Esta posta
tinha muita porta. Poderia entrar a falar do João, que ontem andou à procura
de livros infantis. Ou do Camarada Pavlik, de que já falei aqui, uma criança
transformada em herói do povo por ter denunciado a família às autoridades soviéticas.
Também poderia falar de um livro supimpa, sobre os jogos das vanguardas,
editado em Espanha. Ou poderia começar
ainda, não sei porquê, por Fredun Shapur, que nada tem a ver com o país dos
sovietes mas cujo trabalho gostaria de um dia mostrar aqui no Malomil, pois há quem se interesse por estas
coisas. É o meu caso, modesto coleccionador de livros infantis – dos quais,
alguns soviéticos. São belos, verdadeiros ícones expressivos, simples no grafismo directo e
linear, austeros nos acabamentos, de impressão barata e para as massas. Já
conhecia e tinha dois livros italianos que, cada qual à sua maneira, eram
bonitos e informativos. Um chama-se L’Ilustrazione del Libro per Bambini e l’Avanguardia Russa, sendo assinado por Ernst
Kuznecov e editado pela Cantini nos idos de 1991 (comprei-o em Veneza, baratíssimo, verificando que agora andam a pedir por ele quase 100 dólares). Outro, mais abrangente e
difuso, intitulado 39 Illustratori Sovietici, catálogo da Bienal do Livro Ilustrado Infantil, Roma, 1992.
Mas há pouco chegou um novo, a arrasar. Inside the Rainbow. Russian Children’s Literature 1920-1935: Beautiful Books, Terrible Times, organizado por Julia
Rothenstein e Olga Budashevskaya. Está lá tudo, nomes grandes como Mayakovsky ou
o infortunado Osip Mandelstam. Grafismo de vanguarda, imagens dinâmicas e
vigorosas, algumas belicistas, outras muito doutrinárias. Linhas rectas, a
régua e esquadro, traçando os caminhos
de um homem novo. Engenhosas formas de tirar partido da fotografia (veja-se as imagens da tomada eléctrica!), quase
sempre uma mensagem pedagógica e/ou patriótica. Desenhos anticapitalistas, alguns,
outros mais próprios para crianças, com bichos reais ou imaginários. A
exaltação do trabalho ordeiro, culto da disciplina e por aí fora.
Logo
a abrir, o livro recorda o lado sombrio desta história de crianças. Durante os
gloriosos anos 20, na era da Nova Política Económica, e já debelada a guerra civil,
existiam na Rússia entre 4,5 a 7 milhões de bezprizorniki,
ou seja, órfãos que não só tinham perdido os pais como nunca souberam na vida o
que era uma família ou um lar. Em português, bezprizorniki poderia traduzir-se como “meninos da rua”. Em russo,
eram 7 milhões. Este fora o trágico resultado de purgas em massa, das grandes fomes, de
prisões e deslocações forçadas de pessoas e famílias, ficando para trás uns
quantos, quase tantos como a população inteira de Portugal dos nossos dias. O problema
adquiriu tais proporções que se criou uma Comissão das Crianças, cujo comité
central – ironia das ironias – era dirigido por Felix Dzerzinsky, o mesmo que
entretanto liderava a polícia política e já gatinhava em direcção ao Grande Terror.
Milhares de crianças morreram de doença, fome e violência, outras seguiram para
campos de trabalho e prisões. Em 31 de Maio de 1935, o Conselho dos Comissários
do Povo e o comité Central do Partido emitiram um decreto, com o expressivo
nome «Eliminação da Vadiagem e dos Maus-Tratos Infantis», que declarava que «os
sem-abrigo tinham sido erradicados deste país». Se considerarmos que cerca de
500.000 crianças cresceram em orfanatos nas décadas de vinte e trinta,
imagine-se o que terá acontecido aos outros. Milhões e milhões. Há uma
investigação sobre isso, de Alan Ball, And Now My Soul is Hardened: Abandoned Children in Soviet Russia, 1918-1930,
publicada em 1994 pela University of California Press. Mais eloquente será,
porém, a imagem abaixo, onde um grupo de crianças – e estas, com a fortuna de terem um abrigo – se
forma ao pé de um casebre de madeira que ostentava os dizeres: «Obrigado, grande Estaline,
por esta infância feliz!». A felicidade está mesmo ali, estampada nos rostos. Enfim, convém recordar as travessuras do Sol Enganador.Mas que
os livros infantis soviéticos são uma maravilha, lá isso são.
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Sobre a parte política, nada a comentar até porque, felizmente, os nossos tempos já são de olhos abertos em relação à antiga União Soviética.
ResponderEliminarQuanto ao resto e esteticamente os livros são lindíssimos.
Já agora, de um blogue português muito interessante:
Eliminarhttp://historiamaximus.blogspot.pt/2013/04/o-abecedario-erotico-sovietico.html
Cordialmente,
António Araújo