O
Estranhíssimo Colosso, título desta
biografia de Agostinho da Silva, é nome que bem se poderia aplicar ao volume de
735 páginas que António Cândido Franco, professor na Universidade de Évora,
acabou de dar à estampa.
O
subtítulo (“Uma biografia de Agostinho da Silva”), o apuro gráfico do aspecto
exterior e a dimensão da obra aguçam o apetite dos leitores, sugerindo estarmos
perante uma obra monumental e definitiva, resultado de um ciclópico trabalho de
pesquisa, com aturada consulta de arquivos e detectivesca recolha de
testemunhos, numa linha iniciada nos países anglo-saxónicos e que há muito chegou
ao Brasil, onde todos os anos são publicadas dezenas biografias de grande porte
sobre personalidades tão singulares e díspares como Juscelino Kubitscheck ou
Nelson Rodrigues, Assis Chateaubriand ou Carmen Miranda, Vinicius de Moraes ou Mané
Garrincha. Escritos numa prosa envolvente, realçando episódios desconhecidos ou
insólitos, esses livros destacam-se pela exaustividade das fontes e, acima de
tudo, pela sua capacidade ímpar de transmitir ao leitor, sem maçadas nem cansaços,
uma quantidade de informação que, apresentada doutra forma, jamais lhe
interessaria.
Goste-se
ou não da personagem e do que escreveu, na riquíssima trajectória biográfica de
Agostinho da Silva havia matéria-prima mais do que suficiente para produzir um
livro apaixonante. O autor trabalhou, não há dúvida. Todavia, concentrou o seu
esforço na tarefa de escrever um livro colossal, em detrimento daquilo que é exigível
em qualquer obra que se pretenda “biográfica”. A ausência do trabalho de
pesquisa fica patente logo nas primeiras páginas, onde a genealogia do
biografado se resume ao que Agostinho da Silva quis dizer sobre os seus
antepassados. Todo o volume, de resto, é atravessado por constantes e
longuíssimos trechos de depoimentos ou escritos de Agostinho, opção que, num
balanço final, acaba por não nos trazer nada de novo, excepto a admiração ilimitada,
nas raias da loucura, do biógrafo pelo seu objecto de estudo (“Este meu
biografado era um monstro de duas cabeças! Duas? Duzentas! Não é de admirar que
eu lhe chame anormal!”, grita o autor, na página 271). Pior ainda, António
Cândido Franco exprime o seu fascínio num estilo neobarroco e arrebicado, onde
se misturam arcaísmos pretensiosos e interjeições vulgares, do mais forçado
calão de rua.
Depois,
quando se depara com lacunas ou falhas de informação, o autor entrega-se à
dedução e ao palpite – o que, convenhamos, não é um método muito frequente de
escrever história, para mais a história de uma outra vida. Com cândida
franqueza, António Cândido Franco confessa que, quando não sabe, inventa: “Às
vezes deixo-me embalar e o resultado é este, dou por mim a inventar. Deixe o
leitor passar, que a imaginação sabe muito. E se não sabe, tem ao menos sabor.
Sem tais pontos imaginosos, uma biografia é estéril e sensaborona” (pág. 623).
Noutra passagem, estabelece o novo cânone da escrita biográfica: “Uma biografia
é assim: mesmo que a curiosidade leve avanço, ficam sempre muitos espaços em
branco e outras tantas suposições. Uma biografia certinha, redigida como
certidão de assento ou cópia de minuta, é que não. Uma vida tem dentro dela
tanta ilusão, tanta indefinição íntima, tanto sonho, tanta alucinação, tanta
incerteza, que a suposição lhe vai muito melhor do que a certidão” (pág. 189).
Estes
trechos resumem, em poucas linhas, toda a orientação subjacente a O Estranhíssimo Colosso, em que os lapsos
de investigação e de informação fiável são colmatados por um investimento, para
mais excessivo, na imaginação fantasiosa e no verbo torrencial. “A suposição
vai muito melhor do que a certidão”, diz o autor, como se uma biografia séria e
credível pudesse dispensar o rigor dos factos, atestado por documentos ou
testemunhos fiáveis.
Além
da bibliografia activa e passiva de Agostinho da Silva, de um escasso
levantamento da imprensa e da consulta de apenas um documento de arquivo – o
processo de Agostinho na PIDE/DGS, disponível na Torre do Tombo –, o autor
manteve apenas algumas conversas com duas ou três pessoas, como Aldegice
Machado da Rosa, Maria Antónia Braia Vitorino ou António Reis Marques, quando
bem poderia ter feito entrevistas a personalidades como Adriano Moreira (que
evitaria o dispensável “não posso garantir o ano em que Adriano foi a Brasília”…),
Mário Soares, João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, João Ferreira (que
reside em Brasília e teve papel fundamental na vida de Agostinho) ou José
Blanco (que o subsidiou na Gulbenkian), entre tantos outros.
Apesar
de o seu biografado ter permanecido décadas no Brasil, em frenética actividade
(“era mais mexido do que Napoleão à frente das tropas”), nada indicia que
António Cândido Franco se tenha sequer deslocado até lá, na busca de
testemunhos inéditos e novas informações (por exemplo, o importante espólio epistolar
de José Luís Conceição Silva). A Parte III do livro, expressivamente intitulada
“A Desbunda no Brasil”, relata muito do que por lá se passou, sendo esse,
porventura, o capítulo que mais interessará ao público português, a faceta e a
fase mais ignoradas do percurso de vida de Agostinho. Até por isso, teria
valido a pena estudar esse período de perto, e com mais rigor. Mas, aqui como
em tudo o resto, o autor deu a palavra ao seu biografado, confiando a Agostinho
o trabalho de pesquisa. De quando em vez, citam-se terceiros, em depoimentos
prestados nos livros de homenagem ao velho mestre – ou seja, textos laudatórios
que, naturalmente, são parciais e pouco fiáveis.
Daí
que uma parte substancial da informação fornecida neste livro seja esparsa, fragmentária,
além de formulada em termos hipotéticos e conjecturais. Quanto à ida para o
Brasil, “pouco se sabe da viagem de Agostinho e até das datas exactas dela”,
desconhecendo-se sequer o que a motivou e até qual o meio de transporte que usou
na travessia do Atlântico. O autor coloca uma série de interrogações – “Terá ido
Agostinho num hidroavião para o Brasil?”, “Terá subido a bordo numa noite
pardacenta e chuvosa?”, “Levava uma garrafa de vinho verde?” –, a que não
responde porque não sabe, nem se esforçou para sabê-lo, optando por afirmar,
sem quaisquer elementos de apoio, que o sábio lusitano, ao desembarcar no Rio,
terá ficado extasiado com as “mulatas de Ipanema, o violão, o sorvete, a
desbunda do sol”. Dos antepassados remotos nada se diz, pois nada se procurou. O
pai de Agostinho “alguma escola há-de ter feito” e a mãe, por seu turno,
“alguma educação há-de ter tido em casa” (pp. 22-23). O pai “deve ter sido em Barca de Alva um
funcionário laborioso e exemplar” (p. 42), mas acabou sendo demitido pois
“também devia haver gente que não
gostava muito dele” (p. 65). No Riley Institute, no Porto, Agostinho da Silva
aprofundou a aprendizagem de línguas (diz-se que falava 15 idiomas) talvez “em
1922, ou antes”, o que “é ponto a esclarecer” – mas não neste livro. A irmã, entretanto,
estaria “a estudar decerto em escola comercial”, não havendo certezas na
matéria. Na universidade, Agostinho terá exercido cargos associativos mas
quanto às datas em que o fez “os elementos que hoje correm desdizem-se” – e o
autor não procurou deslindar a verdade. Enquanto estudante da faculdade,
Agostinho realça o nome de uma colega, Maria da Conceição Gomes, mas António
Cândido Franco confessa “o que dela sei é nada”, ficando-se por aí.
Mais
certezas possui quanto à vida sexual do jovem Agostinho. Fornece-as porque “uma
biografia sem sexualidade é como uma tela sem tinta; não existe”. Ou, como dirá
noutro passo, “não há biografia que se aguente sem tratar tal questão.
Biografia quer dizer escrita da vida e só há vida porque há sexo”. Assim, abordando
o sexo em Agostinho da Silva, e como “o instinto nele era rijo”, “houve nas soalheiras
tardes da Comércio do Porto, como nas noites álgidas de Inverno, entre lençóis,
muito onanismo para aliviar a pressão séria do instinto, como aliás sucede hoje
com qualquer mocinho de idêntico adolescer”. Além dessa actividade solitária,
terá havido, porventura, “visita a bordel nocturno”, pela simples razão de que
um tio seu era libertário e, logo, “mais solto de costumes”. É assim, desta
forma impressionista e especulativa, que toda a presente biografia se encontra
construída, pelo que não admira a falta de rigor factual e as constantes
imprecisões, que levam o autor, por exemplo, a colocar Agostinho da Silva a aprender
francês, inglês, esperanto, latim, grego, alemão e holandês, na página 127,
quando pouco antes dissera que o seu biografado recebera também rudimentos de
língua japonesa (pág. 69). Não é um pormenor de somenos, tendo em conta que, graças
a uma bolsa da UNESCO, em 1963, Agostinho se desloca ao Japão, de onde trouxe
“uma japonesa de carne e osso”. Mas, de novo, o biógrafo confessa a sua
ignorância: “sobre esta madame do Sol Nascente pouco sei e o que sei foi
pescado de outiva”. Afirmando, para mais, que dessa mulher teve um ou até dois ou
três filhos, não competia ao biógrafo indagar a fundo este episódio?
No
final do Verão de 1929, numa das muitas viragens da sua vida, Agostinho da
Silva abandona o Porto – e a docência na Faculdade de Letras –, fixando-se em
Lisboa. Uma vez mais, o palpite: “não sei onde se instalou, mas calculo que
procurou uma pensão barata, com refeições incluídas, na zona velha da cidade”. Sobre
a docência de Agostinho no Liceu Gil Vicente o autor nada esclarece, preferindo
divagar sobre as deambulações do seu ídolo na capital do país, entre “a cal
branca da cidade” e “a safira sem fim do rio”. Apresentou-se a concurso para
professor em Belas-Artes, sendo o exame descrito como um triunfo absoluto do
candidato sobre o júri (“um bailinho!”), enquanto, na assistência, “o público
partia a moca de riso”. Em Lisboa, Agostinho frequentaria ainda a Escola Normal
Superior no intuito de adquirir condições para se efectivar como professor de
liceu. O seu biógrafo, porém, diz-nos: “não tenho qualquer certeza sobre o
lugar onde funcionaria a Escola Normal mas ponho como possível uma antiga
dependência da antiga Faculdade de Letras de Lisboa” (nem uma informação tão
simples foi o autor capaz de recolher?).
Entretanto,
Agostinho começara namoro e anunciara noivado. Formara-se assim, segundo o
autor, “um casal disposto a curtir a vida”, pelo que “iam talvez a Sintra e
Cascais passear na serra”; depois de casados, o biógrafo presume que terão
feito “muitos passeios às praias da Outra Banda para meter os pés na água rasa
da vazante e correrem abraçados por entre as redes que os pescadores alavam no
areal”. Note-se que este quadro romântico, decerto poético e belo, não tem por
base a mínima informação factual, inexistindo qualquer elemento que permita sustentar
que Agostinho da Silva e a mulher terão atravessado o Tejo, rumo à margem sul.
Quanto ao que interessa, “não sei onde ficava o casulo que alugaram mas calculo
que seria para Campo de Ourique”. A única pista que o autor apresenta é o facto
de Campo de Ourique ser um “bairro populoso” e “com oferta copiosa e
acessível”, ademais não muito longe do local onde Agostinho leccionava. Em
Campo de Ourique (ou em qualquer outro lugar de Lisboa e arredores…) teria o
jovem casal ao seu serviço empregada doméstica, uma “virago beiroa de buço grosso,
barbada até”, mas confessa António Cândido Franco: “é suposição minha, que as
fontes sobre o casamento são sequinhas; sobre o enlace com Berta David nunca o
meu bardino, que eu saiba, se pronunciou”. E, como o seu bardino o não fez, o
biógrafo segue-lhe as pisadas, dispensando-se novamente de ir além daquilo que
o mestre revelou, ou não, sobre a sua vida. É óbvio que em qualquer biografia
existe espaço e momento para a suposição, desde que feita a partir de elementos
que possuam uma base mínima de veracidade. António Cândido Franco situa a casa
de morada do casal Silva em Campo de Ourique e atribui-lhe uma empregada beirã,
para mais muito hirsuta, sem possuir a mínima base factual que lhe permita
essas elucubrações.
São
meros exemplos, entre as dezenas ou mesmo centenas que este livro contém, em
que a ficção se sobrepõe à realidade, esmagando-a, prescindindo dela. A dado
passo, diz-se que, quando jovem docente, aos sábados à tarde, Agostinho
proferiu inúmeras conferências na Universidade Popular Portuguesa, fundada em
1919; mas logo acrescenta o autor: “não conheço registo das palestras que fez
no salão da instituição”. E assim ficamos. Noutro momento, refere-se que terá
realizado uma pós-graduação na Sorbonne, com tese sobre Montaigne; mas, adverte
o biógrafo, trata-se de “informação impossível para já de confirmar”. Num livro
de 700 páginas, inteiramente dedicado à vida de Agostinho da Silva, saber se
este fez, ou não, uma pós-graduação na Sorbonne não é uma irrelevância ou um
detalhe acessório. Tempos depois, leccionará no Colégio Infante de Sagres. Como
lá chegou? “Não é fácil dar resposta certa”, responde o seu biógrafo. Em
contrapartida, parece o autor ter mais certezas de que Agostinho da Silva, na
companhia do colega Orlando Ribeiro, “tomou banho de pila ao léu” no Algarve (ou,
se preferirmos, “na terra de Teixeira Gomes”).
Desengane-se
quem julgar que isto ocorre apenas quanto aos tempos de juventude do
biografado, aqueles sobre os quais mais difícil será localizar informação
credível. Todo o livro, ao longo das suas 735 páginas, segue este método. O
autor diz, logo no início, que a obra é “uma tentativa de dispor
discursivamente (…) os materiais de natureza puramente documental que em torno
da vida de Agostinho da Silva fui recolhendo ao longo duma década.”. Pelos
vistos, agora o documento interessa, não bastando a suposição e a fantasia.
Simplesmente, ao atribuir valor documental probatório aos depoimentos de
Agostinho, sem os confrontar com outras fontes, esta obra só contribui para
adensar a lenda e os mitos que em torno de George Agostinho Baptista da Silva se
foram tecendo – e para os quais, aliás, o próprio Agostinho deu um forte
contributo.
Descoberto
por Portugal em meados dos anos oitenta, tornando-se nessa altura um
intelectual de massas e uma estrela mediática, de Agostinho da Silva sabemos
sobretudo o que o próprio de si fez constar, compondo uma persona pública que dele fazia uma singular combinação de sábio,
profeta e sem-abrigo. O mestre, de trato simpático, nunca infirmou esta imagem
projectada de santo laico. Dormia um par de horas por noite, dominava dezenas
de idiomas, escrevera e apresentara a tese de doutoramento em 15 dias, era
capaz de ditar três textos em simultâneo (um dos quais em latim), possuía uma
generosidade sem limites e um desapego absoluto por bens materiais e honrarias.
No Brasil, viajara de pé na asa de um avião (“Nem Sinatra se atreveu a tanto;
ficou-se só pelo cantar à chuva. Que pobreza, ao pé da grande dança cósmica de
Agostinho na asa dum avião em voo!”). Gostava muito de gatos e era de uma
frugalidade espartana. Todavia, aquele de quem se diz que lhe bastava um naco
de pão para passar o dia frequentava assiduamente restaurantes da capital, com
destaque para o Varina da Madragoa,
também pouso regular de José Saramago (uma entrevista aos proprietários,
empregados ou clientes teria trazido certamente informações interessantes,
relatos de episódios pitorescos); recusara a Ordem da Liberdade para aceitar depois
a de Santiago da Espada; criticava asperamente Soares (“fui eu que alimentei
esta cria. Se eu fosse coerente, suicidava-me já. Sinto-me responsável por
tamanho desastre”, terá dito), mas acabaria por recebê-lo em sua casa e, das
suas mãos, arrecadaria a Grã-Cruz de Santiago. De resto, a cerimónia solene de
lançamento do seu livro de Dispersos
seria presidida por Soares, na chefia do Estado, com ministros e altos dirigentes,
num imponente cenário, o Mosteiro dos Jerónimos, o que é pouco condizente com a
simplicidade franciscana tão cultivada por Agostinho. Em 1991, chegou a
oferecer-se ao Presidente da República como caução dos presos das FP-25 de
Abril, tomando o seu lugar na cadeia (a generosa oferta não seria aceite). Proclamava-se
anarquista, mas para a sua reintegração no funcionalismo público português até teve
direito a um diploma legal com o seu nome inscrito – o Decreto-Lei nº 222/91,
de 19 de Junho, que o biógrafo não cita –, o que, sendo a lei geral e
abstracta, colocou, naturalmente, dúvidas quanto à constitucionalidade do
diploma, obrigando a uma intervenção do Tribunal Constitucional, ponto que o
biógrafo ignora por completo. Congratulava-se por não ter bilhete de
identidade, mas em vários momentos do livro encontramos referências ao seu
passaporte – e à obrigação, que Agostinho cumpria com escrúpulo, de o carimbar
regularmente.
Nada
disto significa qualificar Agostinho da Silva como um impostor ou, como alguém
já lhe chamou, “um pantomineiro simpático”. Pelo contrário. Mesmo numa
perspectiva apologética, a vida e a personalidade de Agostinho da Silva são de
tal forma invulgares que seria bom que uma biografia – sobretudo, uma biografia
deste calibre e dimensão – confirmasse ou infirmasse o que sobre ele foi dito,
distinguindo, com a nitidez possível, a ficção encenada da realidade dos
factos. Caso contrário, tudo não passará de um repisar, em versão hagiográfica amplificada
e entrecortada por frases de estalo, daquilo que todos sabemos há muito.
Agostinho possuía um epistolário vastíssimo, e tinha por hábito enviar cartas
dactilografadas a muitíssima gente que o conheceu e com ele conversou na sua
casa da Travessa do Abarracamento de Peniche. Regularmente, recebi diversas
cartas vindas de lá. Nada disso foi tratado e escrutinado nesta biografia
monumental.
No
período final da vida, o eremita do Príncipe Real cederia ao repto para
aparecer na televisão (já estivera no Zip-Zip,
note-se), numa série de treze programas intitulada Conversas Vadias, o que levou alguns cronistas da época, como Inês
Pedrosa e Manuel Maria Carrilho, a criticarem este súbito surgimento de uma pop-star cultural. No programa, segundo
o seu biógrafo, Agostinho terá esmagado Miguel Esteves Cardoso, que “foi despido,
esfregado, amarfanhado e deixado cair sem a mais leve complacência como papel
do lixo”. Em suma, o velho mestre deu uma “ensaboadela gigantesca” ao “garoto”.
Teria sido importante – ou, se quisermos, revelador de alguma imparcialidade –
recolher o testemunho de Esteves Cardoso, além daqueles que, segundo o autor, levaram
de Agostinho um “bailarico televisivo”, como Joaquim Vieira (“Que baile!”),
Maria Elisa, Adelino Gomes ou Baptista-Bastos.
Por
outro lado, a verbosidade incontinente do autor leva-o a produzir uma obra
descuidada e desatenta, em que a mesma informação é repetida sem que saibamos
porquê. Assim, na página 148 diz-se que Simões Raposo “fora chefe de gabinete
de António Sérgio” e, logo na página seguinte, refere-se “Simões Raposo, que
Sérgio elevara a seu chefe de gabinete”; pouco depois, voltamos a ser
esclarecidos que Simões Raposo “fora chefe de gabinete” de António Sérgio (pág.
156). Na parte final do livro, somos informados que todas as manhãs Agostinho dava
explicações a um menino cabo-verdiano com uma deficiência mental, episódio que
é referido na página 663 e, inexplicavelmente, contado de novo na página
700.
O
estilo da escrita é kitsch, com abuso
de lugares-comuns, linguajar vadio e frases do género: “A República de Afonso
Costa, gaiata de quatro anos, caiu de cama, diagnóstico reservado, quase a dar
o badagaio”. Quando jovem, tinha Agostinho vorazes apetites literários, que o
autor resume na seguinte frase: “Que larica, para gaiato de 15 anos!” Nos
intervalos, apreciava ir à praia de Matosinhos, “mostrar o pêlo da perna”. Em
todo o caso, e numa avaliação geral, era “um doce e pacato Zé dos Anzóis”, que
vivia no “cu de Judas” enquanto cursava à Faculdade de Letras no Porto, sendo
já nesse tempo “homem que nunca hesitou entre goraz e linguado”. Deambulava o
estudante pela Invicta, “onde de mistura com muito trote teimoso de muar se
faziam agora ouvir com frequência as buzinas tolas dos automóveis”. Por certo
às escondidas, exercitava “o toque de Onan”, acalmando também as paixões da
carne em “banho de água gelada, com certeza em tina de semicúpio, para baixar a
fervura e pôr os penates em movimento”. Cansado dos atropelos da República,
“encarou com simpatia a marcha militar de 1926”, ainda que desconheçamos onde
se baseia o autor para proferir esta afirmação. Enquanto docente, “não era um
professor baldas”; seria, isso sim, “um betinho, de rosto imberbe”. Tinha à
época “raiva de escrever, raiva de lutar, raiva de viver, raiva de amar”. Vindo
para Lisboa, foi alvo de perseguição por parte de um colega docente, e na
escola onde leccionava “não havia pedaço de sala em que Agostinho pudesse
poisar o cu sem que o zangão lho viesse picar”. Destacou-se, apesar disso, como
“um professor das Arábias”, a ponto de o seu biógrafo proclamar, contundente: “Enquanto
houver escola, ou coisa que o valha, não há-de passar a memória do professor
Agostinho da Silva!” No Liceu de Pedro Nunes, por exemplo, o seu ensino em nada
se assemelhava ao dos seus pares ou, se preferirmos, dos “coninhas que lá se
encolhiam”. Um homem superlativo, que “em cada vírgula punha uma competência
admirável” e que fundou dezenas de centros de investigação, “alguns bué
ilustres”. Foi para Paris, como bolseiro. “Ai, a Torre Eiffel! Ai, o Arco do
Triunfo! Ai, o Bairro Latino! Ai, os Campos Elísios! Ai, a Sorbona!” (os
suspiros são de António Cândido Franco, não de Agostinho Baptista da Silva).
Esta viagem à Cidade-Luz não o transformou, continuando a ser um espírito
inconformado e rebelde; ou, nas palavras do seu biógrafo, “que anarca, vida
minha!” Daí os riscos do encontro histórico que, na capital francesa, teve com
António Sérgio (um homem que, observe-se, “nunca perdera o tesão” por Antero de
Quental). Tratava-se de uma operação arriscada, que “podia dar bernarda, com os
dois à berlaitada, como derriço de casa e pucarinho”. Isto porque Agostinho
tinha “o coração do leão feroz de Trás-os-Montes” e Sérgio, de seu lado, “não
era menino para se calar; tinha cagança pedagógica para um país, quanto mais
para um bolseiro vinhateiro”. Noutra passagem, os moradores de Aveiro são
classificados como “pessoal baril” e, a propósito de uma polémica com Alfredo
Pimenta (“o maroto do Pimenta”, “o Pimentinha hitleriano”), refere-se que este
recuou ao perceber que, frente a Agostinho, “a pêra tinha caroço”, ou seja, que
a contenda “começava a dar-lhe água pela barba”.
António
Cândido Franco não esconde o deslumbramento pela personagem que estudou,
tratando Agostinho, com insuportável frequência, por “meu biografado”, “meu
garoto”, “meu pequeno rústico”, “o meu Silva”, “meu celtibero”, “meu ibero”, “o
meu homem”, “meu bolseiro”, “meu plantígrado”, “meu duriense”, “meu macróbio”, “meu
peixe”, “meu íncola”, “meu bisonho”, “meu vivaço”, “meu vagabundo”, “meu
berbere”, “meu nómada”, “meu meileca”, “o meu mangas” ou “o meu velho” (“O meu
velho está sempre a surpreender. Que malha, dia meu!”). Diz que Agostinho é autor
de “uma das mais vistosas enciclopédias do mundo, feita por um só homem”. E qualifica-o
como “o mais importante biógrafo português de sempre”, tendo por base os livrinhos
de divulgação popular que Agostinho da Silva publicou a um ritmo alucinante,
“um volume himalaico de textos”.
Pese
o seu carácter a um tempo amável e conflituoso, Agostinho não foi maltratado
pela academia; pelo contrário, esta deu-lhe sempre as mais elevadas
classificações, a ponto de o seu biógrafo se permitir dizer, em êxtase, que,
“com as notas que tinha, se preciso fosse, até o lugar de Papa sacava”. Toda a
aproximação a Agostinho da Silva é feita desta forma acrítica e hiperbólica.
Agostinho da Silva? “Não era sócio para ficar a pensar na morte da bezerra,
menos ainda para dar de frostes.” “Nunca levara freio na dentuça, era potro
meio selvático.”
Aliás,
a ideia de que Agostinho era um intelectual puro, dominado inteiramente pelas
coisas do espírito, não tem correspondência com a realidade. Ou, como diz
Cândido Franco, “o filólogo, o professor engravatado, o renomado intelectual é
tanga, meu! Nunca existiu”. O que existiu, isso sim, foi um “titã meio
aciganado”, um “lacrau”, um “lapuz” e um “biganau”, devorado pelos mais
primevos instintos. “Matava com a mão o apetite do bicho mas o que ele queria
mesmo era o corpo meio nu da prima nas mãos.” Compreenda-se a atitude de Agostinho,
que “não era nenhum destesticulado, que tivesse por horizonte roer só papel;
tinha força na verga e o bicho, sempre a levantar, desinquietava-o”. Neste
trecho, o professor Cândido Franco tem a honestidade de reconhecer que, uma vez
mais, fala sem provas, ainda que com certezas: “Com certeza o digo, apesar de
nenhum documento o garantir preto no branco.”
A
questão, entendamo-nos, não é de bom-gosto ou decoro, de pudor escusado ou de falsos
moralismos. O problema reside na circunstância de o autor se permitir estas
divagações pseudo-eróticas sem que, do mesmo passo, consiga esclarecer-nos
sobre factos objectivos tão elementares como o lugar de nascimento da mãe do
seu biografado; as palestras que este proferiu na Universidade Popular; se
concluiu ou não pós-graduação na Sorbonne; se foi para Madrid sozinho ou na
companhia da mulher; onde morava quando veio do Porto para Lisboa; como e
porquê começou a leccionar no Colégio Infante de Sagres; se viajou ou não até Lisboa,
em 1954, como representante do governo brasileiro, buscar a carta de Pêro Vaz
de Caminha; quem o convidou para leccionar em Harvard; se a filha foi esperá-lo
ao aeroporto quando regressou definitivamente a Portugal; que meios tinha para
subsistir, etc., etc. E à fatal pergunta sobre onde estava Agostinho da Silva no
dia 25 de Abril, responde o biógrafo: “para o gosto que teria em falar deste
assunto, faltam-me porém dados. (…) Sei pouco”. E sobre o 1º de Maio, o de
1974? “Nada encontro, para tristeza minha, sobre o caso”. Logo após a
revolução, Agostinho escreveu uma carta aos exilados políticos que regressaram
– só Cunhal lhe respondeu – mas o seu biógrafo desconhece o teor dessa missiva,
documento fundamental que poderia talvez ser procurado com sucesso em arquivos
públicos ou privados (por exemplo, em contacto com Mário Soares e a sua
fundação). Em vez destas questões, por certo mais prosaicas, o autor prefere
comparações grandiosas, cotejando Agostinho da Silva e Miguel Ângelo para
concluir que “os dois criadores são labaredas gémeas!”
Expulso
do ensino oficial, Agostinho da Silva, “um mestre nato mas sem qualquer cagança
pedagógica”, dará aulas particulares, tendo como alunos Ruben A. ou Mário
Soares. A descrição das aulas a este último é, no mínimo, burlesca. Graças a
Agostinho, Soares terá despertado para os assuntos do espírito e da cultura ou,
se quisermos, “o pintainho abriu os olhos” e “o novilho como que
desencabrestou”. Tal não foi suficiente para, anos mais tarde, ser um
governante à altura do seu mestre; pelo contrário, Soares, “o pachorrento
pintainho do Campo Grande”, mostrar-se-ia “um homem acanhado, curto, que diante
das ondas criativas e alterosas duma revolução o único atrevimento que teve foi
aparecer de manta escura a tapar o mar”. Já Agostinho da Silva, em contraste,
era “mais destemido do que Prometeu”, “um titã doutras eras, um colosso
estranhíssimo que escalou o céu e sobreviveu por acaso no meio duma humanidade
anã”. Apesar deste alpinismo celeste, por vezes descia à terra – e aos seus
prazeres: “em casa tinha dois pequerruchos e a esposa com quem fazia dum-dum,
que Agostinho não era formigão para esquecer a dança do pai Adão”. Na verdade, é
sabido que teve vários filhos de diversas mulheres, tendo produzido
descendência para lá dos 60 anos de idade, proeza tão mais notável quanto, diz
o seu biógrafo, “muito besugo deixa de levantar pau antes disso”. Pelo
contrário, Agostinho da Silva, portentoso, “aos 60 anos, com a neve a
salpicar-lhe o pico da bola, continuava a fornicar à direita e à esquerda”. Noutra
formulação, “Agostinho, galo polígamo, ’inda dava muito cacho de uva”. Que daí
nasceram muitos filhos é insofismável. Só no Brasil teve seis, pelo menos. António
Cândido Franco, aparentemente, não entrevistou um sequer. Além de filhos,
Agostinho deixou milhares de cartas inéditas, num frenesi epistolar de que o
seu biógrafo dá conta mas que não explora.
Nas
páginas finais, em jeito de tragicomédia, conta-se o processo que conduziu à morte
do mestre. Antes disso, fôramos informados que Agostinho da Silva possuía uma
saúde de ferro. Além de uma doença no Recife, no longínquo ano de 1953, só
tinha contraído uma gripe quando estava em Nova Iorque, no Outono de 1968; de
resto, assegura-nos o biógrafo, “problemas na próstata não lhe conheço”. Mas adoeceu
gravemente e seria internado no hospital, onde foi visitado pelo Presidente da
República, Mário Soares, e por Maria Cavaco Silva, mulher do Primeiro-Ministro.
A causa fora uma infecção intestinal causada por marisco. “Marisco, em
vegetariano? Parece que sim. Bastou um deslize e apanhou com a ripa!”, continua
o biógrafo, lamentando a triste queda “deste Sansão”. Pouco depois, novas
complicações de saúde: acometido por um acidente vascular cerebral, “paralisou
e perdeu a tramontana”. Era ainda um “castanheiro centenário”, “um desses
gigantes que só de século a século vêm ao mundo. Se num país aparecer um de cem
em cem anos é já uma benesse”. No leito de morte, ao Hospital de São Francisco
Xavier, o herói produzia efeito “mais forte do que o de Heitor ao arraial
troiano”. Faleceu Agostinho da Silva no Restelo, o lugar “onde outrora um velho
apontara o dedo aos que zarpavam para o Oriente, e despedia-se da luz do
firmamento nas pedras dos Jerónimos”. Aos Jerónimos acorreu Soares, apressado,
de corrida, “pois tinha a Presidência Aberta e partia todo catita para o Sul do
País. Não podia perder tempo; Agostinho interessava-lhe, mas comedidamente”. Em
contraste, na missa de corpo presente o padre Vítor Melícias “fez uma homilia à
altura”. Morreu Agostinho da Silva? Não, nunca. “Homens como este não dormem
nem morrem; mesmo na morte, têm sempre meio olho aberto. Basta a Primavera
chamar por eles ou um pobre estender a mão e logo se levantam do meio dos
mortos para irem bater à porta da vida.” Neste momento, assevera o Professor
Cândido Franco, a sepultura de Agostinho Baptista da Silva já está vazia, e o
seu biografado “anda a bater, satisfeito até mais não, de calção e alpergata,
as floridas encostas doutra Barca de Alva”. Nas derradeiras linhas, mantém-se o
registo a incenso e mirra. Agostinho da Silva era “um titã”, “um gigante sem
soberba”, “um colosso de bronze”. E mesmo a terminar: “É tempo de alijar a
carga. Tenho os braços desfeitos. Escrever uma biografia de Agostinho da Silva
é andar com o mundo ao colo”.
António
Cândido Franco, diz-nos o próprio, dedicou dez anos da sua vida a investigar a existência
de George Agostinho Baptista da Silva, “um dos gigantes universais da História
humana”. O biógrafo compara-o a Moisés, na idade antiga, e, em tempos mais
recentes, a Francisco de Assis, Tolstoi, Gandhi e Luther King. Mais adiante,
não hesita em tratá-lo por “o Adamastor da Palhavã”. Estará a gozar connosco?
Infelizmente, nem isso.
António Araújo
(uma versão mais reduzida deste texto foi publicada no jornal Público/Ípsilon, disponível aqui)