O «gabinete» de Konstantin Petrov
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Em
Junho de 2001, Konstantin Petrov, um imigrante da Estónia, arranjou emprego
como electricista no Windows of The World, em Nova Iorque. Há dias, falei aqui
desse restaurante, situado no topo da Torre Norte do World Trade Center. Poucos
meses depois de Petrov começar a trabalhar aí, dois ataques suicidas
transformaram em cinza e poeira as Torres Gémeas. Entre o primeiro embate do avião e o
último suspiro das Torres não passaram mais do que 102 minutos. Entre os
funcionários que estavam a trabalhar no Windows of the World, ninguém sobreviveu.
O chef
do restaurante salvou-se por um acaso do destino. Nessa manhã, antes de subir
ao alto da Torre Norte, passou pelo centro comercial que ficava no piso
inferior do WTC para mandar reparar os óculos numa loja de artigos ópticos.
Konstantin Petrov sobreviveu por uma outra razão: saíra do Windows of the World
ao alvorecer, como sempre. Trabalhava ali durante a noite. Duplo emprego, turno da noite, a vida de um
imigrante. De dia, cuidava de um prédio de apartamentos do outro lado de
Manhattan. Ao final da tarde, encaminhava-se para o Windows of the World, onde
permanecia noite dentro, muitas vezes só tendo por companhia as luzes da cidade, o barulho das sirenes ao longe.
Petrov tinha a paixão da fotografia, captando
tudo quanto passava diante da sua objectiva. Deixou centenas ou milhares de
imagens. O seu acervo pessoal é único. Desde a vida em Tallinn até à sua
família, passando por motas – outra das suas paixões – tudo aqui se encontra.
Possivelmente deslumbrado pelo ambiente e pelo décor do Windows of the World,
ofuscado pelas mil luzes de Nova Iorque, fotografou tudo, literalmente tudo. Até
um insecto pousado na janela do restaurante, a 410 metros de altura. Nos poucos
meses que ali trabalhou, até tudo aquilo se desfazer em cinza e poeira, fotografou o restaurante
ao entardecer ou ao raiar do dia. Das suas imagens transparece uma solidão e uma
tonalidade cálida que fazem lembrar os quadros de Hopper. Petrov captou tudo. Os
salões principais, os pormenores da arquitectura, mas também as entranhas do
restaurante, os espaços inacessíveis. As casas-de-banho dos clientes e as dos empregados, bastante
diferentes daquelas. O espaço exíguo dos gabinetes de cada qual, e até a toca que
ele próprio conseguiu fazer nas profundezas do World Trade Center. As cozinhas, vastas.
Percebe-se bem a diferença entre os dois ambientes, melhor do que se lermos o
célebre livro de Goffman sobre o modo como nos apresentamos na vida de todos os
dias, ora à mesa, ora à cozinha. A qualidade técnica e
artística das imagens é duvidosa, o que só aumenta o seu encanto e valor. Não
se vê vivalma, quer o restaurante esteja em repouso, com as cadeiras empilhadas,
que se encontre em estado de alerta, prestes a receber freguesia. Provavelmente,
com a sua paixão pelas imagens, Petrov constituiu o maior arquivo fotográfico
existente sobre o Windows of the World, algo que desapareceu para todo o sempre. O seu
espólio tem sido precioso para os que procuram mostrar como era a vida nas
Torres Gémeas. Encontra-se alojado aqui, num local de partilha de imagens chamado Fotki,
que foi desenvolvido por Dmitri Don, um programador informático que chegou a
Nova Iorque e inventou aquilo, muito antes do Flickr ou do Facebook. Quando mostrou
o Fotki a potenciais investidores, estes desprezaram a ideia, dizendo que as
pessoas poderiam muito bem mandar fotografias por e-mail... Falido, sem
perspectivas de emprego, Dmitri regressaria à Estónia. Antes disso, por volta
de 1998, convencera o seu amigo Konstantin a vir trabalhar para Nova Iorque.
Petrov chegou à América com 25 anos de idade. Na sua terra natal, tinha uma ocupação
curiosa: fazia e comercializava aparelhos para que os seus compatriotas
pudessem captar ilegalmente o sinal televisivo emitido na Finlândia.
Há
um livro que se chama precisamente Windows
of the World, um romance ou novela que relata os dilemas sentidos pelos que
ali estavam na manhã de 11 de Setembro de 2001. O electricista da Estónia
fotografou o espaço à exaustão, como se adivinhasse o seu destino. Não se ficou
pelos salões, mostrando como seria trabalhar ali, até ao dia em que um avião
suicida matou todos quantos ali trabalhavam. Mesmo que fossem imigrantes com
dois empregos, gente vulgar como ele, Konstantin Petrov. Normalmente, quando o
turno da noite acabava, por volta das 8 horas, Konstantin ficava mais um tempo
por ali, a tomar café e a falar com os colegas. Na manhã de 11 de Setembro de
2001, porém, mal terminou o turno decidiu ir para casa. Estava a sair do parque
de estacionamento do World Trade Center quando o primeiro avião embateu na
Torre Norte, aquela em que ficava o Windows of the World. Sentiu o estrondo, seguiu em frente. Quando chegou a casa,
ligou a televisão, viu o que se passava, telefonou para o restaurante, conversou um
pouco com alguns colegas. Foi a última vez que falou com eles.
A sua história é tão ou mais fascinante
do que as fotografias que tirou. A New
Yorker contou-a, com grande desenvolvimento, num artigo que é também uma
homenagem póstuma a um rapaz da Estónia deslumbrado pelas luzes da cidade. Do que morreu, não dizemos, para não estragar o suspense. Está tudo passado a pente fino numa reportagem da New Yorker – sem dúvida, a revista mais
apropriada para narrar os trabalhos e os dias de um estónio em Nova Iorque.
Imagens preciosas.
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