Roger Casement (1864-1916)
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O
António Araújo publicou aqui um post
sobre dois missionários baptistas que denunciaram as atrocidades cometidas no
Congo do Rei Leopoldo sobre os trabalhadores da borracha. Para quem, como eu,
ensina Direito Internacional do Trabalho há mais de vinte anos não poderia
haver tema mais convidativo.
De
imediato recordei a figura de Roger Casement, fascinante e enigmático, herói
estigmatizado, Cavaleiro do Império e traidor a Sua Majestade. E, acima de
tudo, o diplomata humanitário que deu o maior contributo para destruir a imagem
do maior proprietário do mundo: o actual Zaire, com os seus 2,5 milhões de
quilómetros quadrados, era propriedade privada do Rei Leopoldo, por obra e
graça da Conferência de Berlim de 1885. Foi por causa de Casement que Conan
Doyle falou no maior crime registado nos anais da Humanidade e que Mark Twain
aludiu ao “Rei com 10 milhões de mortos na consciência”.
Muitos
foram os que denunciaram os crimes, desde John Harris e Alice Seeley. Mas
Casement era diplomata britânico, cônsul em Boma, capital do Estado Livre do
Congo. Uns podiam ter a força das convicções e das fotografias. Roger Casement
teve por detrás dele a força do Império Britânico. O seu relatório, que o Foreign Office tornou público em 1904,
mudou tudo. Foi constituída uma comissão de inquérito internacional que confirmou
o essencial dos factos relatados. Restou a Leopoldo deixar que a Bélgica
anexasse o Congo em 1908. No ano seguinte, teve o bom senso de morrer. Seria
interessante, se tivesse teimado em viver, constatar se a reacção internacional
em 1914 a propósito da invasão da Bélgica seria tão virulenta sendo seu monarca
o universalmente detestado Leopoldo.
Roger
Casement é um personagem que não tem fim. A literatura não o esqueceu: Mário
Vargas Llosa, depois de tantos biógrafos, dedicou-lhe em 2010 um romance, O Sonho do Celta. A produção teórica
sobre o nacionalismo irlandês, sobre a influência da comunidade irlandesa na
política interna norte-americana, sobre a Grande Guerra, sobre o direito
internacional do trabalho, sobre a influência da opinião pública na formação da
política externa das potências, sobre estudos coloniais, sobre os estudos de
género, sobre política (a propósito dos temas da memória política e do estado
de emergência), sobre a jurisprudência inglesa (dele se diz que foi condenado
por causa de uma vírgula), sobre a sua influência na literatura (em Joseph
Conrad, por exemplo), tem abordado Casement dos mais diversos ângulos.
Vou
apenas tocar alguns episódios da sua vida que têm relação com Portugal. Casement
perdeu a mãe, primeiro, depois o pai, muito cedo. Lendo livros de aventuras,
criou uma imagem romântica sobre África que o levou a um emprego na marinha
mercante. Com 20 anos já tinha feito três viagens a África. Fixou-se no Congo
até obter a primeira nomeação pública na… Nigéria. Em 1890, no Congo, conheceu
Joseph Conrad, que capitaneava o vapor Roi
des Belges no rio Congo, transportando borracha e marfim. Conrad simpatizou
com Casement que em Inglaterra, anos mais tarde, pediu, com pouco sucesso, que
o escritor o auxiliasse na sua campanha.
De
seguida, entrou na diplomacia como cônsul em Lourenço Marques (27.6.1895). Aí
permaneceu durante três anos. Teve um papel relevante nas relações dos
portugueses com, imagine-se, Gungunhana.
Foi
nomeado cônsul para as possessões portuguesas na África Ocidental ao sul do
golfo da Guiné (Angola e São Tomé) em 29 de Julho de 1898. Durante a guerra dos
Boeres foi colocado na Cidade do Cabo em 1899 e 1900. Depois disse que foi aí,
constatando a brutalidade dos vencedores, que então criaram o infame conceito
de “campo de concentração”, que começou a comparar a situação dos povos
colonizados com a dos irlandeses secularmente submetidos.
Em
20 de Agosto de 1900 foi designado cônsul no Congo belga, ou seja, no Estado
Livre do Congo, pertença do Rei Leopoldo. Um ano depois foi também designado cônsul
no Congo Francês.
Em
1903, o Governo inglês, pressionado por uma campanha na qual as fotografias do
casal Harris foram o principal trunfo, pediu-lhe que se dirigisse à região da
extracção de borracha para apurar da veracidade dos relatos que chegavam às
capitais europeias. Casement subiu o rio Congo e os seus despachos telegrafados
não descreviam nada de especialmente relevante.
Até
que deparou com um caso de mutilação. A partir de então os seus despachos
tornaram-se muito alarmistas.
Após
o regresso a Inglaterra, o Foreign Office
publicou o seu relatório, por decisão pessoal do Primeiro-Ministro Lord
Salisbury, o que produziu um grande escândalo internacional e forçou o governo
inglês a agir, exigindo que fossem tomadas medidas. O Rei Leopoldo ainda
ameaçou entregar o Congo aos alemães, mas acabou por fazer aquilo que planeava
adiar para depois da sua morte, com um legado ao Estado belga, permitindo em
1908 a sua anexação pela Bélgica.
Casement
foi, então, designado cônsul em Lisboa. Esteve por cá apenas em Novembro e no
início de Dezembro de 1906. A sua saúde ficara comprometida em África. Tendo
uma recaída, foi tratar-se a Londres e resignou ao cargo de Lisboa.
De
seguida, Casement foi enviado como diplomata para um outro país de língua
portuguesa, o Brasil. Cônsul em S. Paulo e no Paraná, em agosto de 1906, cônsul
em Belém, em Dezembro de 1907, finalmente cônsul-geral no Rio de Janeiro, em Dezembro
de 1908. De 1909 a 1912, de novo a pedido do Foreign Office, desenvolveu um inquérito sobre a indústria da
borracha nas longínquas paragens da selva amazónica, junto ao rio Putumayo, na
disputada fronteira entre o Perú e a Colômbia. As denúncias tinham começado a
ser divulgadas na Europa por um engenheiro norte-americano, Walter Hardenburg,
que investigara a Peruvian Amazon Company, de capitais britânicos mas dominada
por caucheros locais.
Castigo, em Putumayo
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Casement
subiu o Amazonas, investigou, deparou com abusos terríveis. Também daí resultou
um relatório devastador sobre os abusos cometidos pelos caucheros. Um deles, tinha sido o célebre Fitzcarrald, cuja vida
aventurosa, mas breve (morreu aos 35 anos), já foi retratada no cinema. Bem
mais tenebroso, e bem vivo quando Casement visitou a região, era um tal Julio
Cesar Arana, responsável por grande parte das perfídias descritas por Casement.
Deu conta, por exemplo, do ocorrido no início de 1900, quando aproximadamente
quarenta mil indígenas tinham sido massacrados de forma atroz: ensopavam os
cabelos de homens, mulheres e crianças em querosene e deitavam-lhes fogo,
depois de serem torturados e violados. A própria Rosa Luxemburgo ficaria
impressionada e citaria este relatório, numa nota de pé de página sem indicação
do autor, no seu “A Acumulação do Capital”. Apesar de todas as denúncias, Arana
continuaria a gozar tranquilamente da sua colossal fortuna, sendo um respeitado
senador peruano e morrendo em Lima em 1952, com a provecta idade de 85 anos.
Julio Cesar Arana
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Como
já se viu, os barcos desempenharam um papel central na vida de Casement. Em Outubro
de 1914 tomou a iniciativa fatal de seguir no Oskar II para a Noruega, em trânsito para a Alemanha, onde contava
aliciar prisioneiros irlandeses para combater contra o domínio inglês. Em Abril
de 1916 tomou lugar num submarino alemão para a Irlanda, a caminho do Easter Rising que, assim o esperava,
libertaria a sua pátria. Pouco depois, aprisionado, seguiria de barco para a
Inglaterra. Contra todas as regras da common
law, o governo inglês decidiu que ele não poderia ser julgado na Irlanda.
Nenhum júri, devidamente formado, o condenaria. Foi trancafiado na Torre de
Londres, a prisão de todos os traidores à Coroa britânica. Foi aí que recebeu
um telegrama de um velho conhecido: Julio Cesar Arana, com singular desfaçatez,
dirigia-se-lhe para o aconselhar, como bom amigo, a renunciar à sua causa e,
assim, salvar a sua preciosa vida.
Note-se
que Casement podia ter-se salvado se tivesse alegado insanidade. Ele sabia que
o Home Office tinha divulgado selectivamente
os seus diários, onde se tornava evidente a sua homossexualidade. Nesses
tempos, bastaria tal facto tornar-se conhecido para provar a existência de uma
doença mental. O governo inglês tinha admitido essa saída, para evitar a
criação de um mártir. Casement sabia disso e preferiu morrer. Afinal, quando
entrou no pequeno bote que o levou a uma praia irlandesa, o oficial alemão
perguntou-lhe de que precisava, ao que retorquiu que apenas precisava da sua
mortalha.
Também
é certo que, apesar da influência governamental numa matéria eminentemente
política, o caso judicial seguiria os seus trâmites. Ora, o Attorney-General que, no caso inglês, é
membro do Cabinet, é que teria
competência para comutar a pena. Sucede que o acusador no processo de Casement
tinha sido o próprio Attorney-General.
Ou seja, aquele que iria decidir se daria razão aos que pediram clemência era o
próprio que tinha pedido a condenação. Tratava-se de um grande causídico, F. E.
Smith, mais tarde Lord Birkenhead, um dos mais próximos aliados de, pasme-se,
Winston Churchill.
E
quem pedira clemência? Conan
Doyle, Bernard Shaw, Sidney e Beatrice Webb. E dois
escritores que muito aprecio: J. K. Jerome e Chesterton. Também o arcebispo de
Cantuária. Não, afinal este não. Tinha primeiro pedido clemência, mas deu um
passo atrás. Dissuadido por quem? Pelo Reverendo John Hobbis Harris que já
conhecemos do Congo, e que fora um dos eleitos pelo Foreign Office para conhecer o conteúdo dos diários. Horrorizado,
fez tudo para que o arcebispo não se juntasse aos peticionários. Fazendo jus ao
destaque que o António Araújo deu à sua mulher, Alice Seeley, não sabemos se,
neste ponto, ela concordou com a posição do marido. Vamos admitir que, em
reconhecimento pelo papel que Casement desempenhou na mudança da situação no
Congo, terá defendido o patriota irlandês (quanto à possibilidade de as coisas
terem efectivamente mudado, estamos provavelmente a ser optimistas: ficou
célebre a viagem, em 1926 e 1927, de André Gide pela África francesa, nomeadamente
pelo Congo Brazzaville, que levou à denúncia de tantos abusos; não foi ao Congo
Belga, é certo, mas é de admitir que a situação aí, embora não tão dramática
como no tempo do Rei Leopoldo, estivesse longe de ser ideal).
Neste
longo percurso de vida, aventurosa e arriscada, há algo que se destaca: Roger
Casement esteve em três colónias portuguesas, em Portugal e num país de língua
portuguesa. Nunca deu conta de uma violação dos direitos do homem, como hoje
diríamos, em qualquer desses locais. E não se pode dizer que não houvesse uma
campanha em Inglaterra contra o nosso governo e os nossos proprietários. O caso
das roças de São Tomé, por exemplo, provocou um famoso caso judicial envolvendo
a empresa Cadbury.
O
Evening Standard publicou alguns
artigos denunciando as condições em que se produzia cacau em São Tomé, acusando
a Cadbury Bros Ltd. de cumplicidade nos terríveis abusos que aí seriam
praticados há muitos anos. A família Cadbury era quaker, e apresentava a sua
empresa como a empregadora ideal. Até tinha criado para os seus trabalhadores
ingleses, junto à cidade de Birmingham, uma aldeia perfeita, Bournville (ainda
existe e também deu nome a um chocolate criado há mais de um século). Se se
provasse que George Cadbury tinha conhecimento pessoal dos abusos, a sua
reputação cairia na lama. Ora, o seu filho, William Cadbury, tinha estado em
São Tomé em 1901, tendo constatado as condições de trabalho. E tinham decidido continuar
a comprar o cacau são-tomense porque o da Costa do Ouro, o actual Gana, era
muito mais caro, porque as regras de trabalho eram fiscalizadas pelo Colonial Office. A propósito, de 1905 a
1908, imaginem quem desempenhou as funções de Under-Secretary of State for the Colonies: um tal Winston
Churchill, no seu primeiro cargo governamental…
Desde
1903, vários membros da família Cadbury deslocaram-se a Lisboa para questionar
os plantadores, tendo continuado a importar o cacau de São Tomé. Até que o
escândalo desencadeado pelo Evening
Standard obrigou a família Cadbury a reagir. No caso judicial que se
seguiu, o Evening Standard foi defendido pelo brilhante advogado e político
(irlandês ferozmente unionista) Edward Carson que, mais tarde, também teria um
papel na tragédia de Casement. Na sequência do escândalo, a família Cadbury
resignou-se a comprar cacau noutro sítio. William Cadbury, para se redimir,
visitou as colónias portuguesas, tendo escrito a obra Labour in Portuguese West Africa, onde dedica especial atenção aos
trabalhadores angolanos que eram enviados para São Tomé, aparentemente com
contrato, na prática submetidos a trabalho forçado. Devo aqui dar uma nota
pessoal: o meu pai foi juiz em São Tomé na segunda metade dos anos cinquenta do
século passado e ainda julgou um caso terrível relacionado com trabalhadores de
origem angolana que, tendo sido vítimas de abusos, se revoltaram e foram aprisionados
em condições sub-humanas.
A
verdade é que, sobre tudo isto e mais que houvesse, Casement disse nada.
Permito-me terminar com algo que se passou muitos anos depois: em 1919 foi
criada a Organização Internacional do Trabalho. A constituição da OIT contém a
possibilidade de um Estado membro apresentar queixa contra outro Estado membro
devido, não a questões de direito internacional, mas por causa de matérias que
eram, naquela época e, para muitos, ainda hoje de cariz puramente interno:
violações de direitos fundamentais dos trabalhadores.
Acontece
que, apesar daquela possibilidade, nunca tal mecanismo foi posto em prática
durante os primeiros quarenta anos de vida da OIT. Até que, em 1961, alguém
apresentou queixa. Quem seria? O recém-independente Gana, pois então. E quem
foi denunciado: Portugal, como não poderia deixar de ser. Tinha eclodido a
guerra colonial. Antes disso, em 1959, Portugal tinha sido um dos primeiros
Estados membros da OIT a ratificar a convenção nº 105, de 1957, sobre a
abolição do trabalho forçado. Logo os governantes ganeses aproveitaram para
tentar prejudicar a reputação do colonialismo português suave.
A
queixa foi recebida, foi criada uma comissão de inquérito que se dirigiu a
Angola e Moçambique. As autoridades portuguesas receberam a delegação da OIT.
Foi-lhe permitido visitar o que quis e falar com quem quis. Os trabalhadores
africanos foram interrogados sem a presença de empregadores e de autoridades
locais. É o que consta do relatório da comissão. Nada foi provado contra Portugal,
pelo que este caso acabou por redundar numa vitória da propaganda portuguesa.
José
Luís Moura Jacinto
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