sábado, 28 de fevereiro de 2015

O Adamastor da Palhavã.

 
 

 
O Estranhíssimo Colosso, título desta biografia de Agostinho da Silva, é nome que bem se poderia aplicar ao volume de 735 páginas que António Cândido Franco, professor na Universidade de Évora, acabou de dar à estampa.
O subtítulo (“Uma biografia de Agostinho da Silva”), o apuro gráfico do aspecto exterior e a dimensão da obra aguçam o apetite dos leitores, sugerindo estarmos perante uma obra monumental e definitiva, resultado de um ciclópico trabalho de pesquisa, com aturada consulta de arquivos e detectivesca recolha de testemunhos, numa linha iniciada nos países anglo-saxónicos e que há muito chegou ao Brasil, onde todos os anos são publicadas dezenas biografias de grande porte sobre personalidades tão singulares e díspares como Juscelino Kubitscheck ou Nelson Rodrigues, Assis Chateaubriand ou Carmen Miranda, Vinicius de Moraes ou Mané Garrincha. Escritos numa prosa envolvente, realçando episódios desconhecidos ou insólitos, esses livros destacam-se pela exaustividade das fontes e, acima de tudo, pela sua capacidade ímpar de transmitir ao leitor, sem maçadas nem cansaços, uma quantidade de informação que, apresentada doutra forma, jamais lhe interessaria.
Goste-se ou não da personagem e do que escreveu, na riquíssima trajectória biográfica de Agostinho da Silva havia matéria-prima mais do que suficiente para produzir um livro apaixonante. O autor trabalhou, não há dúvida. Todavia, concentrou o seu esforço na tarefa de escrever um livro colossal, em detrimento daquilo que é exigível em qualquer obra que se pretenda “biográfica”. A ausência do trabalho de pesquisa fica patente logo nas primeiras páginas, onde a genealogia do biografado se resume ao que Agostinho da Silva quis dizer sobre os seus antepassados. Todo o volume, de resto, é atravessado por constantes e longuíssimos trechos de depoimentos ou escritos de Agostinho, opção que, num balanço final, acaba por não nos trazer nada de novo, excepto a admiração ilimitada, nas raias da loucura, do biógrafo pelo seu objecto de estudo (“Este meu biografado era um monstro de duas cabeças! Duas? Duzentas! Não é de admirar que eu lhe chame anormal!”, grita o autor, na página 271). Pior ainda, António Cândido Franco exprime o seu fascínio num estilo neobarroco e arrebicado, onde se misturam arcaísmos pretensiosos e interjeições vulgares, do mais forçado calão de rua.
Depois, quando se depara com lacunas ou falhas de informação, o autor entrega-se à dedução e ao palpite – o que, convenhamos, não é um método muito frequente de escrever história, para mais a história de uma outra vida. Com cândida franqueza, António Cândido Franco confessa que, quando não sabe, inventa: “Às vezes deixo-me embalar e o resultado é este, dou por mim a inventar. Deixe o leitor passar, que a imaginação sabe muito. E se não sabe, tem ao menos sabor. Sem tais pontos imaginosos, uma biografia é estéril e sensaborona” (pág. 623). Noutra passagem, estabelece o novo cânone da escrita biográfica: “Uma biografia é assim: mesmo que a curiosidade leve avanço, ficam sempre muitos espaços em branco e outras tantas suposições. Uma biografia certinha, redigida como certidão de assento ou cópia de minuta, é que não. Uma vida tem dentro dela tanta ilusão, tanta indefinição íntima, tanto sonho, tanta alucinação, tanta incerteza, que a suposição lhe vai muito melhor do que a certidão” (pág. 189).      
Estes trechos resumem, em poucas linhas, toda a orientação subjacente a O Estranhíssimo Colosso, em que os lapsos de investigação e de informação fiável são colmatados por um investimento, para mais excessivo, na imaginação fantasiosa e no verbo torrencial. “A suposição vai muito melhor do que a certidão”, diz o autor, como se uma biografia séria e credível pudesse dispensar o rigor dos factos, atestado por documentos ou testemunhos fiáveis.        
Além da bibliografia activa e passiva de Agostinho da Silva, de um escasso levantamento da imprensa e da consulta de apenas um documento de arquivo – o processo de Agostinho na PIDE/DGS, disponível na Torre do Tombo –, o autor manteve apenas algumas conversas com duas ou três pessoas, como Aldegice Machado da Rosa, Maria Antónia Braia Vitorino ou António Reis Marques, quando bem poderia ter feito entrevistas a personalidades como Adriano Moreira (que evitaria o dispensável “não posso garantir o ano em que Adriano foi a Brasília”…), Mário Soares, João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, João Ferreira (que reside em Brasília e teve papel fundamental na vida de Agostinho) ou José Blanco (que o subsidiou na Gulbenkian), entre tantos outros. 
Apesar de o seu biografado ter permanecido décadas no Brasil, em frenética actividade (“era mais mexido do que Napoleão à frente das tropas”), nada indicia que António Cândido Franco se tenha sequer deslocado até lá, na busca de testemunhos inéditos e novas informações (por exemplo, o importante espólio epistolar de José Luís Conceição Silva). A Parte III do livro, expressivamente intitulada “A Desbunda no Brasil”, relata muito do que por lá se passou, sendo esse, porventura, o capítulo que mais interessará ao público português, a faceta e a fase mais ignoradas do percurso de vida de Agostinho. Até por isso, teria valido a pena estudar esse período de perto, e com mais rigor. Mas, aqui como em tudo o resto, o autor deu a palavra ao seu biografado, confiando a Agostinho o trabalho de pesquisa. De quando em vez, citam-se terceiros, em depoimentos prestados nos livros de homenagem ao velho mestre – ou seja, textos laudatórios que, naturalmente, são parciais e pouco fiáveis.      
Daí que uma parte substancial da informação fornecida neste livro seja esparsa, fragmentária, além de formulada em termos hipotéticos e conjecturais. Quanto à ida para o Brasil, “pouco se sabe da viagem de Agostinho e até das datas exactas dela”, desconhecendo-se sequer o que a motivou e até qual o meio de transporte que usou na travessia do Atlântico. O autor coloca uma série de interrogações – “Terá ido Agostinho num hidroavião para o Brasil?”, “Terá subido a bordo numa noite pardacenta e chuvosa?”, “Levava uma garrafa de vinho verde?” –, a que não responde porque não sabe, nem se esforçou para sabê-lo, optando por afirmar, sem quaisquer elementos de apoio, que o sábio lusitano, ao desembarcar no Rio, terá ficado extasiado com as “mulatas de Ipanema, o violão, o sorvete, a desbunda do sol”. Dos antepassados remotos nada se diz, pois nada se procurou. O pai de Agostinho “alguma escola há-de ter feito” e a mãe, por seu turno, “alguma educação há-de ter tido em casa” (pp. 22-23). O pai “deve ter sido em Barca de Alva um funcionário laborioso e exemplar” (p. 42), mas acabou sendo demitido pois “também devia haver gente que não gostava muito dele” (p. 65). No Riley Institute, no Porto, Agostinho da Silva aprofundou a aprendizagem de línguas (diz-se que falava 15 idiomas) talvez “em 1922, ou antes”, o que “é ponto a esclarecer” – mas não neste livro. A irmã, entretanto, estaria “a estudar decerto em escola comercial”, não havendo certezas na matéria. Na universidade, Agostinho terá exercido cargos associativos mas quanto às datas em que o fez “os elementos que hoje correm desdizem-se” – e o autor não procurou deslindar a verdade. Enquanto estudante da faculdade, Agostinho realça o nome de uma colega, Maria da Conceição Gomes, mas António Cândido Franco confessa “o que dela sei é nada”, ficando-se por aí.
Mais certezas possui quanto à vida sexual do jovem Agostinho. Fornece-as porque “uma biografia sem sexualidade é como uma tela sem tinta; não existe”. Ou, como dirá noutro passo, “não há biografia que se aguente sem tratar tal questão. Biografia quer dizer escrita da vida e só há vida porque há sexo”. Assim, abordando o sexo em Agostinho da Silva, e como “o instinto nele era rijo”, “houve nas soalheiras tardes da Comércio do Porto, como nas noites álgidas de Inverno, entre lençóis, muito onanismo para aliviar a pressão séria do instinto, como aliás sucede hoje com qualquer mocinho de idêntico adolescer”. Além dessa actividade solitária, terá havido, porventura, “visita a bordel nocturno”, pela simples razão de que um tio seu era libertário e, logo, “mais solto de costumes”. É assim, desta forma impressionista e especulativa, que toda a presente biografia se encontra construída, pelo que não admira a falta de rigor factual e as constantes imprecisões, que levam o autor, por exemplo, a colocar Agostinho da Silva a aprender francês, inglês, esperanto, latim, grego, alemão e holandês, na página 127, quando pouco antes dissera que o seu biografado recebera também rudimentos de língua japonesa (pág. 69). Não é um pormenor de somenos, tendo em conta que, graças a uma bolsa da UNESCO, em 1963, Agostinho se desloca ao Japão, de onde trouxe “uma japonesa de carne e osso”. Mas, de novo, o biógrafo confessa a sua ignorância: “sobre esta madame do Sol Nascente pouco sei e o que sei foi pescado de outiva”. Afirmando, para mais, que dessa mulher teve um ou até dois ou três filhos, não competia ao biógrafo indagar a fundo este episódio?  
No final do Verão de 1929, numa das muitas viragens da sua vida, Agostinho da Silva abandona o Porto – e a docência na Faculdade de Letras –, fixando-se em Lisboa. Uma vez mais, o palpite: “não sei onde se instalou, mas calculo que procurou uma pensão barata, com refeições incluídas, na zona velha da cidade”. Sobre a docência de Agostinho no Liceu Gil Vicente o autor nada esclarece, preferindo divagar sobre as deambulações do seu ídolo na capital do país, entre “a cal branca da cidade” e “a safira sem fim do rio”. Apresentou-se a concurso para professor em Belas-Artes, sendo o exame descrito como um triunfo absoluto do candidato sobre o júri (“um bailinho!”), enquanto, na assistência, “o público partia a moca de riso”. Em Lisboa, Agostinho frequentaria ainda a Escola Normal Superior no intuito de adquirir condições para se efectivar como professor de liceu. O seu biógrafo, porém, diz-nos: “não tenho qualquer certeza sobre o lugar onde funcionaria a Escola Normal mas ponho como possível uma antiga dependência da antiga Faculdade de Letras de Lisboa” (nem uma informação tão simples foi o autor capaz de recolher?).
Entretanto, Agostinho começara namoro e anunciara noivado. Formara-se assim, segundo o autor, “um casal disposto a curtir a vida”, pelo que “iam talvez a Sintra e Cascais passear na serra”; depois de casados, o biógrafo presume que terão feito “muitos passeios às praias da Outra Banda para meter os pés na água rasa da vazante e correrem abraçados por entre as redes que os pescadores alavam no areal”. Note-se que este quadro romântico, decerto poético e belo, não tem por base a mínima informação factual, inexistindo qualquer elemento que permita sustentar que Agostinho da Silva e a mulher terão atravessado o Tejo, rumo à margem sul. Quanto ao que interessa, “não sei onde ficava o casulo que alugaram mas calculo que seria para Campo de Ourique”. A única pista que o autor apresenta é o facto de Campo de Ourique ser um “bairro populoso” e “com oferta copiosa e acessível”, ademais não muito longe do local onde Agostinho leccionava. Em Campo de Ourique (ou em qualquer outro lugar de Lisboa e arredores…) teria o jovem casal ao seu serviço empregada doméstica, uma “virago beiroa de buço grosso, barbada até”, mas confessa António Cândido Franco: “é suposição minha, que as fontes sobre o casamento são sequinhas; sobre o enlace com Berta David nunca o meu bardino, que eu saiba, se pronunciou”. E, como o seu bardino o não fez, o biógrafo segue-lhe as pisadas, dispensando-se novamente de ir além daquilo que o mestre revelou, ou não, sobre a sua vida. É óbvio que em qualquer biografia existe espaço e momento para a suposição, desde que feita a partir de elementos que possuam uma base mínima de veracidade. António Cândido Franco situa a casa de morada do casal Silva em Campo de Ourique e atribui-lhe uma empregada beirã, para mais muito hirsuta, sem possuir a mínima base factual que lhe permita essas elucubrações.
São meros exemplos, entre as dezenas ou mesmo centenas que este livro contém, em que a ficção se sobrepõe à realidade, esmagando-a, prescindindo dela. A dado passo, diz-se que, quando jovem docente, aos sábados à tarde, Agostinho proferiu inúmeras conferências na Universidade Popular Portuguesa, fundada em 1919; mas logo acrescenta o autor: “não conheço registo das palestras que fez no salão da instituição”. E assim ficamos. Noutro momento, refere-se que terá realizado uma pós-graduação na Sorbonne, com tese sobre Montaigne; mas, adverte o biógrafo, trata-se de “informação impossível para já de confirmar”. Num livro de 700 páginas, inteiramente dedicado à vida de Agostinho da Silva, saber se este fez, ou não, uma pós-graduação na Sorbonne não é uma irrelevância ou um detalhe acessório. Tempos depois, leccionará no Colégio Infante de Sagres. Como lá chegou? “Não é fácil dar resposta certa”, responde o seu biógrafo. Em contrapartida, parece o autor ter mais certezas de que Agostinho da Silva, na companhia do colega Orlando Ribeiro, “tomou banho de pila ao léu” no Algarve (ou, se preferirmos, “na terra de Teixeira Gomes”).
Desengane-se quem julgar que isto ocorre apenas quanto aos tempos de juventude do biografado, aqueles sobre os quais mais difícil será localizar informação credível. Todo o livro, ao longo das suas 735 páginas, segue este método. O autor diz, logo no início, que a obra é “uma tentativa de dispor discursivamente (…) os materiais de natureza puramente documental que em torno da vida de Agostinho da Silva fui recolhendo ao longo duma década.”. Pelos vistos, agora o documento interessa, não bastando a suposição e a fantasia. Simplesmente, ao atribuir valor documental probatório aos depoimentos de Agostinho, sem os confrontar com outras fontes, esta obra só contribui para adensar a lenda e os mitos que em torno de George Agostinho Baptista da Silva se foram tecendo – e para os quais, aliás, o próprio Agostinho deu um forte contributo. 
Descoberto por Portugal em meados dos anos oitenta, tornando-se nessa altura um intelectual de massas e uma estrela mediática, de Agostinho da Silva sabemos sobretudo o que o próprio de si fez constar, compondo uma persona pública que dele fazia uma singular combinação de sábio, profeta e sem-abrigo. O mestre, de trato simpático, nunca infirmou esta imagem projectada de santo laico. Dormia um par de horas por noite, dominava dezenas de idiomas, escrevera e apresentara a tese de doutoramento em 15 dias, era capaz de ditar três textos em simultâneo (um dos quais em latim), possuía uma generosidade sem limites e um desapego absoluto por bens materiais e honrarias. No Brasil, viajara de pé na asa de um avião (“Nem Sinatra se atreveu a tanto; ficou-se só pelo cantar à chuva. Que pobreza, ao pé da grande dança cósmica de Agostinho na asa dum avião em voo!”). Gostava muito de gatos e era de uma frugalidade espartana. Todavia, aquele de quem se diz que lhe bastava um naco de pão para passar o dia frequentava assiduamente restaurantes da capital, com destaque para o Varina da Madragoa, também pouso regular de José Saramago (uma entrevista aos proprietários, empregados ou clientes teria trazido certamente informações interessantes, relatos de episódios pitorescos); recusara a Ordem da Liberdade para aceitar depois a de Santiago da Espada; criticava asperamente Soares (“fui eu que alimentei esta cria. Se eu fosse coerente, suicidava-me já. Sinto-me responsável por tamanho desastre”, terá dito), mas acabaria por recebê-lo em sua casa e, das suas mãos, arrecadaria a Grã-Cruz de Santiago. De resto, a cerimónia solene de lançamento do seu livro de Dispersos seria presidida por Soares, na chefia do Estado, com ministros e altos dirigentes, num imponente cenário, o Mosteiro dos Jerónimos, o que é pouco condizente com a simplicidade franciscana tão cultivada por Agostinho. Em 1991, chegou a oferecer-se ao Presidente da República como caução dos presos das FP-25 de Abril, tomando o seu lugar na cadeia (a generosa oferta não seria aceite). Proclamava-se anarquista, mas para a sua reintegração no funcionalismo público português até teve direito a um diploma legal com o seu nome inscrito – o Decreto-Lei nº 222/91, de 19 de Junho, que o biógrafo não cita –, o que, sendo a lei geral e abstracta, colocou, naturalmente, dúvidas quanto à constitucionalidade do diploma, obrigando a uma intervenção do Tribunal Constitucional, ponto que o biógrafo ignora por completo. Congratulava-se por não ter bilhete de identidade, mas em vários momentos do livro encontramos referências ao seu passaporte – e à obrigação, que Agostinho cumpria com escrúpulo, de o carimbar regularmente.   
Nada disto significa qualificar Agostinho da Silva como um impostor ou, como alguém já lhe chamou, “um pantomineiro simpático”. Pelo contrário. Mesmo numa perspectiva apologética, a vida e a personalidade de Agostinho da Silva são de tal forma invulgares que seria bom que uma biografia – sobretudo, uma biografia deste calibre e dimensão – confirmasse ou infirmasse o que sobre ele foi dito, distinguindo, com a nitidez possível, a ficção encenada da realidade dos factos. Caso contrário, tudo não passará de um repisar, em versão hagiográfica amplificada e entrecortada por frases de estalo, daquilo que todos sabemos há muito. Agostinho possuía um epistolário vastíssimo, e tinha por hábito enviar cartas dactilografadas a muitíssima gente que o conheceu e com ele conversou na sua casa da Travessa do Abarracamento de Peniche. Regularmente, recebi diversas cartas vindas de lá. Nada disso foi tratado e escrutinado nesta biografia monumental.
 
 
 
 
 
No período final da vida, o eremita do Príncipe Real cederia ao repto para aparecer na televisão (já estivera no Zip-Zip, note-se), numa série de treze programas intitulada Conversas Vadias, o que levou alguns cronistas da época, como Inês Pedrosa e Manuel Maria Carrilho, a criticarem este súbito surgimento de uma pop-star cultural. No programa, segundo o seu biógrafo, Agostinho terá esmagado Miguel Esteves Cardoso, que “foi despido, esfregado, amarfanhado e deixado cair sem a mais leve complacência como papel do lixo”. Em suma, o velho mestre deu uma “ensaboadela gigantesca” ao “garoto”. Teria sido importante – ou, se quisermos, revelador de alguma imparcialidade – recolher o testemunho de Esteves Cardoso, além daqueles que, segundo o autor, levaram de Agostinho um “bailarico televisivo”, como Joaquim Vieira (“Que baile!”), Maria Elisa, Adelino Gomes ou Baptista-Bastos.  
Por outro lado, a verbosidade incontinente do autor leva-o a produzir uma obra descuidada e desatenta, em que a mesma informação é repetida sem que saibamos porquê. Assim, na página 148 diz-se que Simões Raposo “fora chefe de gabinete de António Sérgio” e, logo na página seguinte, refere-se “Simões Raposo, que Sérgio elevara a seu chefe de gabinete”; pouco depois, voltamos a ser esclarecidos que Simões Raposo “fora chefe de gabinete” de António Sérgio (pág. 156). Na parte final do livro, somos informados que todas as manhãs Agostinho dava explicações a um menino cabo-verdiano com uma deficiência mental, episódio que é referido na página 663 e, inexplicavelmente, contado de novo na página 700.  
O estilo da escrita é kitsch, com abuso de lugares-comuns, linguajar vadio e frases do género: “A República de Afonso Costa, gaiata de quatro anos, caiu de cama, diagnóstico reservado, quase a dar o badagaio”. Quando jovem, tinha Agostinho vorazes apetites literários, que o autor resume na seguinte frase: “Que larica, para gaiato de 15 anos!” Nos intervalos, apreciava ir à praia de Matosinhos, “mostrar o pêlo da perna”. Em todo o caso, e numa avaliação geral, era “um doce e pacato Zé dos Anzóis”, que vivia no “cu de Judas” enquanto cursava à Faculdade de Letras no Porto, sendo já nesse tempo “homem que nunca hesitou entre goraz e linguado”. Deambulava o estudante pela Invicta, “onde de mistura com muito trote teimoso de muar se faziam agora ouvir com frequência as buzinas tolas dos automóveis”. Por certo às escondidas, exercitava “o toque de Onan”, acalmando também as paixões da carne em “banho de água gelada, com certeza em tina de semicúpio, para baixar a fervura e pôr os penates em movimento”. Cansado dos atropelos da República, “encarou com simpatia a marcha militar de 1926”, ainda que desconheçamos onde se baseia o autor para proferir esta afirmação. Enquanto docente, “não era um professor baldas”; seria, isso sim, “um betinho, de rosto imberbe”. Tinha à época “raiva de escrever, raiva de lutar, raiva de viver, raiva de amar”. Vindo para Lisboa, foi alvo de perseguição por parte de um colega docente, e na escola onde leccionava “não havia pedaço de sala em que Agostinho pudesse poisar o cu sem que o zangão lho viesse picar”. Destacou-se, apesar disso, como “um professor das Arábias”, a ponto de o seu biógrafo proclamar, contundente: “Enquanto houver escola, ou coisa que o valha, não há-de passar a memória do professor Agostinho da Silva!” No Liceu de Pedro Nunes, por exemplo, o seu ensino em nada se assemelhava ao dos seus pares ou, se preferirmos, dos “coninhas que lá se encolhiam”. Um homem superlativo, que “em cada vírgula punha uma competência admirável” e que fundou dezenas de centros de investigação, “alguns bué ilustres”. Foi para Paris, como bolseiro. “Ai, a Torre Eiffel! Ai, o Arco do Triunfo! Ai, o Bairro Latino! Ai, os Campos Elísios! Ai, a Sorbona!” (os suspiros são de António Cândido Franco, não de Agostinho Baptista da Silva). Esta viagem à Cidade-Luz não o transformou, continuando a ser um espírito inconformado e rebelde; ou, nas palavras do seu biógrafo, “que anarca, vida minha!” Daí os riscos do encontro histórico que, na capital francesa, teve com António Sérgio (um homem que, observe-se, “nunca perdera o tesão” por Antero de Quental). Tratava-se de uma operação arriscada, que “podia dar bernarda, com os dois à berlaitada, como derriço de casa e pucarinho”. Isto porque Agostinho tinha “o coração do leão feroz de Trás-os-Montes” e Sérgio, de seu lado, “não era menino para se calar; tinha cagança pedagógica para um país, quanto mais para um bolseiro vinhateiro”. Noutra passagem, os moradores de Aveiro são classificados como “pessoal baril” e, a propósito de uma polémica com Alfredo Pimenta (“o maroto do Pimenta”, “o Pimentinha hitleriano”), refere-se que este recuou ao perceber que, frente a Agostinho, “a pêra tinha caroço”, ou seja, que a contenda “começava a dar-lhe água pela barba”.     
António Cândido Franco não esconde o deslumbramento pela personagem que estudou, tratando Agostinho, com insuportável frequência, por “meu biografado”, “meu garoto”, “meu pequeno rústico”, “o meu Silva”, “meu celtibero”, “meu ibero”, “o meu homem”, “meu bolseiro”, “meu plantígrado”, “meu duriense”, “meu macróbio”, “meu peixe”, “meu íncola”, “meu bisonho”, “meu vivaço”, “meu vagabundo”, “meu berbere”, “meu nómada”, “meu meileca”, “o meu mangas” ou “o meu velho” (“O meu velho está sempre a surpreender. Que malha, dia meu!”). Diz que Agostinho é autor de “uma das mais vistosas enciclopédias do mundo, feita por um só homem”. E qualifica-o como “o mais importante biógrafo português de sempre”, tendo por base os livrinhos de divulgação popular que Agostinho da Silva publicou a um ritmo alucinante, “um volume himalaico de textos”.
Pese o seu carácter a um tempo amável e conflituoso, Agostinho não foi maltratado pela academia; pelo contrário, esta deu-lhe sempre as mais elevadas classificações, a ponto de o seu biógrafo se permitir dizer, em êxtase, que, “com as notas que tinha, se preciso fosse, até o lugar de Papa sacava”. Toda a aproximação a Agostinho da Silva é feita desta forma acrítica e hiperbólica. Agostinho da Silva? “Não era sócio para ficar a pensar na morte da bezerra, menos ainda para dar de frostes.” “Nunca levara freio na dentuça, era potro meio selvático.”
Aliás, a ideia de que Agostinho era um intelectual puro, dominado inteiramente pelas coisas do espírito, não tem correspondência com a realidade. Ou, como diz Cândido Franco, “o filólogo, o professor engravatado, o renomado intelectual é tanga, meu! Nunca existiu”. O que existiu, isso sim, foi um “titã meio aciganado”, um “lacrau”, um “lapuz” e um “biganau”, devorado pelos mais primevos instintos. “Matava com a mão o apetite do bicho mas o que ele queria mesmo era o corpo meio nu da prima nas mãos.” Compreenda-se a atitude de Agostinho, que “não era nenhum destesticulado, que tivesse por horizonte roer só papel; tinha força na verga e o bicho, sempre a levantar, desinquietava-o”. Neste trecho, o professor Cândido Franco tem a honestidade de reconhecer que, uma vez mais, fala sem provas, ainda que com certezas: “Com certeza o digo, apesar de nenhum documento o garantir preto no branco.”
A questão, entendamo-nos, não é de bom-gosto ou decoro, de pudor escusado ou de falsos moralismos. O problema reside na circunstância de o autor se permitir estas divagações pseudo-eróticas sem que, do mesmo passo, consiga esclarecer-nos sobre factos objectivos tão elementares como o lugar de nascimento da mãe do seu biografado; as palestras que este proferiu na Universidade Popular; se concluiu ou não pós-graduação na Sorbonne; se foi para Madrid sozinho ou na companhia da mulher; onde morava quando veio do Porto para Lisboa; como e porquê começou a leccionar no Colégio Infante de Sagres; se viajou ou não até Lisboa, em 1954, como representante do governo brasileiro, buscar a carta de Pêro Vaz de Caminha; quem o convidou para leccionar em Harvard; se a filha foi esperá-lo ao aeroporto quando regressou definitivamente a Portugal; que meios tinha para subsistir, etc., etc. E à fatal pergunta sobre onde estava Agostinho da Silva no dia 25 de Abril, responde o biógrafo: “para o gosto que teria em falar deste assunto, faltam-me porém dados. (…) Sei pouco”. E sobre o 1º de Maio, o de 1974? “Nada encontro, para tristeza minha, sobre o caso”. Logo após a revolução, Agostinho escreveu uma carta aos exilados políticos que regressaram – só Cunhal lhe respondeu – mas o seu biógrafo desconhece o teor dessa missiva, documento fundamental que poderia talvez ser procurado com sucesso em arquivos públicos ou privados (por exemplo, em contacto com Mário Soares e a sua fundação). Em vez destas questões, por certo mais prosaicas, o autor prefere comparações grandiosas, cotejando Agostinho da Silva e Miguel Ângelo para concluir que “os dois criadores são labaredas gémeas!”
Expulso do ensino oficial, Agostinho da Silva, “um mestre nato mas sem qualquer cagança pedagógica”, dará aulas particulares, tendo como alunos Ruben A. ou Mário Soares. A descrição das aulas a este último é, no mínimo, burlesca. Graças a Agostinho, Soares terá despertado para os assuntos do espírito e da cultura ou, se quisermos, “o pintainho abriu os olhos” e “o novilho como que desencabrestou”. Tal não foi suficiente para, anos mais tarde, ser um governante à altura do seu mestre; pelo contrário, Soares, “o pachorrento pintainho do Campo Grande”, mostrar-se-ia “um homem acanhado, curto, que diante das ondas criativas e alterosas duma revolução o único atrevimento que teve foi aparecer de manta escura a tapar o mar”. Já Agostinho da Silva, em contraste, era “mais destemido do que Prometeu”, “um titã doutras eras, um colosso estranhíssimo que escalou o céu e sobreviveu por acaso no meio duma humanidade anã”. Apesar deste alpinismo celeste, por vezes descia à terra – e aos seus prazeres: “em casa tinha dois pequerruchos e a esposa com quem fazia dum-dum, que Agostinho não era formigão para esquecer a dança do pai Adão”. Na verdade, é sabido que teve vários filhos de diversas mulheres, tendo produzido descendência para lá dos 60 anos de idade, proeza tão mais notável quanto, diz o seu biógrafo, “muito besugo deixa de levantar pau antes disso”. Pelo contrário, Agostinho da Silva, portentoso, “aos 60 anos, com a neve a salpicar-lhe o pico da bola, continuava a fornicar à direita e à esquerda”. Noutra formulação, “Agostinho, galo polígamo, ’inda dava muito cacho de uva”. Que daí nasceram muitos filhos é insofismável. Só no Brasil teve seis, pelo menos. António Cândido Franco, aparentemente, não entrevistou um sequer. Além de filhos, Agostinho deixou milhares de cartas inéditas, num frenesi epistolar de que o seu biógrafo dá conta mas que não explora.
Nas páginas finais, em jeito de tragicomédia, conta-se o processo que conduziu à morte do mestre. Antes disso, fôramos informados que Agostinho da Silva possuía uma saúde de ferro. Além de uma doença no Recife, no longínquo ano de 1953, só tinha contraído uma gripe quando estava em Nova Iorque, no Outono de 1968; de resto, assegura-nos o biógrafo, “problemas na próstata não lhe conheço”. Mas adoeceu gravemente e seria internado no hospital, onde foi visitado pelo Presidente da República, Mário Soares, e por Maria Cavaco Silva, mulher do Primeiro-Ministro. A causa fora uma infecção intestinal causada por marisco. “Marisco, em vegetariano? Parece que sim. Bastou um deslize e apanhou com a ripa!”, continua o biógrafo, lamentando a triste queda “deste Sansão”. Pouco depois, novas complicações de saúde: acometido por um acidente vascular cerebral, “paralisou e perdeu a tramontana”. Era ainda um “castanheiro centenário”, “um desses gigantes que só de século a século vêm ao mundo. Se num país aparecer um de cem em cem anos é já uma benesse”. No leito de morte, ao Hospital de São Francisco Xavier, o herói produzia efeito “mais forte do que o de Heitor ao arraial troiano”. Faleceu Agostinho da Silva no Restelo, o lugar “onde outrora um velho apontara o dedo aos que zarpavam para o Oriente, e despedia-se da luz do firmamento nas pedras dos Jerónimos”. Aos Jerónimos acorreu Soares, apressado, de corrida, “pois tinha a Presidência Aberta e partia todo catita para o Sul do País. Não podia perder tempo; Agostinho interessava-lhe, mas comedidamente”. Em contraste, na missa de corpo presente o padre Vítor Melícias “fez uma homilia à altura”. Morreu Agostinho da Silva? Não, nunca. “Homens como este não dormem nem morrem; mesmo na morte, têm sempre meio olho aberto. Basta a Primavera chamar por eles ou um pobre estender a mão e logo se levantam do meio dos mortos para irem bater à porta da vida.” Neste momento, assevera o Professor Cândido Franco, a sepultura de Agostinho Baptista da Silva já está vazia, e o seu biografado “anda a bater, satisfeito até mais não, de calção e alpergata, as floridas encostas doutra Barca de Alva”. Nas derradeiras linhas, mantém-se o registo a incenso e mirra. Agostinho da Silva era “um titã”, “um gigante sem soberba”, “um colosso de bronze”. E mesmo a terminar: “É tempo de alijar a carga. Tenho os braços desfeitos. Escrever uma biografia de Agostinho da Silva é andar com o mundo ao colo”.               
António Cândido Franco, diz-nos o próprio, dedicou dez anos da sua vida a investigar a existência de George Agostinho Baptista da Silva, “um dos gigantes universais da História humana”. O biógrafo compara-o a Moisés, na idade antiga, e, em tempos mais recentes, a Francisco de Assis, Tolstoi, Gandhi e Luther King. Mais adiante, não hesita em tratá-lo por “o Adamastor da Palhavã”. Estará a gozar connosco? Infelizmente, nem isso. 
 
António Araújo
 
 
(uma versão mais reduzida deste texto foi publicada no jornal Público/Ípsilon, disponível aqui)
 

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Boa nova.

 
 
 
 
 
Se a memória me não falha, creio que foi o Ico que me falou deste livro histórico de David King, The Comissar Vanishes, que tem direito a entrada na Wikipedia e tudo.
 
 
 
          O livro é simplesmente o melhor que existe sobre as falsificações e manipulações fotográficas dos tempos de Estaline, quando algum apparatchik caído em desgraça era também rasurado das imagens em que aparecia junto do supremo líder dos sovietes. Publicado em 1997, era um clássico, a ponto de Michael Nyman se ter inspirado nele para fazer um disco.
 
 
 

 
 
 
 
The Comissar Vanishes era caro, incomportável, mas a grande nova é que saiu uma nova edição, a preços bastante razoáveis para a maravilha que, passe a publicidade, está à distância de um clique, mais portes de envio.          
 
 
 

Vinte e Quatro Horas da Vida Duma Mulher, de Stefan Zweig.

 
 
 
 
 
Esta é para o Jorge Silva, do grandioso Almanaque Silva,
com um abraço
 
(vemo-nos amanhã, Jorge?)
 
 
 
 
 
  

As afinidades electivas.

 
 
 
Kai Frober, na fronteira, na década de 1970

Kai Frober, 2015


O «Cinto Verde»
 
Gunther Berwing (à direita), em 1983

Gunter Berwing e Kai Friobel, 2015




As comemorações do aniversário da queda do Muro de Berlim deram azo a muita coisa. A Taschen arrasou a paróquia com um calhamaço sobre a República Democrática que, do ponto de vista iconográfico, não tem rival. Num registo completamente diferente, em que a imagem pouco interessa ante a riqueza da história, Maxim Leo reconstituiu as biografias atribuladas dos seus pais e avós no apaixonante Red Love. The Story of an East German Family. 
 
          Mas a história mais fascinante de todas, aquela que mais me tocou, encontra-se aqui, à distância de um clique. Foi-me trazida pelo João Gama – e é por essas e outras que beijo o chão que ele pisa. Vamos à história, mas em linhas muito gerais. Entre aquilo que outrora dividia as Alemanhas existia uma vasta terra-de-ninguém. A ausência de presença humana fez florescer a natureza no «Cinto Verde», um corredor arborizado de quilómetros e quilómetros. Por vezes, o campo era atravessado por fugitivos de Leste, sendo território perigoso e minado. Nada disso dissuadiu um jovem alemão ocidental de entrar lá, para ver os pássaros. Do lado de lá da fronteira, outro rapaz faria o mesmo. Kai Frobel e Gunter Berwing acabariam por se conhecer, comungando da mesma paixão pela terra e seus bichos. A história mete a malvada da Stasi e peripécias várias. Mas acaba bem, com a reunificação de um povo e a reintrodução de um bicho, o lince. Dava um livro, um filme; dava o que quiserem. Por agora, leiam-na, que bem merece.
 
António Araújo
 
 
 


quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !




 
# 44, # 45, # 46 – MILES DAVIS





Fotografia de Jim Marshall, 1971





Quem era aquele rapazinho que, no inverno de 1944, todas as noites batia os clubes da rua 52 no encalço de Charlie Parker? Um tal de Miles Davis…
Filho de um médico e de uma professora, Miles Davis pertencia à ínfima classe média negra de St. Louis. Esmerava-lhe a educação o estudo de música. Quando, na Primavera de 1944, a orquestra de Billy Eckstine passou em digressão pela cidade, Miles fora um dos jovens locais engajados para incorporar a banda, pelo que assistira do palco às exibições de Dizzy Gillespie e Charlie Parker – teve uma epifania! A custo convenceu o pai e a mãe a facultarem-lhe o ingresso na Juilliard School de Nova Iorque, mas ao fim da primeira semana já havia gasto a mesada no rasto de Charlie Parker, só para o ouvir, pedir conselho, aprender, suplicar-lhe uma oportunidade. E ela acabou por chegar, quando Dizzy Gillespie se despediu de vez de Bird, saturado com a sua insanidade.
Na tarimba de três anos secundando Charlie Parker, a pulso Miles Davis foi fazendo a mão e evidenciando protagonismo. Sentia-se, contudo, desconfortável nos sapatos de Dizzy; não conseguia (nem queria) reproduzir o estilo atlético e estridente do bebop, esses vendavais de colcheias agudas. Apartando-se de arrebatamentos virtuosistas, o seu trompete resvalava para os registos médios, a inventar acordes requintados e tons aveludados.
 
 
 

The Complete Birth of the Cool
1949 (1998)
Capitol Jazz / Blue Note 4945502
Miles Davis (trompete); Kay Winding, J.J. Johnson, Mike Zwerin (trombone); Junior Collins, Sandy Siegelstein (corne francês); Bill Barber (tuba); Lee Konitz (saxophone alto); Gerry Mulligan (saxophone barítono); Al Haig, John Lewis (piano); Joe Schulman, Nelson Boyd, Al McKibbon (contrabaixo); Max Roach, Kenny Clarke (bateria); Kenny Hagood (voz)
 
 
Miles teceu entretanto laços de amizade com Gil Evans, que atamancara como sala de ensaios o seu enfezado apartamento de rés-do-chão. Evans era orquestrador da banda de Claude Thornhill e experimentava dilatar a sua variedade tonal introduzindo o corne francês e a tuba, dando-lhe uma coloração lustrosa, encorpada e menos quente – mais cool, portanto. Colega dele era Gerry Mulligan, prolixo compositor e dono e senhor – e assim ficaria na história do jazz – do robusto saxofone barítono. Presença assídua era ainda o pianista John Lewis, à época a fazer arranjos na orquestra de Dizzy Gillespie.
Imagine-se um laboratório de cientistas loucos, à imagem dos desenhos animados de então, em demanda da pedra filosofal. Assim devem ter sido aqueles encontros: Mulligan e Evans lançados na escrita e na orquestração dos temas, Miles escolhendo a dedo um noneto de intérpretes – estranha formação deveras, no limbo entre uma orquestra condensada e um combo clássico expandido. Foi também ele quem negociou os concertos no recém-inaugurado clube Royal Roost, que trasladara o jazz para junto da boémia de Greenwich Village, e ditou o cartaz: “Miles Davis Band, arranjos de Gerry Mulligan, Gil Evans e John Lewis.”
A formação nunca mais haveria de tocar ao vivo além daqueles 15 dias, não tão sensacionais quanto o almejado, embora suficientes para firmar um contrato de 12 composições com a Capitol. Três vezes o noneto se reuniu em estúdio (Janeiro e Abril de 1949 e Março de 1950), três vezes se alterou a sua composição. É sabido que as sessões decorreram debaixo de alguma tensão. Depois da morte de Miles, Gerry Mulligan acabaria por confessar a sua amargura por não lhe ter sido devidamente creditada a sua autoria musical.
À maneira comercial da época, os temas foram ovos de ouro postos aos pares em singles de 78rpm, quase à saída de cada uma das gravações e ainda hoje não é evidente o seu impacte imediato. A crítica recenseou ”that peculiar combination” com aplauso mas indisfarçável estranheza e os músicos ficaram impressionados – tudo resumido pelo insuspeito Count Basie: “Those slow things sounded strange and good.” Mas o público não se excitou tremendamente com a novidade.
O disco “Birth of the Cool” é uma compilação destas peças, editada em 1957. O seu título assevera, portanto, aquilo que já se sabia e venerava. Agora percebia-se, como facto consumado, de que nascente brotara a carreira que cada um dos seus intervenientes ia tangendo. O cool tornara-se imprescindível à estirpe beatnick de S. Francisco, donde irradiou e fez escola por toda a Costa Oeste.
Ouvindo hoje “Birth of the Cool”, e sabendo o que ele desencadeou, os compassos parecem bastante velozes e ainda devedores do bebop. Apure-se, porém, que as improvisações não desembestam em pirotecnias de banzar a audiência, antes dançam em cima de um inusitado swing, clássico, sim, mas temperado pelos sopros de metal graves: tuba, trombone e saxofone barítono. Isto já não era música para champagne borbulhante, mas para degustar como um tinto velho.
Concluído o empreendimento, Miles Davis virou de imediato as costas ao cool, e em 1957 desfrutava plena consagração com “The New Miles Quintet” (1956), em que debuta um tímido John Coltrane, e com “Walkin’” (1957) – andava à procura doutra coisa…
 
 
Kind of Blue
1959 (2009)
Sony Music Distribution 88697439232
Miles Davis (trompete); Julian “Cannonball” Adderley (saxophone alto); John Coltrane (saxofone tenor); Bill Evans, Winton Kelly (piano); Paul Chambers (contrabaixo); Jimmy Cobb (bateria)
 

O sexteto que em Março de 1959 entrou em estúdio já se estava a desagregar. No Outono precedente consumara um recital no faustoso Plaza Hotel de Nova Iorque que fora o talk of the town. As estrelas alinharam-se na perfeição: o estilo harmónico de Coltrane equilibrava a veia de blues de Julian “Cannonball” Adderley e o piano de Bill Evans matizava-se com influxos de Ravel e Rachmaninoff. Todos tinham ascendido ao planalto das suas carreiras, lideravam grupos e publicavam em nome próprio – demasiados chefes tendem a disturbar a tribo... Quem sabe se Paul Chambers e Jimmy Cobb pressentiram que nunca viriam a superar este momento. Miles Davis não trouxe partituras, apenas um esboço geral das escalas que gostaria que tocassem. “Kind of Blue” foi gravado em duas sessões com mais de um mês de intervalo e apesar de todos os temas serem inéditos (uma novidade na discografia de Miles) satisfizeram-se só com um take, à excepção de “Flamenco Sketches”. Foi quanto bastou para definirem uma nova sintaxe de improvisação e provocarem a fusão do núcleo do jazz. Os alicerces harmónicos do género determinavam que a composição se explanasse numa progressão de acordes; o que Miles propunha era substituir esta referência tonal por um desenvolvimento por escalas, com atenção aos intervalos entre as notas. Assim se estabeleceu o “jazz modal”.
Correndo o risco de superficialidade, dir-se-á que o segredo de “Kind of Blue” é a elegância, ou seja, a vetusta simplicidade filosófica da navalha de Occam (pluralitas non est ponenda sine neccesitate” ou seja: “a pluralidade não deve ser posta sem necessidade”). Desta música, limpa de arestas ou espinhos, desprende-se um pathos introspetivo, quase melancólico, uma comoção afectuosa que é imediatamente simpática ao ouvinte.
A trajectória do jazz orientou-se de maneira a entronizar “Kind of Blue” no seu fulcro. Não é só entender um antes e um depois da obra, é a sensação de o que lhe é anterior confluiu nela e o que veio depois dardejou dela: perante o passado deslocou o eixo do swing e dos blues e dissipou os derradeiros resquícios do bebop, instaurando uma nova modernidade; para o futuro ficou como o último instante ecuménico do jazz, antes das linhas de fuga – já incubadas em 1959 – assestarem para horizontes muito divergentes.
“Kind of Blue” é o disco que toda (ou quase toda) a gente conhece, não só de Miles Davis mas do jazz – à volta do planeta ainda se vendem hoje 5000 exemplares por semana. Felizes os que o ouvirem pela primeira vez!
Miles Davis tornara-se num Príncipe – ou no Prince of Darkness graças à sua linguagem profana, ao terrível feitio, aos caprichos de diva, à volubilidade da heroína e da coca e à voz reduzida a um ronco, em consequência de uma operação à garganta mal convalescida –, mas a realidade chamá-lo-ia de volta na noite de 25 de Agosto de 1959, uma semana depois do lançamento de Kind of Blue, quando veio à porta do Clube Birdland acompanhar uma encantadora mulher branca até ao táxi. Um polícia de giro abespinhou-se com a cena multirracial e rosnou-lhe: “Move on.” “Para onde?” Retorquiu Miles: “I’m working downstairs. That’s my name up there, Miles Davis.” Da altercação ao espancamento foi um ápice; azar do agente que a ocorrência tenha sido presenciada por cerca de 200 transeuntes indignados. Bem podia Miles Davis ser uma estrela musical, possuir um Ferrari (branco, descapotável; depois teve, pelo menos, um amarelo, um 275 GTB vermelho e um Testarossa prateado) e intimidades com uma loura – em 1959, mesmo em Nova Iorque, um negro ainda era um escarumba e tinha que ser posto no seu lugar.
 


Bitches Brew
1970 (2013)
Sony Music Entertainment 6619735
Miles Davis (trompete); Wayne Shorter (saxofone soprano); Bennie Maupin (clarinet baixo); Joe Zawinul, Larry Young, Chick Corea (piano eléctrico); John McLaughlin (guitarra); Dave Holland (contrabaixo); Harvey Brooks (baixo eléctrico); Lenny White, Jack DeJohnette (bacteria); Don Alias (bateria, congas, percussão); Jumma Santos, Jim Riley, Airto Moreira (percussão)
 
 
 
Em 1968, com 43 anos, Miles Davis receou que o tomassem por uma figura venerável, caída na auto-paródia, a reproduzir até à náusea os velhos êxitos, sobretudo quando a música popular rodopiava num vórtice de transformações (foram muito divulgados os seus remoques a Jimi Hendrix e Sly Stone). Soltou então os demónios com “Miles in the Sky”. Retrucando ao free de Ornette Coleman, que ele detestava, e à evolução de Coltrane nessa direcção, Miles divide as águas electrificando o jazz. Um ano e meio e três discos depois surge “Bitches Brew”. Pelo caminho tinham ficado todos os anteriores músicos, excepto Wayne Shorter. Nova revoada de jovens rodeava o trompetista: Chick Corea, Jack Dejohnette, Dave Holland e John McLaughlin, com menos de 30 anos de idade, só Joe Zawinul perto dos 40 – o provir demonstraria que, mais uma vez, o talento de “olheiro” de Miles se mostrara insuperável.
A feitura de “Bitches Brew” gozou de condições técnicas belíssimas. A fita magnética era posta a rolar e a gravação começava. A secção rítmica ia desdobrando as suas linhas como um comboio imparável e os sopros entravam por cima, em trechos não muito longos. Às vezes parecia uma jam session, mas os músicos, conscientes das frases que interpretavam, não entendiam inteiramente para onde aproavam, como numa conversa sem princípio nem fim, só meio – no processo, a composição ia aparecendo. A intervenção do produtor Teo Macero no resultado final é ineludível. Numa laboriosa operação de corte e costura, no que se imprimiu em acetato coube todo o potencial da mesa de montagem: câmaras de reverberação, loops de pistas, efeitos de ecos, etc…
“Bitches Brew” contém vitalidade suficiente para evitar ser hoje ouvido como relíquia de uma época, mas a sua descarga de energia atinge predominantemente o lado esquerdo do cérebro, o analítico. É um conjunto denso e fechado de erupções sonoras que, isolados com uma pinça, revelam uma chama que não se apagou. A obra foi um ponto simultaneamente culminante e seminal do jazz de fusão: em 1971 Wayne Shorter e Joe Zawinul saíram daqui para formar os Weather Report e John McLaughlin lideraria a Mahavishnu Orchestra; e em 72 Chick Corea estreou Return to Forever.
Os puristas levaram as mãos à cabeça. Numa altura em que o rock se apoderara da ribalta e se punha em bicos dos pés, armado em sinfónico, Miles Davis franqueava a cidadela do jazz à sua batida rítmica simplória e contaminara-o com uma parafernália contranatura de sonoridades eléctricas. A controvérsia, na verdade, nunca cessou, o jazz de fusão é que morreu de velho poucos anos depois.
Pode um homem perpetrar três revoluções numa vida? Miles Davis conseguiu: o cool, o jazz modal e a fusão – não teve paralelo no século XX.
 
 
 
José Navarro de Andrade