A segunda grande crise
política do regime salazarista iniciou-se em 1958 e apresentou duas
particularidades: foi imprevisível e teve uma influência irremediável nos
destinos do Estado Novo[1].
As eleições legislativas
de Novembro de 1957 (VII Legislatura) ainda tinham sido marcadas pela “questão
de Goa” embora surgissem os primeiros sinais de uma mudança da Oposição quanto
à questão colonial, sobretudo por parte do Partido Comunista Português (PCP). A
totalidade de mandatos coubera, mais uma vez, à `União Nacional” e, encerrando
o ciclo iniciado em 1949, não só Governo não conseguira cooptar parte da
Oposição como o PCP consolidara a estratégia frentista que liderava[2].
No final da sessão de 12 de Fevereiro de 1959
desta VII Legislatura, o deputado Soares da Fonseca, em nome da Comissão de
Legislação e Redacção, enviou para a mesa uma proposta de antecipação da
revisão constitucional. Tal antecipação foi justificada na sessão seguinte:
considerou-se pacífica a interpretação segundo a qual a Assembleia Nacional
podia de momento assumir poderes constituintes e, no uso deles, proceder à
revisão da Constituição que, por sua vez - e sem pormenorizar -, se entendia
oportuna e conveniente.
A proposta de lei de revisão
da Constituição foi anunciada por Albino dos Reis, Presidente da Assembleia
Nacional, no início da sessão de 19 de Março, sendo logo enviada à Câmara
Corporativa e às comissões competentes para estudo. Sem relatório prévio, era
apenas assinada pelo Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira
Salazar. Constava de 22 artigos e quase todas as alterações respeitavam ao modo
de eleição do Presidente da República, que passaria a realizar-se através de um
colégio eleitoral restrito. Não se previa qualquer mudança nas disposições
constitucionais sobre o ultramar português[3].
Mas, posteriormente,
durante a discussão no plenário, foram apresentados três projectos de lei que
tinham por objecto normas relativas ao ultramar.
O primeiro foi subscrito
pelo deputado Manuel José Homem de Melo, em 7 de Abril, e propunha, entre
outras, duas alterações em matéria ultramarina, uma alargando a iniciativa e a
competência da Assembleia Nacional (assim reforçando os seus poderes) e, outra,
referente às condições de vigência dos diplomas nas províncias ultramarinas. O
correspondente Parecer da Câmara Corporativa, relatado por Afonso Queiró,
apreciou o projecto na generalidade e na especialidade, com variadas
considerações sobre o “legislador colonial” e, em conclusão, não apoiou os
pontos em causa[4].
O segundo inseria-se num
projecto (subscrito à cabeça pelo deputado Carlos Moreira) de onze alterações à
Constituição e incluía duas alterações em matéria ultramarina. Assim, o artigo
134.º deveria ser substituído pelo seguinte: «Os territórios ultramarinos
indicados nos n.ºs 2.º a 5.º do artigo 1.º denominam-se genericamente
“províncias” e estão em perfeita igualdade e paridade com os demais territórios
nacionais». A segunda alteração respeitava ao subsequente artigo 135.º que passaria
a dispor: «As províncias ultramarinas mantêm íntima solidariedade entre si e
com o continente e terão a mesma estrutura deste, salvas as diferenças impostas
pela sua situação geográfica, natureza das suas populações e características
próprias de cada uma delas»[5]. O
Parecer da Câmara Corporativa voltou a ter como relator Afonso Queiró para quem
não se justificavam as novas redacções pois que a revisão de 1951 visara o
propósito de não deixar «qualquer dúvida sobre a equiparação constitucional
entre a parte europeia e a parte não europeia do território português», pelo
que não eram de aceitar agora mudanças de terminologia[6].
O terceiro foi subscrito
pelo deputado cabo-verdiano Adriano Duarte Silva e contemplava o estatuto
político-administrativo de Cabo Verde. Durante o processo de revisão de 1951
tinha sugerido a integração de Cabo Verde no “sistema metropolitano”, mediante
a definição da sua “adjacência”. Agora insistia em que, mediante alteração de
três artigos, o arquipélago de Cabo Verde expressamente passasse a fazer parte do
território português no Atlântico Norte, ao mesmo título que Açores e Madeira[7].
Segundo o Parecer da Câmara Corporativa, do mesmo relator, este projecto de lei
visava, antes de mais, pôr a Constituição em sintonia «com o que Assembleia
Nacional já aceitou quando aprovou a vigente Lei Orgânica do Ultramar
Português», pelo que era oportuno. Aliás, o Parecer avançava que, para tornar
constitucionalmente possível a aplicação, em Cabo Verde ou em qualquer outra
província, de um regime administrativo idêntico ao das ilhas adjacentes,
bastava dar uma redacção mais adequada ao artigo 134.º da Constituição, quer
dizer, fazendo passar da Constituição para a Lei Orgânica do Ultramar a
indicação dos territórios com o estatuto de províncias ultramarinas[8].
A discussão na
especialidade decorreu na sessão de 8 de Julho. Porém, os projectos de lei
subscritos pelos deputados Duarte Silva e Carlos Moreira (quanto a este último,
relativos às alterações dos artigos 134.º e 135.º, como se viu) seriam apreciados
conjuntamente, pois, na sessão, foi apresentada uma “proposta de emenda” em sua
substituição, subscrita pelos seguintes deputados pelo Ultramar: Sarmento Rodrigues, Águedo de Oliveira, Castilho de Noronha,
Martinho da Costa Lopes, Francisco Tenreiro, Jorge Jardim e Avelino Teixeira da
Mota.
A defesa da “emenda”
coube a Sarmento Rodrigues, que fora Ministro das Colónias e depois do Ultramar
entre 1950 e 1955, era deputado por Moçambique desde 1949 e presidia à Comissão do Ultramar. Antes de mais
- disse -, a nova proposta não ia contra qualquer outra, nomeadamente contra a
do deputado Duarte Silva, nem mesmo contra o parecer da Câmara Corporativa,
«porque a todos atende e até mesmo amplia». Como a proposta inicial do Governo
sobre a revisão constitucional não continha referência ao ultramar, tinha
concluído não estar encarada qualquer reforma substancial, pois, se fosse o
caso, haveria que empreender «uma obra de fundo, de estrutura geral» na
actualização da Constituição, muito embora não pusesse em causa nem os seus
fundamentos nem os princípios relativos ao ultramar. No entanto, aproveitava a
ocasião para sugerir que se arrumassem melhor as disposições constitucionais,
pois parecia-lhe não haver necessidade de um título separado para o ultramar
«nem talvez mesmo classificar de ultramarinas umas províncias que estão um
pouco mais longe do que outras», de tal forma que o texto constitucional
deveria preparar-se «para o dia em que a unidade seja o que humanamente se pode
chamar absoluta e perfeita». Segundo Sarmento Rodrigues, a nova proposta tinha
tal abrangência que a lei poderia «a todo o tempo alterar todos ou qualquer dos
estatutos político-administrativos das províncias ultramarinas e a designação
de “províncias” e integrá-las no regime de administração dos outros territórios
nacionais»[9].
Consequentemente, depois
de intervenções concordantes dos deputados Sócrates da Costa, Carlos Moreira e
Soares da Fonseca, foi aprovada a “proposta de emenda” em causa – a qual, além
disso, implicou que fossem rejeitadas ou prejudicadas as demais alternativas,
incluindo as que constavam do projecto inicial do deputado Adriano Duarte Silva,
ausente desta sessão e que, por essa razão, o não retirou. De tal “emenda”
resultou o novo texto do artigo 134.º da Constituição: «A lei definirá o regime
geral de governo dos territórios a que deve caber a denominação genérica de
províncias, os quais terão organização político-administrativa adequada à
situação geográfica e às condições do meio social. A organização político-administrativa
deverá tender para a integração no regime geral de administração dos outros
territórios nacionais».
Este foi, portanto, o
único artigo sobre o ultramar alterado na revisão constitucional de 1959. O
Governo não propusera qualquer mudança; durante a discussão os deputados
tomaram poucas iniciativas; restritivamente, a Câmara Corporativa só se
pronunciou sobre estas; foram abafadas as divergências quanto ao regime da
autonomia; reforçou-se a linha “unitarista”. O novo artigo 134.º era indeciso e
correspondeu a uma vitória da política assimilacionista defendida por Sarmento
Rodrigues e resultou numa derrota insuperável dos defensores da “adjacência” de
Cabo Verde (como se comprovará em 1962, no Conselho Ultramarino convocado por
Adriano Moreira).
Por outras palavras, as
questões da autonomia política foram adiadas: legalmente, para a revisão da Lei
Orgânica do Ultramar; eventualmente, para uma nova revisão constitucional que convertesse
Portugal num Estado federal. Porém, Salazar decidira em Maio de 1959, ainda
durante o processo de revisão constitucional - e ignorando-a -, que só havia um
caminho e nada mais era preciso: «Aguentar! Aguentar!»[10]. Como
manterá esta determinação, aquelas duas alternativas falharão em 1962-1963.
António Duarte Silva
[1]
Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974),
Vol. VII de José Mattoso (dir.), História
de Portugal, Círculo de Leitores, 1994, p. 523.
[2] Ver
Mário Matos e Lemos, Oposição e Eleições
no Estado Novo, Assembleia da República – Divisão de Edições, 2012, p. 178,
e Manuel Braga da Cruz, Monárquicos e
Republicanos no Estado Novo, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986, p. 141.
[5] Cfr.
Projecto de lei n.º 23, Diário das
Sessões, n.º 91, de 9 de Abril de 1959, pp. 433/434. É importante conhecer
as redacções vigentes, ambas provindas da revisão de 1951, cujas alterações
agora se propunham. Quanto ao artigo 134.º, dizia: «Os territórios ultramarinos
de Portugal indicados nos n.ºs 2.º a 5.º do artigo 1.º denominam-se
genericamente “províncias” e têm organização político-administrativa adequada à
situação geográfica e às condições do meio social»; por sua vez, o artigo 135.º
dispunha: «As províncias ultramarinas, como parte integrante do Estado
português, são solidárias entre si e com a metrópole».
[10] Oliveira
Salazar, “A posição de Portugal em face da Europa, da América e da África”, in Discursos e Notas Políticas – VI – 1959/1966,
Coimbra Editora, 1967, p. 60.
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