sexta-feira, 4 de abril de 2014

Roger Casement e Portugal.

 
 
 
 
Roger Casement (1864-1916)
 
 
 
O António Araújo publicou aqui um post sobre dois missionários baptistas que denunciaram as atrocidades cometidas no Congo do Rei Leopoldo sobre os trabalhadores da borracha. Para quem, como eu, ensina Direito Internacional do Trabalho há mais de vinte anos não poderia haver tema mais convidativo.
De imediato recordei a figura de Roger Casement, fascinante e enigmático, herói estigmatizado, Cavaleiro do Império e traidor a Sua Majestade. E, acima de tudo, o diplomata humanitário que deu o maior contributo para destruir a imagem do maior proprietário do mundo: o actual Zaire, com os seus 2,5 milhões de quilómetros quadrados, era propriedade privada do Rei Leopoldo, por obra e graça da Conferência de Berlim de 1885. Foi por causa de Casement que Conan Doyle falou no maior crime registado nos anais da Humanidade e que Mark Twain aludiu ao “Rei com 10 milhões de mortos na consciência”.
Muitos foram os que denunciaram os crimes, desde John Harris e Alice Seeley. Mas Casement era diplomata britânico, cônsul em Boma, capital do Estado Livre do Congo. Uns podiam ter a força das convicções e das fotografias. Roger Casement teve por detrás dele a força do Império Britânico. O seu relatório, que o Foreign Office tornou público em 1904, mudou tudo. Foi constituída uma comissão de inquérito internacional que confirmou o essencial dos factos relatados. Restou a Leopoldo deixar que a Bélgica anexasse o Congo em 1908. No ano seguinte, teve o bom senso de morrer. Seria interessante, se tivesse teimado em viver, constatar se a reacção internacional em 1914 a propósito da invasão da Bélgica seria tão virulenta sendo seu monarca o universalmente detestado Leopoldo.
Roger Casement é um personagem que não tem fim. A literatura não o esqueceu: Mário Vargas Llosa, depois de tantos biógrafos, dedicou-lhe em 2010 um romance, O Sonho do Celta. A produção teórica sobre o nacionalismo irlandês, sobre a influência da comunidade irlandesa na política interna norte-americana, sobre a Grande Guerra, sobre o direito internacional do trabalho, sobre a influência da opinião pública na formação da política externa das potências, sobre estudos coloniais, sobre os estudos de género, sobre política (a propósito dos temas da memória política e do estado de emergência), sobre a jurisprudência inglesa (dele se diz que foi condenado por causa de uma vírgula), sobre a sua influência na literatura (em Joseph Conrad, por exemplo), tem abordado Casement dos mais diversos ângulos.
Vou apenas tocar alguns episódios da sua vida que têm relação com Portugal. Casement perdeu a mãe, primeiro, depois o pai, muito cedo. Lendo livros de aventuras, criou uma imagem romântica sobre África que o levou a um emprego na marinha mercante. Com 20 anos já tinha feito três viagens a África. Fixou-se no Congo até obter a primeira nomeação pública na… Nigéria. Em 1890, no Congo, conheceu Joseph Conrad, que capitaneava o vapor Roi des Belges no rio Congo, transportando borracha e marfim. Conrad simpatizou com Casement que em Inglaterra, anos mais tarde, pediu, com pouco sucesso, que o escritor o auxiliasse na sua campanha.
De seguida, entrou na diplomacia como cônsul em Lourenço Marques (27.6.1895). Aí permaneceu durante três anos. Teve um papel relevante nas relações dos portugueses com, imagine-se, Gungunhana.
Foi nomeado cônsul para as possessões portuguesas na África Ocidental ao sul do golfo da Guiné (Angola e São Tomé) em 29 de Julho de 1898. Durante a guerra dos Boeres foi colocado na Cidade do Cabo em 1899 e 1900. Depois disse que foi aí, constatando a brutalidade dos vencedores, que então criaram o infame conceito de “campo de concentração”, que começou a comparar a situação dos povos colonizados com a dos irlandeses secularmente submetidos.
Em 20 de Agosto de 1900 foi designado cônsul no Congo belga, ou seja, no Estado Livre do Congo, pertença do Rei Leopoldo. Um ano depois foi também designado cônsul no Congo Francês.
Em 1903, o Governo inglês, pressionado por uma campanha na qual as fotografias do casal Harris foram o principal trunfo, pediu-lhe que se dirigisse à região da extracção de borracha para apurar da veracidade dos relatos que chegavam às capitais europeias. Casement subiu o rio Congo e os seus despachos telegrafados não descreviam nada de especialmente relevante.
Até que deparou com um caso de mutilação. A partir de então os seus despachos tornaram-se muito alarmistas.
Após o regresso a Inglaterra, o Foreign Office publicou o seu relatório, por decisão pessoal do Primeiro-Ministro Lord Salisbury, o que produziu um grande escândalo internacional e forçou o governo inglês a agir, exigindo que fossem tomadas medidas. O Rei Leopoldo ainda ameaçou entregar o Congo aos alemães, mas acabou por fazer aquilo que planeava adiar para depois da sua morte, com um legado ao Estado belga, permitindo em 1908 a sua anexação pela Bélgica.
Casement foi, então, designado cônsul em Lisboa. Esteve por cá apenas em Novembro e no início de Dezembro de 1906. A sua saúde ficara comprometida em África. Tendo uma recaída, foi tratar-se a Londres e resignou ao cargo de Lisboa.
De seguida, Casement foi enviado como diplomata para um outro país de língua portuguesa, o Brasil. Cônsul em S. Paulo e no Paraná, em agosto de 1906, cônsul em Belém, em Dezembro de 1907, finalmente cônsul-geral no Rio de Janeiro, em Dezembro de 1908. De 1909 a 1912, de novo a pedido do Foreign Office, desenvolveu um inquérito sobre a indústria da borracha nas longínquas paragens da selva amazónica, junto ao rio Putumayo, na disputada fronteira entre o Perú e a Colômbia. As denúncias tinham começado a ser divulgadas na Europa por um engenheiro norte-americano, Walter Hardenburg, que investigara a Peruvian Amazon Company, de capitais britânicos mas dominada por caucheros locais.
 
Castigo, em Putumayo

 
 
Casement subiu o Amazonas, investigou, deparou com abusos terríveis. Também daí resultou um relatório devastador sobre os abusos cometidos pelos caucheros. Um deles, tinha sido o célebre Fitzcarrald, cuja vida aventurosa, mas breve (morreu aos 35 anos), já foi retratada no cinema. Bem mais tenebroso, e bem vivo quando Casement visitou a região, era um tal Julio Cesar Arana, responsável por grande parte das perfídias descritas por Casement. Deu conta, por exemplo, do ocorrido no início de 1900, quando aproximadamente quarenta mil indígenas tinham sido massacrados de forma atroz: ensopavam os cabelos de homens, mulheres e crianças em querosene e deitavam-lhes fogo, depois de serem torturados e violados. A própria Rosa Luxemburgo ficaria impressionada e citaria este relatório, numa nota de pé de página sem indicação do autor, no seu “A Acumulação do Capital”. Apesar de todas as denúncias, Arana continuaria a gozar tranquilamente da sua colossal fortuna, sendo um respeitado senador peruano e morrendo em Lima em 1952, com a provecta idade de 85 anos.
 
Julio Cesar Arana
 
Como já se viu, os barcos desempenharam um papel central na vida de Casement. Em Outubro de 1914 tomou a iniciativa fatal de seguir no Oskar II para a Noruega, em trânsito para a Alemanha, onde contava aliciar prisioneiros irlandeses para combater contra o domínio inglês. Em Abril de 1916 tomou lugar num submarino alemão para a Irlanda, a caminho do Easter Rising que, assim o esperava, libertaria a sua pátria. Pouco depois, aprisionado, seguiria de barco para a Inglaterra. Contra todas as regras da common law, o governo inglês decidiu que ele não poderia ser julgado na Irlanda. Nenhum júri, devidamente formado, o condenaria. Foi trancafiado na Torre de Londres, a prisão de todos os traidores à Coroa britânica. Foi aí que recebeu um telegrama de um velho conhecido: Julio Cesar Arana, com singular desfaçatez, dirigia-se-lhe para o aconselhar, como bom amigo, a renunciar à sua causa e, assim, salvar a sua preciosa vida.
Note-se que Casement podia ter-se salvado se tivesse alegado insanidade. Ele sabia que o Home Office tinha divulgado selectivamente os seus diários, onde se tornava evidente a sua homossexualidade. Nesses tempos, bastaria tal facto tornar-se conhecido para provar a existência de uma doença mental. O governo inglês tinha admitido essa saída, para evitar a criação de um mártir. Casement sabia disso e preferiu morrer. Afinal, quando entrou no pequeno bote que o levou a uma praia irlandesa, o oficial alemão perguntou-lhe de que precisava, ao que retorquiu que apenas precisava da sua mortalha.
Também é certo que, apesar da influência governamental numa matéria eminentemente política, o caso judicial seguiria os seus trâmites. Ora, o Attorney-General que, no caso inglês, é membro do Cabinet, é que teria competência para comutar a pena. Sucede que o acusador no processo de Casement tinha sido o próprio Attorney-General. Ou seja, aquele que iria decidir se daria razão aos que pediram clemência era o próprio que tinha pedido a condenação. Tratava-se de um grande causídico, F. E. Smith, mais tarde Lord Birkenhead, um dos mais próximos aliados de, pasme-se, Winston Churchill. 
 
E quem pedira clemência? Conan Doyle, Bernard Shaw, Sidney e Beatrice Webb. E dois escritores que muito aprecio: J. K. Jerome e Chesterton. Também o arcebispo de Cantuária. Não, afinal este não. Tinha primeiro pedido clemência, mas deu um passo atrás. Dissuadido por quem? Pelo Reverendo John Hobbis Harris que já conhecemos do Congo, e que fora um dos eleitos pelo Foreign Office para conhecer o conteúdo dos diários. Horrorizado, fez tudo para que o arcebispo não se juntasse aos peticionários. Fazendo jus ao destaque que o António Araújo deu à sua mulher, Alice Seeley, não sabemos se, neste ponto, ela concordou com a posição do marido. Vamos admitir que, em reconhecimento pelo papel que Casement desempenhou na mudança da situação no Congo, terá defendido o patriota irlandês (quanto à possibilidade de as coisas terem efectivamente mudado, estamos provavelmente a ser optimistas: ficou célebre a viagem, em 1926 e 1927, de André Gide pela África francesa, nomeadamente pelo Congo Brazzaville, que levou à denúncia de tantos abusos; não foi ao Congo Belga, é certo, mas é de admitir que a situação aí, embora não tão dramática como no tempo do Rei Leopoldo, estivesse longe de ser ideal).
Neste longo percurso de vida, aventurosa e arriscada, há algo que se destaca: Roger Casement esteve em três colónias portuguesas, em Portugal e num país de língua portuguesa. Nunca deu conta de uma violação dos direitos do homem, como hoje diríamos, em qualquer desses locais. E não se pode dizer que não houvesse uma campanha em Inglaterra contra o nosso governo e os nossos proprietários. O caso das roças de São Tomé, por exemplo, provocou um famoso caso judicial envolvendo a empresa Cadbury.
 


George Cadbury (1839-1922)

 
 
 
 
 
O Evening Standard publicou alguns artigos denunciando as condições em que se produzia cacau em São Tomé, acusando a Cadbury Bros Ltd. de cumplicidade nos terríveis abusos que aí seriam praticados há muitos anos. A família Cadbury era quaker, e apresentava a sua empresa como a empregadora ideal. Até tinha criado para os seus trabalhadores ingleses, junto à cidade de Birmingham, uma aldeia perfeita, Bournville (ainda existe e também deu nome a um chocolate criado há mais de um século). Se se provasse que George Cadbury tinha conhecimento pessoal dos abusos, a sua reputação cairia na lama. Ora, o seu filho, William Cadbury, tinha estado em São Tomé em 1901, tendo constatado as condições de trabalho. E tinham decidido continuar a comprar o cacau são-tomense porque o da Costa do Ouro, o actual Gana, era muito mais caro, porque as regras de trabalho eram fiscalizadas pelo Colonial Office. A propósito, de 1905 a 1908, imaginem quem desempenhou as funções de Under-Secretary of State for the Colonies: um tal Winston Churchill, no seu primeiro cargo governamental…
 
 
 
 
 
Desde 1903, vários membros da família Cadbury deslocaram-se a Lisboa para questionar os plantadores, tendo continuado a importar o cacau de São Tomé. Até que o escândalo desencadeado pelo Evening Standard obrigou a família Cadbury a reagir. No caso judicial que se seguiu, o Evening Standard foi defendido pelo brilhante advogado e político (irlandês ferozmente unionista) Edward Carson que, mais tarde, também teria um papel na tragédia de Casement. Na sequência do escândalo, a família Cadbury resignou-se a comprar cacau noutro sítio. William Cadbury, para se redimir, visitou as colónias portuguesas, tendo escrito a obra Labour in Portuguese West Africa, onde dedica especial atenção aos trabalhadores angolanos que eram enviados para São Tomé, aparentemente com contrato, na prática submetidos a trabalho forçado. Devo aqui dar uma nota pessoal: o meu pai foi juiz em São Tomé na segunda metade dos anos cinquenta do século passado e ainda julgou um caso terrível relacionado com trabalhadores de origem angolana que, tendo sido vítimas de abusos, se revoltaram e foram aprisionados em condições sub-humanas.
A verdade é que, sobre tudo isto e mais que houvesse, Casement disse nada. Permito-me terminar com algo que se passou muitos anos depois: em 1919 foi criada a Organização Internacional do Trabalho. A constituição da OIT contém a possibilidade de um Estado membro apresentar queixa contra outro Estado membro devido, não a questões de direito internacional, mas por causa de matérias que eram, naquela época e, para muitos, ainda hoje de cariz puramente interno: violações de direitos fundamentais dos trabalhadores.
Acontece que, apesar daquela possibilidade, nunca tal mecanismo foi posto em prática durante os primeiros quarenta anos de vida da OIT. Até que, em 1961, alguém apresentou queixa. Quem seria? O recém-independente Gana, pois então. E quem foi denunciado: Portugal, como não poderia deixar de ser. Tinha eclodido a guerra colonial. Antes disso, em 1959, Portugal tinha sido um dos primeiros Estados membros da OIT a ratificar a convenção nº 105, de 1957, sobre a abolição do trabalho forçado. Logo os governantes ganeses aproveitaram para tentar prejudicar a reputação do colonialismo português suave.
A queixa foi recebida, foi criada uma comissão de inquérito que se dirigiu a Angola e Moçambique. As autoridades portuguesas receberam a delegação da OIT. Foi-lhe permitido visitar o que quis e falar com quem quis. Os trabalhadores africanos foram interrogados sem a presença de empregadores e de autoridades locais. É o que consta do relatório da comissão. Nada foi provado contra Portugal, pelo que este caso acabou por redundar numa vitória da propaganda portuguesa.
 
José Luís Moura Jacinto





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