.
O filme é longo mas
cada vez menos penoso, para quem o foi revendo ao longo destes anos, em que se
foi distanciando do seu tempo. Cunha Telles claramente encantara-se com “L’Amour
fou” (1969) o film fleuve de Rivette,
em que as personagens deambulam e interagem sujeitas aos azares do momento, a
partir de meia dúzia de indicações e de escassas linhas de diálogo; a câmara anda
atrás delas e a montagem, acometida pelo pudor, limita-se pouco mais do que a
juntar estas sequências, num tempo longo e vagaroso.
Assim é “Meus
amigos” nos seus 140 minutos de duração. Três colegas (amigos?) da Faculdade,
da geração de 62, encontram-se e desencontram-se, conversam e embirram; ou
seja, a famosa geração chegava à idade madura, os 30 anos, e tinha as portas
fechadas, a consciência torturado e a vida por resolver – e é isto o argumento.
À primeira vista
o filme é um desconchavo. A mise-en-scène
é rudimentar, quase sempre à volta de uma mesa, ou em exteriores pouco mais que
paisagísticos, com uma notável exceção no Cais do Sodré em que a cena mais
ousada do filme (um beijo muito esfregado) é filmada no meio de mirones. As
sequências (raras têm movimentos de câmara) terminam quando acaba o rolo de
filme na máquina, o que é muito patente nas mudanças de bobine na projeção.
Mas há postas
suculentas:
Os diálogos são
digressivas improvisações, por vezes penosas, a partir de um texto molecular e esboçado.
Desancorados, estes discursos saltitam de grande tema em grande tema, sobre
questões de consciência e de princípio, atormentados por uma ideia de
autenticidade e ambicionando atingir uma verdade. Mas o verbo e a verve não dão
para mais. Cheios de vontade de palpitarem grandes fulgores espirituais ou
rasgos intelectuais intensos, sobretudo Modesto Navarro e Manuel Madeira
acabam, à uma, com a personalidade dissecada pelas mulheres (Lia Gama e Teresa
Mota são especialmente argutas) e, à outra, – o que hoje é particularmente
constrangedor – evidenciam as suas gritantes debilidades e insuficiências: para
nada têm resposta a não ser uns clichés pouco convictos, mastigam a desilusão
sem alternativas, tudo os amarfanha e assumem uma pose rotativamente cínica,
sarcástica e irónica, típica dos que se escondem nestas afetações para
escamotearem a falta de vigor. Uma geração que se achava perdida e a culpa era
“do sistema” – no way out.
Em “Meus amigos”
as personagens são indestrinçáveis dos atores. São elas: José Vaz Pereira, o
quadro de uma grande empresa; António Modesto Navarro: o intelectual
desempegado, insinuando militância no Partido (coisa que não se podia dizer
abertamente), saído de um casamento frustrante com uma menina rica; Manuel
Madeira: o rebelde niilista regressado de Paris. Depois há as femininas: Lia
Gama, a tal menina rica; Teresa Mota, a jovem namorada de Navarro e Maria
Otília, a pobre coitada que se envolve com Madeira. Na verdade, esta biografia
é pouco distinta da dos próprios atores à época (neles, porque nelas vê-se
trabalho de atriz) e Modesto Navarro haveria de ser preso no dia 6 de Abril de
1974, por volta da estreia do filme.
Estes
actores-personagens são deixados ao deus-dará: há gestos e olhares
infinitesimais em que parecem estar a acertar as marcações. Nalguns momentos quase
descambam no insulto quando se criticam com a aspereza dos virtuosos e com uma
irritação aparentemente genuína. Tantas são as vezes que Teresa Mota se queixa
de que “vocês não me deixam falar”, que fica a sensação de vermos uma actriz a
dar indicações de cena, mais do que uma personagem a intervir num diálogo.
Reza a lenda da
rodagem do filme que Cunha Telles os espicaçava e se não for verdade é bem
achado porque o filme tem um inesperado e suspenso final, à machadada, quando esta
confusão atinge o auge. Veja-se, imperdível, aqui.
A conclusão que
é permitido retirar de “Meus amigos” é demasiado dura e insuportável para a sua
geração: se dependesse daquela oposição política nunca teria havido 25 de Abril.
E isto é difícil.
* * *
Praticamente
meio século volvido, “Sarilhos de fraldas” e “Meus amigos” têm muito mais em
comum do que alguma vez poderiam ter suposto, já que a feroz dialéctica que os
opunha é, toda ela, estranha à consciência contemporânea. O tempo não volta
para trás, ao contrário do que suplicava António Mourão, por isso não mata
esperanças vãs. Ambos se perderam no tempo, desapareceram na memória,
tornaram-se invisíveis, que é a pior expiação de um filme, nascido para ser
visto. Ambos, também, estão longe de serem primores cinematográficos, cada um
com o seu lote particular e específico de defeitos. Mas esta má qualidade é
encantadora porque nos revela o que nenhum documentário (essa equívoca forma de
ficção) nos pode dar. Na verdade, os objectos ficcionais, que manipulam a dita
realidade em função dos seus objectivos diegéticos, acabam por se exporem muito
mais às condições do seu tempo de um modo inconsciente. Porque um filme é
sempre um conjunto de imagens provenientes de uma realidade que lhe é exterior,
que às vezes tenta escamotear, mas que em todo o caso,
nunca da realidade se liberta.
Assim “Sarilhos
de fraldas” e “Meus amigos”: dois filmes prisioneiros da sua época, de um tempo
que os infectou e que a memória, se não fossem eles, teria obliterado.
José Navarro de
Andrade
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